quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Gentileza e delicadeza com selo de qualidade


Li esse texto na Agência Carta Maior, e resolvi reproduzir aqui porque sempre pensei e senti assim, instintivamente, e não sendo filósofa, certamente não conseguiria nem me expressar melhor, nem o mesmo aval para esse pensamento. Olgária Mattos, a autora, é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.

Política e politesse: cotidiano e vida urbana

Olgária Mattos

As maneiras,os modos, a “boa-educação” constituem um Ideal de Ego referido à vida em comum, conformado na palavra politesse. Cortesia, amabilidade, delicadeza e atenção estabeleciam o convívio no espaço que define a coabitação e a cidade. Vida política é vida na polis. Se há a vida rude, o ruralis e a rusticitas, a vida na polis é polida, é civitas e urbanitas. Por isso, a convivialidade na Ágora antiga era presidida por Afrodite, a “deusa dos sorrisos”, com o que os gregos reuniam política e graça. A charis grega é “atratividade e beleza”, “serenidade e reconhecimento”. Daqui derivam “grato” e “ingrato”, a inclinação para “fazer o bem”, de um lado; a designação daquele que “não merece reconhecimento”, de outro.

Graça e grato são pessoas ou coisas acolhidas em razão de um conjunto de qualidades consideradas amáveis. Por isso são bem-vindas. A graça associa-se também ao que agrada, à gentileza nas maneiras, tudo o que constitui uma espécie de encantamento. Para o povo grego, amante da beleza, esta é apreendida nas relações de simetria, na coordenação das partes com o todo, nos “divinos laços da harmonia”. A Atenas de Platão e Aristóteles, a Roma de Cícero e Ovídio permitiram a passagem da villania à urbanitas; do cavaleiro medieval que age “como um leão”- e não necessitava dar provas de continência - aos torneios dos guerreiros nobres, que simulam a violência, controlando a agressividade. Quanto mais a aristocracia guerreira e violenta se urbaniza mais ela se desarma.

Entre a moral e o direito, as maneiras nascem da necessidade de atenção ao Outro e consistem em uma “arte da convivência”, pois a politesse prescreve limites aos comportamentos, considera regras, criando códigos não escritos mas que tornem possível e confortável a vida em sociedade. Se, na Idade Média, os cortesãos praticavam um saber-viver privativo aos castelos, com a civilidade humanista de Erasmo ela se democratiza para todas as crianças, todos os plebeus, camponeses e burgueses, sendo o desejo consciente de bem-viver, não mais distinção de uma classe e privilégio de uma elite, única antes a deter os critérios da “ perfeição”.

Os valores vinculados às boas-maneiras conformam os “cuidados de si” e uma estética da existência, analisados por Foucault na História da Sexualidade. Ética,estética e dietética são “medida”, “moderação” e "domínio de si”, e se ampliam aos hábitos de mesa: a arte de sentar-se, a dos gestos, de comer e beber; mas também arte da conversação, a escolha das palavras e a pronúncia bem articulada para a comunicação elegante e clara.

Sem descuidar de que as maneiras são do âmbito da aparência da virtude e não a própria virtude, elas, no entanto, dão a conhecer o “homem exterior” como ele deveria ser interiormente. Dizer “por favor” é aparentar respeito, “obrigado” é atestar reconhecimento. A politesse e a etiqueta - a pequena ética - quando esvaziadas de seu sentido moral, transformam-se em protocolo do frívolo e do inútil, da dissimulação, da humilhação e da exclusão.

Na tradição filosófica moderna e na educação formadora do espírito especulativo e da vontade prudente, tratava-se, antes de mais nada, de todos aprenderem as “maneiras”, mas sem se contentarem com elas, a fim de aceder, por seu intermédio, à virtude que imitam. A politesse é uma aparência de virtude de onde as demais provêm. Suas injunções e práticas podem ser fúteis mas as razões de sua existência são as da maior seriedade.

Olgária Mattos

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Casa, casamento, e o tempo


Curioso descobrir um país onde se dá tanta importância ao casamento, tema recorrente na vida e nesse blog, e foi dupla a surpresa: o jeito dos indianos se casarem e a casa onde começam a nova vida de casados.
Quem casa quer casa, diz um ditado nosso, mas na Índia, a foto na mesinha da sala é a... da sogra – isso eu vi - já que é lá que a recém-casada vai morar, na casa da família do marido. Esperar para ter sua foto ali, então, só quando um dia for sogra, será isso mesmo? E mesmo com esse começo tão improvável, são eternos lá os casamentos, salvo as exceções de praxe, imagino. Mas até que a morte os separe tem alguma coisa a ver com felizes para sempre? Pelo jeito, não gostam de surpresas, e já que casamentos românticos é que são inconsistentes, acham melhor discutir tudo antes para evitar ingratas surpresas - será que não perdem as boas, nesse regime de tantos acertos prévios? Será que discutem também o lugar da foto?
É claro que a longevidade do casamento indiano é traço cultural, a tal da felicidade é que vá procurar o seu espaço. Sendo assim, a dor da separação é evitada, mas como lá evidentemente não se leva em conta a dor da manutenção, não sei se é vantagem. Além da consulta aos astros, há uma longa investigação familiar antes da união dos pombinhos.
E como as vontades costumam mudar de rumo com mais facilidade quando ainda não se amadureceu, o aparato familiar ajuda a manter a casa em pé, e livra a firma da dissolução. Faz algum sentido, mas continuo achando que se deve manter a família a uma distância regulamentar, e visitas sob consulta prévia, nada de ficar invadindo terreno ainda não sedimentado.
Mesmo não sendo indiana, eu acreditava ser preciso haver uma grande identidade entre os dois. Hoje acho que alguma há de haver, mas essencial mesmo é equilíbrio, de forças, além de sentimento, já que todas as relações humanas são regidas por disputas de território e poder, por mais doces ou velados que possam ser os embates. O que penso, sem medo de errar, é que cultura é coisa de se respeitar, e é melhor ficar cada um com a sua, já que é difícil dar conta da nossa, pois dentro de uma só cultura, quanta diferença. Mas por trás de uma cultura forte, não haverá uma economia fraca? Para que as mulheres sigam seus desejos, precisam pagar suas contas, isso é elementar. E o desejo, talvez eles tenham arrumado um jeito de administrar de uma forma extra-oficial, mas isso fica difícil saber num país tão velado e dissimulado e em assuntos - mesmo que hoje nem tanto - ainda muito íntimos.
Li outro dia que existem culturas orientais que valorizam a mulher madura e mais cheinha, nada desse modelo de jovem sílfide cultuado atualmente no lado de cá do mundo. Seria mesmo assim, até nas opções de casamento?
Duvido. Acho que é preciso mergulhar bem mais no Oriente antes de fazer as malas. Na Índia, pensei que a minha próxima surpresa seria descobrir que todos os indianos têm uma tatuagem no braço dizendo: amor só de mãe. E não seria de henna. Mesmo assim, soube que ficam loucos com a pele mais clara, e que acontecem muitos casamentos entre brasileiras e indianos, com resultados surpreendentes – não muito positivos e isso sim não é surpresa nenhuma.
Achava estranho, desde muito nova, ver que algumas amigas tinham o casamento como certeza ou meta. A mim, parecia mais lógico ele resultar do desejo particular de viver com alguém específico, daí o espanto de ver como ele é regra geral na Índia, e ver regido com regras tão rígidas o que bastaria envolver vontade e sentimento, pois sucesso no casamento rimaria mais com caráter, carinho, coração, confiança. Cada um no seu feitio e duração - e sem briga no final, isso sim, deveria ser regra. Mas ter que seguir um trilho permanente, ou se apoiar num dormente, é coisa de trem, não é coisa de gente.
Só que quanto mais um casamento dura, mais difícil fica mantê-lo, e mais difícil rompê-lo também. Uma contradição em termos. Se a gente se conhece e amadurece aos poucos, como pode querer que o cenário não mude? Espero que os astros tenham respostas para isso, e quem for descobrindo, que trate de aproveitar sua sorte. Individualismo não é bom para uma sociedade, mas é bom que se respeite as individualidades. Deixar a cultura cuidando do folclore e cada um que arrume como quiser e puder a sua casa.
Talvez o sistema indiano nos pareça frio e mercenário demais, mas temos por aqui nossos telhados de vidro, nossas regras e a falta delas também. As regras amparam e protegem, caminhar com as próprias pernas é sempre mais incerto e inseguro, mas com mais chance de nos levar onde queremos chegar, se há vontade, se a cabeça e os ventos ajudam.
Quando escrevo, às vezes releio e receio parecer muito pessoal. Aí penso que as procuras são universais, e certamente não é só de mim ou para mim que escrevo. Se fosse, bastaria pensar.
Talvez a gente procure felicidade demais. E quando ainda se atrapalha ao separar o que é sonho do que é realidade, se arrisca a ficar espiando a vida como se todo o cuidado fosse sempre pouco.
Não tenho, até hoje, nenhuma certeza. Tendo a acreditar mais em paixões eternas do que em casamentos eternos. Só o que posso dizer, do alto da minha longa estrada, é que ficam no coração os momentos em que a gente não pensa em nada disso que eu acabei de escrever aqui, e vive. Poder construir uma vida só com esses momentos seria o meu real sonho de consumo.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Caminhos escuros, olhos abertos


Escrever ajuda a organizar as idéias. Reler pode ajudar a perceber as que não se sustentam, as que estão fora de propósito ou lugar... nada como um texto depois do outro para assim, branco no preto, perceber mudanças por que a gente vai passando. Já nada como um dia depois do outro, eu não sei se concordo, às vezes a gente prefere um que já passou, mas eles passam mesmo sem a nossa aquiescência. Não dá para aceitar todos os ditos populares. Mas que as aparências enganam, enganam. Por isso a gente não deve viver cheia de certezas e conclusões apressadas.
Lembro que a minha mãe me falou de um padre amigo que lia o jornal sempre antes de entrar no altar para celebrar uma missa, o que era visto com estranheza. Um dia tomaram coragem na sacristia e pediram uma explicação para esse hábito inusitado que julgavam impróprio, e ele explicou: era assim que se preparava para aquele ato de fé, rezando pelas vítimas nas notícias que lia. As notícias já eram muito mais tristes e trágicas do que alegres naquela época. Nos fazem tristes, mas geralmente não nos conduzem ou orientam no sentido de modificá-las, e assim acabam vazias, só trazem a angústia da impotência. Qual o sentido de informar apenas para manipular sentimentos?
O Ocidente, mesmo considerando as extremas desigualdades existentes, dando uma grossa generalizada, parece ser mais limpinho e organizado que o Oriente, onde lugares com os padrões do primeiro mundo parecem existir mais como ilhas isoladas. É claro que não se mede desenvolvimento pelas aparências materiais, ele precisa se dar em todos os sentidos para corresponder ao significado mais amplo da palavra, mas as necessidades básicas não são básicas?
Com toda a riqueza e diversidade de cada cultura, mesmo sendo tão forte o peso da cultura, é difícil digerir flagrantes diferenças sociais. Já chegar à raiz delas, é mais complexo ainda.
As coisas nem sempre são como parecem à primeira vista, e uma olhada rápida pode nos levar a caminhos equivocados.
Países colonizadores ficaram ricos explorando suas colônias, que mesmo independentes custam muito a se libertar. O desenvolvimento que alcançaram foi voltado para produzir ou escoar riquezas, as estradas de ferro que eu admirei na India devem ter servido muito aos ingleses, como as nossas que continuam ativas servem aos intermináveis e impressionantes trens de minério que várias vezes vi passar em terras mineiras.
Que governante, em qualquer tempo ou lugar do planeta, faria ou fará diferente? O povo nunca foi prioridade em lugar nenhum, não seria nem como audiência de tv, se isso não significasse dinheiro.
Os pastos daqui alimentam os bois que acabam nos pratos do lado de cima do globo, o lucro volta para os mesmos poucos bolsos daqui que já são abonados. Não mudando o modelo, as coisas não podem mesmo mudar muito.
Bom, pelo menos os indianos são, em larga maioria, vegetarianos. Seu processo de independência se concretizou com a marcha do sal, o movimento de Gandhi incitando o povo da terra a não pagar pela riqueza retirada de suas próprias águas.
As vontades e as crenças são misteriosas, mesmo não sendo visíveis ou palpáveis, quando tomam corpo, podem vencer árduas batalhas. Os indianos adoram o Ganges, o rio sagrado, e em tempos antigos desprezavam o mar, chamado de água negra. Pensei: não eram águas de beber, e traziam os invasores, seria por isso?
Jodhpur, na India, é conhecida como a cidade azul, cor antes reservada para as residências dos brâmanes, a casta mais alta, mas que a população se apressou em adotar. Mais fácil pintar a parede de azul do que derrubar o sistema de castas.
Sabedorias, fraquezas e sonhos, já isso é comum a todos os povos da terra.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Novovelhonovo



Não é papo furado de Ano Novo. É sério. Tem gente que consegue ir ficando velho ficando mais novo. Aliás (aliás agora tem ou não tem acento?), isso deveria acontecer com todo mundo. Seria a nossa vingança contra a natureza. Ou melhor, a nossa harmonia com a natureza. Não quero mais brigar nem com nem contra nada, muito menos ir contra a natureza, quero paz – sem calmaria, mas paz.
Enfrentar qualquer onda em paz, é o que eu peço. Sei que não é pouco.
Briguei demais em 2008, em várias direções. Às vezes parece ser preciso, para sair do momento em que a gente se encontra desconfortável. Mas concluí que é desnecessário mesmo, procurar meu lugar sem brigar é o que eu almejo. E já estou eu aqui com planos de mudança para 2009, embora não seja a minha intenção escrever sobre isso.
Queria escrever sobre uma coisa que fiquei pensando: tem gente, e espero me incluir breve aí, outro novo projeto... que parece realmente se renovar com o passar dos anos. Vai se passando a limpo. Consegue abrir a cabeça, ficar mais atento, mais generoso, menos exigente no sentido de implicante, mais exigente no sentido de escolher o que quer, apenas. Percebe o quanto o tempo vai ficando mais precioso à medida que passa. E consegue isso naturalmente, porque ter que controlar tudo racional e cientificamente acaba sendo mais um tipo de stress. Xô stress – já basta a nova ortografia.
Falo mesmo da cabeça, e do entendimento. Pode parecer premio de consolação, já que a pele não está mais tão lisinha nem a balança é mais tão generosa – isso não é desculpa para não cuidar, e desse projeto eu realmente prometi cuidar, fazer a minha parte apenas para me defender da natureza – mas não é.
Acho que a natureza é sábia. Sinto que tem mesmo um momento em que a gente resolve se aprimorar naturalmente, e talvez seja até um inconsciente impulso de ensinar, passar o que aprendeu, o que consegue perceber, e passar bem. Não é uma imposição do nosso jeito, que tem a ver com intolerância, e que é atributo muito freqüente de quem envelhece mal. É justo o contrário, se abrir para entender outros jeitos, que podem ser mais bem resolvidos que o nosso, e que quando a gente está muito preocupado em andar e olhar para frente, não enxerga. Me vi pensando sinceramente que não quero mais correr, quero andar. Com o meu passo, mas andar. Muito conveniente, aliás – com acento ou sem . A natureza é mesmo sábia, nada de brigar com ela. E nem com a nova ortografia. Temos ainda mais quatro anos para entrar em acordo com ela.

“Não é nem um pouco trágico ter cinquenta anos – a não ser que você esteja tentando ter vinte e cinco”. Joe Gillis (William Holden em Sunset Boulevard)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Terra estrangeira

Viajei por seis cidades na Índia, de carro e avião. As distâncias eram grandes, e mesmo restrita ao roteiro que fui produzir, pude ver muita diversidade. Restrição é realidade constante na visita a uma terra estrangeira, em que estamos sempre sujeitos a um visto oficial e muitas autorizações. Além das restrições impostas pela direção e pelas necessidades do nosso trabalho, sabemos que mesmo em nossa terra, senhores da língua, da cultura e dos nossos direitos, existem portas fechadas e subterrâneos. A rigor, para gravar na Índia uma simples imagem de rua, precisaríamos de uma autorização geral, federal, de uma estadual, de uma municipal, e outra da polícia local. E muitos carimbos. São inventores do carimbo e da burocracia. Especialmente quando você carrega muito equipamento e quer usar um tripé de câmera. Mas podem não ser necessários, como não são. A gente descobre depois.


A campanha publicitária oficial diz: Incredible India! Os mais críticos dizem que está certíssima, mas significa que na Índia nada é crível. Nem o que se pede, nem o que se fala. Um orçamento pode pedir dez vezes o que você deveria pagar. São demoradas e incertas as negociações no país que inventou os negócios. A gente aprende.
E por mais misterioso que possa parecer, eu, que me vi muitas vezes perguntando o que é que eu estava fazendo ali, agora tão informada e vacinada já admito a possibilidade de voltar um dia.


É verdade que circulamos por lá numa época em que o país estava em choque com os ataques a Mumbai/Bombaim. E circular na Índia é outro mistério.


Vacas no trânsito, camelo parado no sinal luminoso, que os pilotos dos riquixás de bicicleta ou de motor simplesmente ignoram, como ignoram nossos sustos e solavancos. Elefante nos ultrapassando, a caminho de uma feira, e estou falando das ruas de Delhi, a capital.






Nunca vi nada igual, e não vimos um acidente sequer, apenas a maior confusão, onde tudo se resolve... buzinando - os carros pedem: buzine, por favor! É buzinando que se comunica – estou chegando, quero passar, estou ultrapassando.


O calendário é outro mistério. Maio aqui é dezembro lá – se você é solteiro, ou está casando ou está correndo sério risco na temporada de casamentos. Mesmo se for estrangeiro e não estiver nem um pouco a fim, vão tentar te arranjar um casamento arranjado, como tentaram com um colega da nossa equipe. Os dias da semana e as horas também são diferentes na Índia. Vimos cortejos de casamento em todos os dias e horários. Ou então, os dias e horários nobres não dão vazão, o que é mais surpreendente e preocupante ainda: sabemos o quanto pode ser prejudicial, para os envolvidos ou para a instituição, tal fanatismo por casamento.



Humor à parte, pode explicar uma população de mais de um bilhão de pessoas, num país que tem a metade da área do Brasil. E um terço da população vivendo em condições miseráveis, a ponto de mencionarem trabalho infantil como coisa corriqueira.
Fotografei muito por lá, mas o que o que a gente mais sente, não consegue documentar. O espírito do país é muito diferente. Tínhamos um guia muito eficiente, mas nada é simples a princípio, e no entanto tudo se mostra simples depois de alguma negociação, alguns sustos e negativas. Você invariavelmente ouve um não ou o relato de uma grande dificuldade sempre que propõe alguma coisa, e nem sempre isso acontece para poderem vender facilidades – embora muitas vezes seja. Nada é claro e direto, mas na maioria das vezes os fantasmas desaparecem, sem explicação ou necessidade de explicação. Pode ser exaustivo e exasperante. Parece que é obrigatório se assustar e sofrer para depois ficar aliviado e satisfeito.
Na chegada, depois de mais de trinta horas viajando, contando tempo de voo e aeroportos, bagagem extraviada, burocracia, saímos do aeroporto às duas da manhã, as granadas explodindo em Bombaim e um despachante de alfândega me assustando, primeiro pelo telefone, com a burocracia, depois ao vivo, por conta do caminho que o motorista pegou para o hotel - que eu não conhecia, mas que estava certo. Stress desnecessário, mas com fins lucrativos.
Encontramos no caminho pessoas maravilhosas, sábias, acolhedoras, simples e receptivas, sempre dispostas a ajudar e a resolver. Desigual. Como desigual é a vida em Bombaim, onde poucas quadras separam a “casa” de vinte e sete andares, ainda em construção, de um dos dez homens mais ricos do mundo, dos chawls, os cortiços que são residências típicas até hoje na cidade mais progressista e rica da Índia. Nessa lista dos dez mais ricos, tem mais um ou dois indianos.



Folheando uma revista Elle, no avião de volta, li a história de um casal que morreu no Oberoi, um dos hotéis atacados e ocupados. Ela, francesa de origem indiana, muçulmana, tinha resolvido viver na Índia em busca das raízes, de proximidade, de solidariedade. Bem sucedida, Lumia era a criadora da grife Princesse Tam-Tam, que vendeu para os japoneses. Queria criar uma ONG para órfãos em Bombaim. No site da grife, ela dizia que o que mais detestava eram as injustiças da sorte. Mais uma história chocante e triste, parte da vida desse país tão colorido, agitado, pacífico, e sem a menor dúvida original e que consegue levar a vida com humor. E muito jeitinho. Desconfio que os portugueses não ocuparam apenas Goa por lá, tais as semelhanças que percebi. O maior mercado de temperos e especiarias da Ásia está lá, e parece igual ao que devem ter encontrado em 1500.


Perguntei a um indiano qual o sentimento que eles tinham com relação aos ingleses. Ele respondeu que não havia amargura com relação a eles, não mais do que com relação aos estúpidos marajás. Não consigo ver com bons olhos qualquer colonizador, mas pelo menos no caso da Índia, ficaram os trens, e a língua mais universal do planeta.
E o humor, seria herança britânica? Foi lá que vi a frase, estampada numa sacola de livraria em Pune:
- Esses são os meus princípios – se você não gostar, eu tenho outros.
(Groucho Marx)

sábado, 3 de janeiro de 2009

2009, Kharma, dharma, Krishna, Shiva


Nas minhas primeiras viagens – como em quase todas as outras – visitei países mais desenvolvidos e ricos do que o meu. Mas meu primeiro choque se deu no Egito. O segundo, na Índia, onde me vi pensando nas calçadas do Brasil, nas ruas varridas, no trânsito do Rio, nos mercados razoavelmente limpos. Isso mesmo, nas coisas que criticamos aqui, porque não são como no primeiro mundo. E porque aqui existem também grandes desigualdades, o que não é aceitável, convivemos com muita ignorância e egoísmo, e os avanços são lentos. Alguns fecham os olhos, e a gente sabe os motivos - estão sempre no bolso. Maior ainda que o preconceito, a razão da reação contra mudanças acabam ou começam sempre na preocupação com o bolso.
Mas existe por aqui um padrão, que se tenta alcançar, e as coisas acabam avançando à força, à custa da luta de muitos, porque limpeza não é frescura, saúde não é frescura, educação não é luxo, nem estética é futilidade, já que alimenta o espírito. E as desigualdades não são leis de Deus, foram demarcadas pelos homens mesmo - sempre pela força de quem tinha em mãos o tacape. A luta pelo poder também se dá entre homens e mulheres, mesmo entre pessoas que se amam.
O Brasil deixou de ficar em total desvantagem como eu o via, embora tão longe do ideal. Não estamos acostumados a valorizar o que temos. Queremos mais, e não estamos errados por isso. Mas é preciso razão, sinceridade e honestidade também na visão crítica, se a idéia é ser justo, e as medidas carecem sempre de comparações.
Gosto demais de viajar, já quis imigrar, já invejei quem leva uma vida mais solta na estrada. Ainda não me agrada a idéia de ficar quieta, mas ando mais apaziguada.
Sobre a Índia, tive muita dificuldade de entender um país tão cheio de divindades e santidades, e tão brutalmente desigual. Uma coisa não seria consequência da outra? Uma Madre Tereza de Calcutá não existiria sem Calcutá. Seria melhor que ela existisse, ou não, e não existisse Calcutá?
Perdi muito tempo procurando explicações na vida. Agora prefiro ocupações. Consigo com elas um resultado mais satisfatório. Quando o momento não é de grande júbilo, adoto medidas pequenas. Um centímetro pode não ser muito, mas pode ser um avanço, e um alento, se não uma comemoração. Digo isso em todos os sentidos e direções. Não jogar a sorte pelo chão. Bendigo a minha, o que é diferente de ser conformada. O Rio me faz feliz, o samba me faz feliz. Pequenas felicidades, assim como amigos, é bom nunca perder de vista. O sol - na sombra! - o mar, a mata que cerca a cidade. Saber reconhecer e avaliar bem o que se tem é uma espécie de humildade, e de felicidade. Podemos não ter na vida todos os encontros que planejamos ou desejamos, mas se vivemos em compasso com o nosso sentimento, a vida não fica tão fora de lugar. As medidas são pessoais, mas esse é o limite que dei à velha onipotência. Por enquanto, pelo menos. E por enquanto, ouço Luiz Carlos da Vila, e penso em luz. Luz para todos, em 2009. Luz que acolhe, não a que vemos explodir em Gaza, ou Mumbai, onde eu li numa esquina: você pode viver por um ideal, e até morrer por um ideal, mas não mate por um ideal. Contra as bombas do mal, nenhuma indignação é excessiva. Cada um tem sua medida, e eu penso: até tentar pensar melhor melhora um pouco o mundo. E como exercício, é bom começar tentando melhorar a vizinhança, sem perder a esperança. Feliz 2009!

O sonho não acabou
( Luis Carlos da Vila)
A chama não se apagou
Nem se apagará
És luz de eterno fulgor
Candeia
O tempo que o samba viver
O sonho não vai acabar
E ninguém irá esquecer
Candeia
Todo tempo que o céu
Abrigar o encanto de uma lua cheia
E o pescador afirmar
Que ouviu o cantar da sereia
E as fortes ondas do mar
Sorrindo brincar com a areia
A chama não vai se apagar
Candeia
Onde houver uma crença
Uma gota de fé
Uma roda, uma aldeia
Um sorriso, um olhar
Que é um poema de fé
Sangue a correr nas veias
Um cantar à vontade
Outras coisas que a liberdade semeia
O sonho não vai acabar , Candeia