segunda-feira, 15 de junho de 2009

No lucro


É preciso coragem, eu sei. Quem quiser que ria, ando mesmo pouco inspirada, posso estar ficando ainda mais boba com o tempo. O livro foi escrito em 1943 e deve ter sido mais moderno e original quando nasceu, mas recebi um trecho e achei tão lindinho que repito aqui. Como nem todo mundo leu, mas conhece a fama, pode ajudar a preencher uma falha em alguma cultura. E outro dia vi uma raposinha tão mansa e amigável, em pleno Parque Lage - coisas de uma cidade espremida entre o mar e a montanha - que pensei que O Pequeno Príncipe caiu em desgraça injustamente, foi vitimado pela preferência das misses, por ter agradado tanto. Eram tempos mais ingênuos, mas quem não tem um pouco de saudade de quando era mais ingênuo? Tempos de menos cobranças, e de menos...saudades.

“E foi então que apareceu a raposa:
- Boa dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa, disse a raposa.

- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:

- Que quer dizer "cativar"?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"?
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços...”
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra...
- Oh! não foi na Terra, disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.
Mas a raposa voltou à sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam.
Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra.
O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma coisa. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!
- Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto...
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas.
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada!
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo."

terça-feira, 9 de junho de 2009

Apetite por Paixão


“Pessoas comuns, no mundo inteiro, usam ditos populares para expressar sua sabedoria. Frequentemente faço uso deles porque encerram grandes verdades universais. Um que ficou muito conhecido, é “Como água para chocolate”. Outro dos meus favoritos é “Amor com amor se paga”. Nada mais verdadeiro. A única medida de valor para o amor é o próprio amor, nem o ouro, nem plumas de quetzal, nem pedras preciosas. O valor do amor está acima de todos os outros, e tudo que vale a pena é realizado com amor.
Desde que foi concebido, Como Água para Chocolate esteve rodeado de amor. Sua gestação começou muito antes da idéia central me ocorrer, começou quando recebi meu primeiro alimento, dado com amor.
Foi com a intenção de dar ao amor transmitido no ato de cozinhar a apreciação que ele merece que escrevi meu primeiro romance. Como Tita em meu livro, estou convencida de que podemos impregnar a comida com emoção, assim como qualquer outra coisa a que nos dediquemos. Quando esta carga afetiva é poderosa, é impossível que passe desapercebida. Os outros podem sentir, podem tocar, podem apreciar. Confirmo isso a cada dia que passa. Escrevi meu romance com amor. Meus agentes, meus editores, meus tradutores, distribuidores sentiram isso, partilharam isso comigo e contagiaram os outros. Este livro é o último elo desta corrente de amor. E estou mais do que satisfeita com o “pagamento”que o meu trabalho tem recebido.
So posso agradecer a todos, presentes e os ausentes, vivos e mortos, que colaboraram com o seu ar, sua terra, seu fogo e sua água para o cozimento deste “apetite por paixão”. Este livro me reconcilia com a crença de que, em se tratando de amor e de cozinha, não existem fronteiras. Cada refeição que eu tive, as pessoas que me acompanharam e a maneira de comer tem determinado quem eu sou. Seguindo este curso, tenho que reconhecer que pelas minhas veias corre uma certa dose de Coca-cola.
Explico: a familia da minha mãe é de Piedras Negras, na fronteira setentrional do México. Para mim, Piedras Negras começava no estado de Coahuila e terminava em San Antonio, Texas. Eram limites bem extensos, pelo menos assim me pareciam. Sendo uma menina, eu não tinha nocão de geografia. Essa idéia de que desta árvore para lá é outro mundo, não me entrava na cabeça. Tudo o que eu sabia era que havia lugares em que eu me sentia em casa. Precisei passar vários anos na escola para aprender que existem coisas como fronteiras e rejeição entre dois povos. A cada ano, minha familia viajava da Cidade do México até San Antonio, no Texas, para visitar parentes. No caminho, sempre parávamos para ver uns amigos em Piedras Negras. Em cada lugar, a magia se repetia: alquimia na cozinha, o ritual da mesa, a poderosa transferência de amor através da comida. A única diferença que havia era que, se em Piedras Negras devorávamos tortillas de farinha, carne desfiada com ovos, e doce de leite com nozes, em San Antonio eu me regalava com roscas cobertas de açúcar e Milky Ways. Por outro lado, como Ariel Dorfman e Armand Matterlart ainda não tinham escrito “Como Ler o Pato Donald”, eu não tinha indigestão lendo as revistinhas de Walt Disney na viagem.
E assim, os anos foram passando e meus conhecimentos de geografia, aumentando. Fiz notáveis avanços. Em pouco tempo entendi que Piedras Negras não chegava até San Antonio. Que uma cidade estava nos Estados Unidos e a outra no México, havia uma fronteira entre elas, e mais, a cultura dos Estados Unidos pouco tinha a ver com a cultura mexicana. Não importava se a cada noite de sábado minha irmã e eu organizávamos festas onde servíamos sanduíches e Coca-colas, dançavamos rock and roll e mascavamos chicletes. Nós tinhamos explicação para tudo: os sanduíches eram uma variação das tortas e as tortas eram mexicanas - ponto final. Nosso gosto por chicletes vinha dos astecas. Muito antes da chegada dos espanhóis, os indios mascavam chapopote. O rock and roll não tinha nada de mal, além do mais, era um fenômeno mundial e Coca-cola...bom, se ela tinha sido criada para fins medicinais, bebê-la só poderia fazer muito bem para nós.
E os anos continuaram passando e meus conhecimentos de geografia, aumentando. Aprendi onde era o Vietnam e que estava dividido em dois. Soube que meu primo em San Antonio tinha sido convocado pelo exército. Foi quando a Coca-cola começou a parecer amarga para mim. Aprendi que ela destrói o esmalte dos dentes e faz mal à saúde. Passamos a chamá-la de “água negra do imperialismo ianque”. Parei de bebê-la, tinha medo que transmitisse o horror da guerra. Felizmente, os hippies apareceram no meu mapa geográfico. Aprendi onde ficava a Universidade da Califórnia em Berkeley e o que estava acontecendo lá. No México, nós jovens, também fomos para as ruas distribuindo flores, ouvindo Joan Baez, rindo e celebrando o amor livre e pensando que o nascimento do “Novo Homem” era possível. Nós acreditávamos que podíamos mudar o mundo, mas não mudamos. Passei muito tempo me perguntando qual teria sido o erro.
Por que foi que nenhuma das revoluções em que tomamos parte conseguiu favorecer o surgimento desse novo Novo Homem? Para onde teriam ido todos os hippies? Joan Baez ainda continuava cantando? Onde estavam os filhos de Woodstock?
O sucesso do meu romance me deu as respostas. Por causa dele eu viajei pelas Américas e concluí que não era a única pessoa preocupada em estabelecer uma nova relação com a terra, com o universo, com o sagrado. Muitas outras pessoas tinham descoberto que a nova revolução iria germinar nos corações, nos ritos, nas cerimônias. Muitas pessoas estavam tentando desesperadamente substituir os valores materiais pelos espirituais. Muitos mantiveram o poder de fogo em suas almas.
Não existem fronteiras! É mentira que uma linha divisória possa separar um povo de outro povo. É mentira dizer que os hippies cantaram em vão - eles deixaram a semente. É mentira que os norte-americanos não comem chili e feijão - eles adoram. É mentira que nós mexicanos não comemos hamburgers - nós comemos com gosto, só adicionamos um pouquinho de pimenta.
Agora eu sei que a esperança ainda existe, que o Novo Homem está a caminho, vai ser uma pessoa completamente ignorante em geografia, não vai se importar em saber de que lado da linha está o chão que ele pisa, vai ter tanto prazer comendo uma tortilla quanto bebendo uma Coca-cola, porque vai saber que não é o que está ingerindo que importa, mas sim que está participando de uma cerimônia que o remeterá à sua origem cósmica, que vai muito além do étnico. Porque se considerarmos as origens, nós mexicanos somos filhos do milho, e os norte-americanos têm comido pipoca o suficiente para serem considerados nossos parentes."

Este prefácio (abreviado aqui) foi escrito por Laura Esquivel para o livro Apetite por Paixão, traduzido por mim do inglês para o português e editado pela L&PM Editores em 1995.

sábado, 6 de junho de 2009

Viajar


Do escritor holandês Cees Noteboom, perguntado se acredita que, hoje em dia, com a globalização, as viagens se tornam muitas vezes previsíveis, com pessoas que se parecem cada vez mais:

“Viajar, o jeito que cada um viaja, depende do indivíduo. Eu não ligo para turismo de massa. Se você realmente quer viajar, tome seu tempo, vá para um determinado lugar neste globo, vá ao ponto de ônibus, pegue qualquer ônibus – você verá que as pessoas NÃO são todas iguais, que o mundo é um lugar muito maior do que imaginou. Viajei por caminhos de peregrinação no Japão – a peregrinação de Saigoku – e nas fronteiras do Saara: são lugares que não têm muito em comum. O previsível de que fala é um conto de fadas inventado por jornalistas que não saem de casa. Tudo depende de si mesmo, e nem se trata de uma questão de dinheiro, como se pode ver pelos mochileiros que enfrentam dificuldades em viagens pela América Latina.
(em entrevista a Rachel Bertol para o caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo, publicada em 28 de junho de 2008.)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Revelações


A historinha abaixo me foi mandada pela amiga Jussara num momento curioso em que ando empenhada em descobrir não a história, coisa que pessoas mais habilitadas já fizeram, mas o espírito da minha família. Estou atrás da minha herança genética, na falta de outra, que se houvesse, talvez eu não estivesse aqui, estaria gastando por aí... pelo menos até agora não descobri nenhum ladrão de cavalos.

Judy Wallman é uma pesquisadora na área de genealogia nos Estados Unidos.Durante pesquisa da árvore genealógica de sua família deu de cara com uma informação interessante. Um tio-bisavô, Remus Reid, era ladrão de cavalos e assaltante de trens. No verso da única foto existente de Remus (em que ele aparece ao pé de uma forca) está escrito: "Remus Reid, ladrão de cavalos, mandado para a Prisão Territorial de Montana em 1885, escapou em 1887, assaltou o trem Montana Flyer por seis vezes. Foi preso novamente, desta vez pelos agentes da Pinkerton, condenado e enforcado em 1889."

Acontece que o ladrão Remus Reid é ancestral comum de Judy e do senador pelo estado de Nevada, Harry Reid. Então Judy enviou um email ao senador solicitando informações sobre o parente comum. Mas não mencionou que havia descoberto que o sujeito era um bandido.

A atenta assessoria do Senador respondeu desta forma:
"Remus Reid foi um famoso cowboy no Território de Montana. Seu império de negócios cresceu a ponto de incluir a aquisição de valiosos ativos eqüestres, além de um íntimo relacionamento com a Ferrovia de Montana. A partir de 1883 dedicou vários anos de sua vida a serviço do governo, atividade que interrompeu para reiniciar seu relacionamento com a Ferrovia.
Em 1887 foi o principal protagonista em uma importante investigação conduzida pela famosa Agência de Detetives Pinkerton. Em 1889, Remus faleceu durante uma importante cerimônia cívica realizada em sua homenagem, quando a plataforma sobre a qual ele estava, cedeu."