sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Desacertos da língua portuguesa


Experimente procurar o significado de cachorrada - a descrição mais leve que vai encontrar é "ato ou atitude de mau gosto de uma pessoa para com outra". É daí pra baixo. Canalhice, indignidade, ato vil. E uma das maiores injustiças dessa língua. Só quem conhece cachorros entende a expressão "fidelidade canina". Tem ser mais fiel do que um cachorro? Mais amigo? sempre pronto para um agrado, incapaz de uma deslealdade.

Palhaçada, outro caso: um termo que já foi muito mais usado em tempos idos, mas me foi lembrado recentemente e tenho o impulso de usar muitas vezes, mas logo me corrijo, palhaços de verdade merecem respeito e admiração, fazem rir e não chorar, não nos atrapalham como os palhaços amadores.
A história desse país é uma história de desrespeito com a terrra, as gentes, e com a língua não pode ser diferente.
Grande parte das mães que educam os peitos varonis por aqui, por exemplo, já deveriam há muito ter sofrido um recall, levando junto seus rebentos.

A era da comunicação, com toda a contribuição do universo virtual, parece ter desagregado o valor das palavras, das letras, da língua, justo a base de toda a comunicação entre seres humanos.

Entrei na vida como burguesa, virei uma espécie de operária, e quando me aposentei aí mesmo é que comecei a trabalhar como gente grande. Seria feliz se terminasse meus dias como escrava das letras. Tenho muitas saudades do tempo em que podia ser mais assídua nesse blog, saudades mesmo de um teclado. A vida faz da gente gato e sapato. Gatos, não defendo, porque não conheço, e não consigo esconder meu desconforto com seres muito bonitos. Beleza física costuma produzir em cabeças sem muito cérebro, muita vaidade e pouco esforço mental. Que me perdoem as exceções da regra, que certamente hão de existir, mas essa combinação não costuma dar em nada que preste - que me perdoem os gatos e seus ferrenhos defensores.

Voltando à vaca fria - outra expressão animal e dela desconheço totalmente a origem, só sei o significado - língua não é coisa para amadores, nem para estrangeiros, que dificilmente destrincham totalmente uma língua que não é a sua apenas com estudo e sem vivência.

Viver também não é coisa para amadores. Amadores fazem muita besteira. Escrevem sem pensar, escrevem sem ler, só percebem o que fizeram depois do leite derramado.

Mas voltando novamente à vaca fria, trabalharia de sol à sol se tivesse apenas que lidar com a língua. Escrever é registrar o pensamento - quem escreve bem, geralmente pensa bem, principalmente quando relê, reescreve, repensa.

Com a vida meio de cabeça para baixo, pensar na língua ajuda a por as idéias em ordem, mesmo que seja para desorganizar tudo em seguida: a portuguesa não é a mais rica nem a mais sintética, nem a mais moderna. É a nossa, e gostaria de conhecer outras com a mesma intimidade. Ler em outras línguas aguça o sentido para a nossa, pela descoberta das semelhanças, as raízes comuns, além de nos defender das más traduções. Nunca esqueci a primeira vez em que pisei num país sem ter nenhuma pista do que falavam. Mesmo conseguindo, com a ajuda de línguas mais universais, me comunicar, não compreender o que te dizem produz uma sensação muito estranha, principalmente sendo mulher, e num país árabe. Estranha não quer dizer ruim, muitas vezes é o contrário - há descompromisso e uma certa liberdade quando as coisas do mundo fogem do nosso controle. Um dia ainda espero perder até o controle remoto da televisão.

Havia um tempo em que mandava cartões de Natal. Depois, passei a responder aos que recebia. Hoje, quase não recebo, e não respondo. O mundo virtual ficou rápido, ligeiro e menos pessoal, e sem dúvida a língua é uma das vítimas disso. Mas ficam aqui os votos de Feliz Natal a quem por aqui passar.