segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Casamento Indiano


A gente sabe quando é paixão, está gravada no dna, não nos enganamos, seja qual for a idade, mesmo que leve tempo - para encontrar uma, para acabar com uma.
Nos atrapalhamos é na escolha entre seguí-la ou não, sobre qual seguir quando se é dado a paixões múltiplas, muitas vezes lutar contra a claustrofobia de uma escolha única, difícil avaliar as prioridades, saber o que tem mais peso para nós, o que - e se - conseguimos suportar, onde e quando dá para seguir o coração, até que ponto se acredita em recomeçar, até que ponto pode acreditar... a conjuntura, o destino, as possibilidades e impossibilidades entram fazendo a sua parte, para o bem e para o mal. Casamento pode resultar disso, ajudado muitas vezes pelo fato de que quando a gente toma a decisão, geralmente é muito novo para levar tudo isso em conta. Questões atuais e universais. É por conta delas que as famílias indianas resolvem meter a colher.


O Ocidente, a grosso modo, acredita em recomeçar, tanto que se renovou tanto. No Oriente, mesmo que também generalizando, é diferente.
Foi um choque descobrir como são calculistas e racionais as escolhas num casamento indiano. Logo numa terra tão marcada pela espiritualidade, o casamento por amor é olhado com muita desconfiança. Não dá certo, chegam a dizer.
Bom, quando nossos pais passavam para os filhos os valores e obrigações para a formação de um nobre caráter, já não estavam condicionando nossos sentimentos, e com isso, nossas escolhas futuras?


Mas existe mesmo uma grande diferença cultural entre os mundos. A interferência da família em questões que julgamos só nossas ( às vezes só julgamos), que vão determinar nossa vida adulta, o pragmatismo despudorado, a avaliação das vantagens, é tudo muito cru na Índia que eu conheci. Situações e aspirações financeiras são discutidas de maneira aberta e objetiva, relatam com naturalidade os noivos.
Na falta do pai, é o irmão mais velho que dá o aval para o casamento da irmã. Depois de prometidos, os noivos podem ficar muito tempo sem se encontrar, e nunca se encontram sozinhos. Isso pode estar acontecendo um pouco menos nas cidades mais modernas da Índia, mas ainda acontece com a maioria dos casais. Mesmo já adultos, e já tendo morado no Ocidente, voltam à Índia para se casarem, e se submetem às tradições.


Esta é uma festa num hotel de cinco estrelas, coisa muito valorizada num casamento por lá, pelo que pude ouvir e constatar. Ainda mais porque os convidados que vem de fora costumam ficar no próprio hotel.


Neste casamento, no Taj Mahal Hotel, em Nova Delhi, entre uma americana e um indiano, havia um homem encarregado de fazer turbantes nos homens não indianos.
A noiva se veste com um sari de festa, que não precisa ser branco.
É verdade que ouvi de uma indiana que os casamentos por amor estão aumentando, mas indianos adoram negociar, e me pareceu que um casamento é a suprema negociação de uma vida. Eles escolhem bem, avaliam a família, pedem ajuda aos astros, aos sacerdotes, examinam a palma da mão. Até porque a mulher vai sempre viver na casa da família do marido. E para sempre. Passa a ser dela a responsabilidade de cuidar dos idosos, do sogro, do marido, e morando na casa da sogra!
É mesmo abrangente um contrato de casamento na Índia. Abrange problemas que conhecemos, que não existem só lá, mas acho que eles carregam um pouco nas tintas...
Mundo antigo, questões eternas.
Mas confesso aqui o meu alívio ao tomar o avião de volta.


Convidados a caminho de uma cerimônia.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

O destino


As granadas estouravam e as balas zuniam no dia em que cheguei à Índia. Tomei a decisão de começar a viagem por Delhi e terminar por Mumbai, mas segundo a nossa primeira reserva, estaríamos no Taj Mahal Palace que foi atacado, e esse blog poderia já não estar mais aqui. Nosso repórter valentão lamentou muito o fato de não poder mandar matéria literalmente no calor dos acontecimentos, mas como ele dependeria mais dos favores de um terrorista paquistanês do que da minha limitada produção, louvei nossa boa estrela.
Bombaim virou Mumbai, para infelicidade de muitos indianos, que não precisam de mais infelicidades do que as que já têm, sob a minha ótica pessoal, social e ocidental, mas que ainda por cima lamentam ver as cidades em que nasceram ou vivem rebatizadas –Madras virou Chenai, Benares virou Varanasi, Delhi tem nova no nome, mas continua Delhi, e continua velha.
Bombaim, ou Bombay, antigo nome do novo centro financeiro da Índia, vem do português, boa baía, e é um nome bonito. O país recebeu como herança dos tempos coloniais a língua inglesa, e agora faz muito uso dela, com os seus serviços e call-centers que conversam com o mundo – relutei em dizer que faz bom uso, só quem se esforça para entender o inglês falado por um guia indiano sabe do que estou falando.

Não só de bombas, espiritualidade, sujeira e injustiças sociais vive a Índia.
Está aberta a temporada de casamentos por lá, e isso aparecia a cada momento da nossa viagem. É só sair na rua, a qualquer hora, de qualquer dia da semana, para cruzar com um cortejo colorido e barulhento festejando a data mais importante na vida de um indiano. Tem para todos os gostos. Entrar num hotel, seja de quantas estrelas for, e ver a tenda armada. Abrir o jornal e ler os classificados. Dizer que é solteiro e ver a reação que provoca – todos vão querer te arranjar um - casamento! Talvez tenha sido a maior surpresa da viagem.

Nunca tive notícia de um povo na terra que procurasse tanto a orientação dos astros como os indianos, isso eu comprovei, e pode bem ser verdade que os reis magos tenham saido da Índia para homenagear Jesus que nascia na manjedora seguindo a estrela que os levou a Jerusalém, valorizando riquezas, ouro e presentes como eles bem valorizam até hoje.

Os indianos se casam fazendo um mapa astral, que precisa coincidir, e que leva em conta muitos antecedentes familiares.
É ainda um pouco confuso para mim o que tem mais peso, pois parece que misturam tudo nessa previsão pré-matrimonial, os astros, as castas, especialmente a divisão entre castas, banidas por lei há mais de cinquenta anos mas ainda totalmente presente na vida dos indianos. E conhecendo o jeitinho indiano, duvido que não haja uma conta de chegar para acomodar interesses. Mas o mapa é importante num país em que os pais procuram noivos e noivas para os filhos nos classificados de domingo, independente dos candidatos e candidatas já terem morado por muitos anos nos Estados Unidos ou na Europa, caminhando com as próprias pernas e trazendo um MBA debaixo do braço. Isso tudo está no anúncio, junto com a apregoada beleza física dos candidatos.
Além disso, depois que casam, não se separam, é o jeito com que se organizam. Podemos imaginar o que acontece extra-oficialmente, já que o peso e a determinação da cultura não costuma conseguir sufocar desejos e sentimentos, e o ser humano não pode ser tão diferente assim só porque nasceu na Índia.
Isso é regra geral, é claro que a Índia também tem suas exceções, e está mudando e se voltando muito rápido para o mundo ocidental, como nunca antes visto num país que se orgulha de ter a única cultura da antiguidade ainda bem viva no mundo – mesmo que isso signifique viver sob bombas trazidas frequentemente por paquistaneses radicais.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

INDIA


Voar é um milagre dos céus, caímos sem pára-quedas num outro mundo. São trinta horas de viagem, incluindo aeroporto e conexão. Para digerir a India, é preciso bem mais que isso. Ninguém volta da India igual ao que era antes, foi a primeira frase que me disseram, no primeiro contato que fiz. Preciso mesmo de tempo para dizer porque.

domingo, 23 de novembro de 2008


Suspenso temporariamente por motivo de viagem.
Estarei de volta aqui em meados de dezembro, com novas histórias.
Ou a qualquer momento, em edição extraordinária.

domingo, 9 de novembro de 2008

Pesquisa


Saí para andar na Lagoa e vi uma moça, bem nova e bonita, chorando. Copiosamente. O mundo estava desabando por ali. Estava sentada na murada, vestida para caminhar. Sozinha, ela aproveitou para chorar. Se eu tivesse certeza que ela queria ouvir alguma coisa naquele momento, mesmo de alguém desconhecido, teria dito para ela:
- Chora mesmo, é bom, mas pode acreditar, seja o que for, passa.

Todas nós choramos nessa idade. Depois também. Mais tarde, passamos a lamentar o fato de nosso choro ficar tão seletivo. O mundo já não nos pega desprevenidas com tanta freqüência, ficamos mais sábias e avisadas – ou mais defendidas - e temos saudades dos tempos mais ingênuos. Muita coisa já deixa de valer um bom choro como o daquela moça. Choros bons mesmo, desalentados, esses vão ficando raros. Passamos a chorar só em situações de leite derramado, causas perdidas, despedidas sem volta.
Cruzes.
Pensava era em felicidade quando sentei para escrever. O mundo mudou demais nas últimas gerações. Deve ter sido sempre assim, mas a gente repara mesmo é no nosso tempo. Mudou para melhor, eu acho sempre. Nem sempre, nem em todos os lugares, mas a humanidade, como um todo, evolui. A luta pela liberdade ganha sempre algum terreno, mesmo que seja contado em milímetros, se pensarmos em ditadores que caíram, alguns direitos conquistados aqui e ali. A humanidade avança, sou uma incorrigível otimista e esperançosa. Mas teria curiosidade de saber, mesmo sem acreditar em pesquisas, já que existe pesquisa de tudo nesse mundo, se haveria uma que aferisse o grau de felicidade que há no mundo pelas liberdades conquistadas nas últimas décadas. O mundo – e penso especialmente no das mulheres – estará mesmo mais feliz? Quanto mais feliz? Porque às vezes, passa bem rápido e vai embora, um pensamento: não é arrependimento, que ninguém me entenda mal, mas a gente paga sempre tão caro por qualquer avanço e mudança, não haveria de haver um jeito das mudanças cobrarem um preço um pouco mais baratinho?

sábado, 8 de novembro de 2008

Mudança


Depois da tapioca na feira, fui fazer as unhas – tentei mas nunca consigo ter um horário fixo para fazer em casa, e agora ando trocando o salão que freqüentei por vinte anos, ao lado de casa, confortável, silencioso e profissional, por um outro mais perto da minha filha. Não é só o preço, que é bem conveniente, mas é que lá a diversão é garantida.
Hoje as manicures estavam rindo ainda mais do que de costume – às vezes brigam, e aí riem também. Todas comentavam que o amor é lindo.
A explicação: o moço que vende balas em ônibus, há um tempo resolveu vender também por lá, cada vez mais freqüente. Tem um estoque variado, elas gostam. A dona do salão gosta porque ele troca o dinheiro dela, não falta mais troco para dar às clientes, facilita o dinheiro para gorjetas, etc. E de tanto ser chamado de amigo, ele ficou à vontade para trazer a companheira para pintar o cabelo ali. Gostou do ambiente, ficou mais à vontade, e passaram todo tempo aos beijos no salão, foi um acontecimento, para ele e para todos, era esse o motivo do alvoroço.
- Ele é doidinho, minha manicure explicou. Doidinho mesmo, tem carteirinha. Quis saber como é carteirinha de doido, ela não sabia direito, mas jurava que ele tinha, ele mostrou. Uma outra esclareceu: é isso mesmo, a carteirinha dele dá direito a andar no ônibus com um acompanhante, ele não pode andar sozinho. Ele anda, mas já que tem direito, quando pode, leva o amorzinho, que parece que não é tão amorzinho assim: enquanto pintava o cabelo de vermelho, declarou para as meninas que quer casar com ele porque ele tem dinheiro, que vendedor de bala ganha muito. Mas não vai ser assim, não, a família dela tem que conhecer e aprovar. Além de interesseira, a mulher tem um pouco de barba, continuaram me contando. Problema de hormônio, ela faz a barba, mas fica estranho. Aí achei que era demais, felizmente acabou meu tempo, e depois da rodada de mate que rola por lá, para clientes e profissionais, fui. No outro canto do salão uma delas comentava não entender a razão da ofensa por chamarem o Obama de bronzeado, se ela já tinha sido tanto chamada de encardida, mal lavada, tinta fraca - bronzeado até que era bonitinho... como sempre, por aqui, estamos acostumados a nivelar bem por baixo.
A distância entre os dois salões é de três quadras, mas quanta diferença. Isso seria impensado no outro salão, onde as moças falam baixo e só aceitam o biscoitinho que vem no nosso café se for disfarçado, e falam muito veladamente de insatisfações trabalhistas. O serviço é igual, mas a clientela dele certamente não curtiria tanta descontração, e eu compreendo.
Mas viva o direito – e a chance - de escolha. E viva a diversidade. É normal que haja sempre uma luta de forças em torno dos direitos e das autoridades, e administrar sem dominar pela intolerância é muito mais difícil.
Já na rua, cruzei com uma antiga manicure, que tinha se demitido, e me convidou para conhecer um outro salão.
Mudança, por necessidade ou escolha, transita melhor se há diversidade.
Caminhando, com essa situação prosaica e doméstica na cabeça, pensei em como o Brasil é estanque com suas castas mal assumidas, pouco precisas e por isso nunca abolidas. E de tão velhas, parecem que são leis de Deus. Aliadas à ditadura que a falta de oportunidades propicia, conduz à imobilidade. Falta ar nesse país tão vasto. Mudança aqui costuma se dar quando se chega no limite, muitas vezes depois de muito sofrimento.
Temos um longo, muito longo caminho pela frente.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Duas cidades - quantas tribos?


publicado em 26/08/2007
Acabo de vir do Quênia, um país menor que o estado de Minas Gerais, onde convivem 42 tribos, cada qual com sua língua. Lá, custavam a acreditar que o Brasil quase todo falasse português. Mas quantas tribos teria o Brasil?
Rio e São Paulo. As maiores cidades do país, quase vizinhas, considerando o tamanho do Brasil, e tão distintas (no sentido de diferentes, apenas).
Sou naturalmente carioca, não tive escolha, nasci aqui, mas se tivesse, seria. Sou crítica com o Rio, mas quando ouço elogios a São Paulo, e qualquer comparação, faço como Noel: me calo, tudo penso e nada falo. Acho que não cabe, nem a comparação nem a desvantagem para o Rio.
Ouvi de uma amiga gaúcha que as qualidades do Rio acabam sendo seus pecados. Entendi e concordei. O humor, a irreverência, a complacência, o jeitinho que a então capital desenvolveu para driblar toda a sorte de proibições impostas pelos portugueses ao Brasil colônia, acabaram resultando em transgressão, descuido e malandragem, no mau sentido também.
Eu diria que o mesmo aconteceu em São Paulo, em outra direção: trabalho, respeito pelo trabalho, e muita seriedade, quando desvirtuados, resultam em ganância, prepotência, exploração e desigualdade ainda maiores do que as que vemos por aqui.
O ar de cidade de primeiro mundo que reina em alguns quarteirões paulistanos, que os enche de orgulho, é o resultado natural de uma cidade com dinheiro e sem praia. O MAM certamente não é o MOMA, mas o MASP também não é, e por que não poderia ser? Falta dinheiro, cultura, generosidade?
Não espero que nenhum paulista concorde comigo, muitos parecem ter muito pouco senso crítico com relação à sua cidade: por muito tempo acreditaram, ou talvez ainda acreditem, ser o Rio, sozinho, a capital nacional da violência. Recusam-se a entender que empurrar a miséria e as conseqüências dela para baixo do tapete, ou para a periferia, além de ser indecente (ça va sans dire), não só não cola como não é bom negócio. E os limites de uma cidade tão grande podem ficar bem estreitos.
Nesse quesito, não fossem as duas cidades derrotadas, eu ainda acho que a miséria e a violência carioca resultaram um pouco mais “democráticas”. Já que por aqui as zonas se esbarram a ponto de quase se misturar, quem sabe a chance de diminuir as distâncias entre pobreza e riqueza sejam maiores?? Interrogação dupla, porque as balas zunem sobre nossas cabeças, e a caravana passa. Mesmo que seja em graus diferentes, de onde vem tanta anestesia? Podem ser duas cidades queridas, o que não quer dizer que sejam alegres.
Na residência paulistana mais rica que visitei profissionalmente, fazendo uma entrevista muito simpática à dona da casa, havia muitas salas, muitos quartos, copeiro, arrumadeira, muita riqueza. O comentário da minha equipe ao sair me chamou a atenção: não nos foi oferecido um copo d’água, nas várias horas que passamos lá. Nenhuma obrigação de fazê-lo, mas contrastou com a casa seguinte que visitamos, muitíssimo mais simples e muito mais acolhedora. Aceitamos isso naturalmente, mas qual a lógica?
Nada na linha de que o dinheiro não traz felicidade, sempre achei que a classe dominante quer que o povo acredite nisso para deixá-la lucrar em paz. O dinheiro não precisa trazer nenhum ônus, mas uma sociedade mal construída e injusta permite que pessoas argentarias, insensíveis ou mesmo desonestas sejam muito bem sucedidas. E onde há mais dinheiro, maior a chance de pessoas dispostas a tudo para não mudar as regras. Geralmente com bem menos classe do que imaginam ter.
Em São Paulo, tem um monte de gente assim. No Rio também. E como se não bastasse, ainda recebe reforços de todos os cantos do país. Alguém sabia, antes de ver nas páginas policiais, que o senador e ex-governador do Amazonas Gilberto Mestrinho tinha uma bela casa em São Conrado? Eu gostaria de saber a taxa de ocupação anual dos apartamentos da Vieira Souto, em Ipanema. Se adotassem ali as mesmas regras exigidas para o green card americano, que cobra a presença lá de seis em seis meses, acho que a metade dos proprietários ali perderiam seus direitos. É grande o número de apartamentos que vivem fechados.
Sou testemunha o tempo todo do comportamento prepotente, canalha mesmo, da minha vizinhança na zona sul do Rio: madames e empregadas passeiam cachorros sem lenço e sem documento para recolher a sujeira que produzem. Limpar as ruas não custa nada, afinal, dinheiro público não tem dono, e quem quiser que se desvie como puder e trate de conviver com a imundície. Pitbulls sem mordaça ameaçam a todos, sem a menor possibilidade de seus donos se importarem com a clara lei municipal. Nenhuma chance de serem incomodados pela fiscalização. Festas a incomensuráveis decibéis roubam a noite da vizinhança, sem a menor cerimônia e sem que ninguém reaja – meus vizinhos, quando comento, juram que não ouviram nada, mesmo quando incluem uma bateria de escola de samba até as quatro da manhã. Podem diferir na embalagem, lá e cá, mas o conteúdo é o mesmo. Temos "coisas de primeiro mundo", dizem, mas a civilidade ainda é de quinta.
Na verdade, não estou falando apenas de duas cidades, elas comportam muitas cidades partidas dentro delas. Como muitas outras pelo país afora. Um país extremamente autoritário, tão pouco democrático que isso costuma passar até sem ser notado – a não ser que se sinta na pele.
Existe explicação para tanto corporativismo entre a elite branca, que, no entanto é tão pouco solidária entre si?
Acho que apenas a certeza de que, quando a lei não é cumprida, maior a garantia de se contar com a impunidade, quando for necessário.
Daí para o crime organizado, é menos que um passo.

sábado, 1 de novembro de 2008

Nada de novo na frente ocidental


Mesmo que muito do que vejo e leio me desagrade, sou jornalista, preciso me informar e acompanhar o trabalho dos meus colegas.
Tento passar o mais ao largo possível de histórias tristes, deprimentes e/ou escabrosas, em que o fato de saber ou não o que está acontecendo não vai ajudar a ninguém, nem fazer o mundo melhor.
Se um homem caiu num poço na Flórida, isso interessa a quem é próximo dele, aos bombeiros, aos bombeiros da cidade vizinha se tiverem mais recursos, a quem puder ajudar, e certamente quem é especializado sabe onde procurar ajuda, não é preciso botar nenhum anúncio no jornal, e angustiar o mundo inteiro. Não tenho necessidade nem intenção de sofrer além da minha cota.
Mesmo assim, elas nos entram pelos olhos e ouvidos e pior do que elas, porque mais próximas de nós, reações e opiniões, em sua maioria, decepcionantes também.
Tudo o que soube sobre o mais retumbante seqüestro trágico da vez ou da hora, soube pela televisão ou pela imprensa:
- uma menina de quinze anos namorava, desde os doze anos de idade, um tosco ignorante que se achava o dono dela a ponto de acabar por matá-la.
- a polícia que tentou - e não conseguiu - negociar não era a polícia adequada, depois se questionou até o seu direito de estar lá.
- várias emissoras de televisão entrevistaram o seqüestrador enquanto ele tinha armas e vítimas em seu poder. Um infeliz desequilibrado e perigoso, como provou ser, se sentindo cada vez mais senhor e dono da situação, centro das atenções, a mercê de comentários e perguntas de pessoas que não sabem e nem tem que saber como lidar com pessoas nessa situação.
- uma vítima de 15 anos sai e volta ao cativeiro.
- Vi em algum lugar uma faixa com a frase: as autoridades dialogam com um seqüestrador mas não dialogam com a polícia. A polícia civil estava em greve, greve reprimida por outros policiais, militares. Ouvi até que a idéia no momento era tirar a atenção das chocantes imagens de polícia enfrentando polícia, mas isso deve ser fruto da imaginação fértil da oposição ao governo, no caso o de São Paulo. O Brasil tem lugares que parecem o fim do quinto mundo, mas esse era bem perto da capital de São Paulo, onde existe um povo (com as exceções de praxe) que se acha. Bom, aí, cada um que ache o que quiser.
- li hoje uma nota de um colunista de tv, em tom de crítica, mas que acabava por amenizar a cobertura, dizendo que os tablóides ingleses pagariam qualquer coisa, em dinheiro vivo, por uma entrevista com algum envolvido na história. Gostaria de saber se a polícia de qualquer lugar do segundo mundo que fosse, deixaria de isolar não só a área mas qualquer comunicação com o seqüestrador que não fosse a de quem deveria negociar. Essa observação o jornalista da nota não fez.
A mídia então passou a cuidar da ficha policial do pai da menina morta. Não valia nada, parece. Não li nada sobre a aparência do sequestrador, visivelmente espancado, logo depois de preso.
Apenas mais um assassino, e uma menina pobre, de periferia, que não inspiram maior solidariedade fora dos holofotes. Morreu outra da mesma idade, bem perto dali, também assassinada pelo namorado. Quem lembra o nome dela?


Acabei de rever ontem o filme A Primeira Página (The Front Page, Billy Wilder, com a atuação dos sempre magníficos Jack Lemmon e Walter Matthau), e o momento em que a minha profissão consegue ficar melhor na foto é com a frase “minha filha, case-se com um coveiro, com qualquer um, mas não se case com um jornalista”. Isso era em Chicago, nos anos 20.
Ainda hoje, não vivem atropelando qualquer resquício de bom senso, decência ou humanidade ao dar ou cumprir uma ordem? Nem sempre é só pelo salário – e eu compreendo muito bem que um salário justifique escolhas que não faríamos se não fosse por ele, especialmente em um país com tão pouco respeito pelo trabalho alheio.

Ouço que se uma emissora não faz, a outra faz e leva a tão preciosa audiência, como se isso fosse lei divina, sem o menor questionamento da causa a que isso serve. Por que que é que as pessoas querem ver isso? Querem sentir emoções que não sentem na própria vida? Querem ver alguma coisa mais trágica do que a própria realidade para se sentirem menos infelizes? Falta imaginação ou cultura para procurar coisa melhor? Seja o que for, a explicação, e a culpa, me parece que vão bater direitinho onde a maioria dos que dão as cartas não quer que se chegue.
Notícias de lugar nenhum. Longe de nós, é apenas circo, não é vida real. Mesmo a discussão do processo, quando acontece, é distante, quase abstrata. E assim vamos ficando um pouco mais insensíveis, com o passar do tempo. Faz sentido.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Procura-se


A cada nova tragédia anunciada, e mais ainda, a cada reação que vejo elas provocarem, maior o impulso de me voltar para dentro. Menos a ver com fuga e mais com a necessidade de reafirmar o próprio juízo, assim feito esfregar os olhos para ver se o que estamos vivendo é mesmo verdade, porque a realidade muitas vezes tem cara de ficção, e de má qualidade. Mesmo estando em descompasso com o mundo em volta, me recuso a achar que eu é que estou de cabeça para baixo – ou ponta-cabeça, dependendo de onde se lê. Acho, diante das demonstrações de falta de senso, que as pessoas estão desaprendendo em massa a usar a massa cinzenta, deliberadamente ou porque a orquestração esteja cada vez pior, já que nem todo mundo quer ou pode exercer com independência essa nossa faculdade tão pessoal e especial.
E quanto mais gente vejo agora estudando filosofia, mais desconfio que esse estudo deveria que ter vindo muito mais cedo na vida. Não tive nenhuma grande escola, mas acho que elas tinham um grande currículo. Alguma coisa funcionava melhor, e acho que o momento em que se aprende faz uma grande diferença. Adultos, fazemos escolhas, mas a base dessas escolhas está no que recebemos muito antes, mesmo que cada um tenha seu tempo para assimilar. Infelizmente não consigo deixar de associar à televisão, em um país tão carente de opções quanto o nosso, parte da culpa por um comportamento muito mais passivo do que estimulante e educativo, e gostaria muito de viver para ver isso mais pensado e discutido, e essa responsabilidade melhor avaliada.

domingo, 19 de outubro de 2008

Coisas

Um dia, cansada das certezas que há muito me acompanhavam, fui procurar um lugar bem pouco racional, já que ali a garantia é a nossa crença. Como a minha beirava zero, a primeira surpresa foi mesmo o impulso improvável de fazer um mapa astral.
A segunda, ouvir a descrição muito fiel do passado e das relações familiares, sem ouvir de mim nenhuma pista.
E no final, a afirmação da vocação que eu teria para orientar pessoas, especialmente casais. Que astro perdido no espaço teria apontado para isso?! Logo eu, que acho que duas pessoas imperdíveis podem bem se perder no pequeno espaço de um apartamento, que esperança eu teria na humanidade a ponto de orientar alguém?
Digo isso aqui talvez para explicar um pouco do lado B desse blog, que começou para contar viagens reais, feitas com os pés no chão, mas que os ventos acabam volta e meia levando para outra direção.
Apesar do aval dos astros, acredito mesmo é na visão de um artista:
“A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas um milagre; salvo melhor raciocínio” diz um personagem “de vasto saber e pensar” do conto Fatalidade, de Guimarães Rosa, artista mineiro carregado de humor e sabedoria.
Já que estamos aqui, o jeito é apostar no milagre. Descartando as patologias que os vídeos tristemente insistem em mostrar, vejo aqui uma pista para o fato de perseguirmos tanto a paixão, às vezes a um custo alto, e nem sempre conseguindo guardar os limites mínimos de sanidade: a paixão, além da força da natureza e de fonte de alegria, em tese, nos garantiria não sermos esganados com o passar do tempo, não só enquanto ela dura acesa, mas mesmo quando se transforma. Parece que só as verdadeiras vêm com alguma garantia, e precisam ainda, além de sustância, de ter mão e contramão.
Vivi muito, e mesmo assim não acredito que nossos olhos deixem de ser curiosos, apenas às vezes a gente vai se cansando do que já viu e não gostou.
Se o que aprendi pode ser de utilidade pública, deixo para algum desavisado julgar. Mas hoje eu diria que se quisesse conhecer uma pessoa, não olharia para o passado dela nem prestaria atenção nas escolhas do presente. Tentaria descobrir realmente com o que ela sonha. São os sonhos – os sonhos reais - as medidas mais confiáveis, a coisa mais parecida com o que antes tratávamos como intenções, antes que as intenções fossem desmoralizadas e deixadas de lado, já que o lastro das intenções parece ter sido perdido, talvez não para sempre, porque os tempos sempre se renovam.
O sentimento seria uma boa garantia para as ações, não fosse ele tão subjetivo, mutante, camuflado, matizado.
Descobrir que gostar é diferente de querer é descobrir uma realidade partida e inconciliável, na verdade é descobrir um descaminho.
Ainda assim, acho que o ser humano não é uma causa perdida: mesmo com a cabeça no pé, se a cabeça ajuda, a gente consegue até juntar pé com cabeça. E numa coisa posso dizer que acredito:
as melhores coisas da vida não são coisas.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Passas por Mim

A gente passa e pode nem se dar conta, mas na janela de um bonde em Lisboa, passando pela tinturaria Passas por Mim, me ocorreu que os nomes dos estabelecimentos comerciais de uma cidade revelam alguma coisa sobre o seu povo. É claro que não é ciência exata, mas se pesquisas de opinião são levadas tão a sério, me parece muito mais pertinente que isso revele um pouco das aspirações, desejos e gostos dos habitantes do lugar.
Em terras cariocas, os bares carregam a tradição portuguesa, e nos brindam com nomes como Bar Saca Rolhas, Conversas Fiadas, Tio Sobrinho, Primo Amigo, Dona Maria, Topa Tudo, Tentativa, Bofetada, C... de Fora ( é só uma portinha), Primo da Penha, Preto e Louro, Big Bem, Big Boca, Sete e Meia, Alfacinha, Bambi, Bebadela, Gandaia, Zé dos Telhados, Pavão Azul, Miss Brasil, Paz e Amor, e claro, Virgem de Fátima.
Não pensei em uma explicação para isso, mas nos nomes de edifícios encontramos o oposto da singeleza dos bares, e os mais pretensiosos passam por todos os títulos de nobreza e não têm graça suficiente para serem citados, mas me intrigam especialmente dois que tenho perto de casa: La Traviata, que imagino ser uma homenagem à peça de arte e não à transviada protagonista da ópera, e sem nenhuma intenção de estigmatizar as moradoras. O Residências La Maison foi batizado em dia não muito inspirado, e rivaliza com anedóticas traduções como Irmãs Sisters e O Pequeno Stuart Little.
Cidade é lugar de gente e a cabeça das pessoas é sempre uma interrogação.
Pois eu achei, acreditem, em São Paulo, um edifício chamado “Inspiração”!

domingo, 21 de setembro de 2008

Armas de sedução



Da mesma maneira que o pavão abre a cauda como um leque para impressionar a pavoa, e todo aquele belíssimo aparato serve apenas para o momento da seleção sexual (como se isso fosse pouca coisa), os masai pulam. Saltar, quando se reúnem para dançar, é uma competição que garante ao maior saltador a preferência das moças da aldeia.
A cultura aceita a poligamia, e ter muitas mulheres ali parece interessante, pois as mulheres são as grandes trabalhadoras desse povo, mas não é muito fácil obter um casamento. As mulheres masai (a pronúncia é massai) são concedidas em casamento mediante um pagamento em cabeças de gado. Muitos homens se casam muito tarde, quando finalmente conseguem reunir quantidade suficiente de gado para trocar.
Quem constrói a casa é a mulher, coisa que aprendem muito cedo. As meninas conduzem rebanhos de cabra, e fazem a comida.
De todos os mais de quarenta povos do Quênia, os masai são os mais conhecidos, por terem conservado seu jeito primitivo de viver, mas somam dois por cento da população do Quênia. Vieram do Sudão, onde eram a maior e uma das mais importantes tribos, para a região central do país, há cerca de mil anos, e conservam no Quênia práticas de povos nômades.
São temidos caçadores de leões, que hoje não caçam mais. Antigamente, matar um leão era a prova de um guerreiro para entrar no mundo adulto, mas hoje só atacam os animais selvagens se eles ameaçarem seu gado. Ainda assim, atravessam vastas áreas habitadas por leões apenas com o seu bastão de madeira. Alguns usam arco e flecha. Eles não plantam, só criam gado, e o gado é sua maior paixão. Bois e cabras são toda a sua riqueza. Comem carne, mas raramente abatem o gado. Se alimentam de uma mistura de sangue e leite. O sangue vem da jugular do animal, para produzir esse alimento que é um poderoso estimulante.
Vivem na reserva Masai Mara e em torno do parque Amboseli, onde seu gado não pode mais pastar, apenas beber água. Mesmo assim, flagramos algumas invasões no parque. Os hábitos são mais fortes que as leis, naturalmente, e mesmo que os conflitos sejam mais raros, ainda ocorrem.
No Amboseli, a pesquisadora local que administra o projeto dos elefantes – onde todos os cerca de mil animais têm nome - é de origem masai, e isso garante um entendimento maior entre as necessidades do povo e a preservação da vida selvagem.
Depois do jantar, em terra masai, é comum a demostração dos saltos. No nosso hotel de acampamento, era o momento dos que trabalham no hotel exibirem suas habilidades, e isso incluía o nosso chef, que deixava a cozinha e vinha dar seus pulos também.