domingo, 10 de agosto de 2014

Retrato em 3X4, ou em 8.511 km


Vivi um tempo em que muitas pessoas iam presas e muitas vezes não voltavam. Algumas nem chegavam a ser presas, e morriam também. Simplesmente desapareciam. Tive desde muito cedo total conhecimento disso. Adolescente, presenciei várias prisões. Acordei um dia com um homem de metralhadora na mão no quarto onde eu dormia. Não era a mim que procuravam, mas sempre levavam quem queriam. Metade da minha turma de faculdade foi presa. Alguns colegas de colégio também, e pelo menos dois nunca voltaram, e isso apenas no meu pequeno círculo de amizades. Nunca esqueci um olho, numa fresta de porta, se despedindo de um irmão - ele tinha me levado junto, nunca mais viu essa irmã. Um horror que me volta de vez em quando, e quando vejo falarem em ditadura se referindo aos tempos de hoje, me vem aquela frase da Bíblia: Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem. São novos, ou eram inocentes então, ou já estão desmemoriados, não sei. Naquele tempo, nada disso saía no jornal, ninguém virava musa de coisa nenhuma, ou exposta, ou perseguida, o que seja. Simplesmente não se sabia das pessoas que sumiam. Lembro também de um Gip-gip do Ivan Lessa, no Pasquim: "a cada 15 anos o brasileiro esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos." O período varia, mas é uma verdade.

Não é questão de nos conformarmos com o que não é de se conformar só porque já foi muito, muito pior, mas quem conhece duas realidades tem a honesta obrigação de enxergar as diferenças e não aceitar comparações disparatadas, mesmo que metafóricas. Metáfora, assim como ironia, não imprime, uma das minhas primeiras lições de jornalismo.

Minha mãe teve muitos filhos, mas arranjava tempo para trabalhar com umas freirinhas heroicas, suas antigas professoras, que visitavam presos, que muitas vezes, não tinham recebido nem comida naquele dia. Ela não falava muito, não sobrava tempo, e fui conhecer claustrofobia muito depois, mas os horrores das prisões já me abalavam muito cedo. Morei na roça, e nunca quis ter um passarinho preso, nem um cachorro fechado dentro de casa. Fiz ali uma reserva de liberdade, andando sozinha pela mata ao longo da linha do trem, catando framboesas, ou de bicicleta pelas estradinhas, às vezes na garupa do meu irmão mais velho.

O mundo está explodindo em vários lugares, guerras se perpetuam, e um dia parece que vai mesmo explodir a Terra inteira. Tenho filha, vou ter neta, espero que elas não vejam isso. Mas como o mundo é muito complexo para mim, e desisti de carregá-lo nos ombros, faço minhas escolhas. Sou pela lei, e por conta do que expus acima, não conheço regime melhor que o democrático, mesmo que muito imperfeito, mesmo que do lado de baixo do Equador. A ditadura, que já tiveram a vilania de classificar como branda, foi muito, muito ruim para o país e para muita gente. Mas muita gente também nem tomava conhecimento dela quando as piores coisas aconteciam. Alguns nem acreditavam que tortura existisse, ouvi isso na minha própria família.

Fui obrigada, como disse, desde muito cedo, a ter os pés no chão. Ganhar no grito, querer virar a mesa, para mim, é querer ditadura. Faço minha pequena parte, voto com consciência, não acho graça em voto útil, mas acho que votar com inteligência é melhor do que votar com ilusão. Taí uma coisa que a vida que levei me impede de ter nessa hora: ilusão. No entanto, vou morrer tendo esperança de ver as coisas melhorarem, porque tenho visto. Não é muito fácil, não está nas manchetes, dá trabalho, parece muito pouco, mas faz diferença, e dá para se informar razoavelmente quando a gente quer e procura. E escolher o que nos agride menos.

Muita, mas muita coisa mudou. E estamos carecas de saber que esse país não é biscoito, não é preciso ter um engenho para ir até a morte só para não repartir a rapadura. Aqui se mata, e muito, e por muito pouco. Existem alianças necessárias para governar, mesmo tendo que tampar o nariz para ir em frente. E existem candidatos (as) que se pintam como melhores, mesmo sem ser, mesmo sem ter a menor chance, e acabam atrapalhando, só atrapalhando, em benefício apenas de sua própria notoriedade, quem sabe para um outro cargo menos exigente na próxima eleição. É comum isso acontecer, mas quanto mais atrapalham, mais alianças forçam, e o governo acaba resultando pior, quem não viu isso? Ameaçar uma virada de mesa pode ser contundente e estimulante, mas nesse departamento eu não consigo ser romântica.

Não gosto de privilégios, e num mundo tão desigual, fiz minhas escolhas: em primeiro lugar, quero que todo mundo coma. Não passei fome, mas como não consigo nem dormir com fome, deve ser horrível não ter nem a perspectiva de ter o que comer. É preferível que não se transforme o país em terra arrasada para produzir alimentos para todos, e através do lucro de poucos, mas quem tem fome tem pressa, será possível matar meia dúzia de dragões que por aqui habitam desde sempre, desengatilhar trocentas armadilhas e continuar vivo? Alguém falava ou fazia alguma coisa em prol da agricultura familiar há quinze anos? Disso eu não lembro, porque não acontecia. Lembro de apagões, privatizações, muitas, compra de eleições, racionamentos, e o que era ainda pior, muita, muita insegurança e desesperança. E desrespeito, vindo de quem deveria respeitar o povo, e por uma atitude injustificada e estúpida de superioridade fora de lugar, não apenas por ignorância.

Não temos por aqui avós incansáveis, temos e tivemos desde sempre a prática odiosa da tortura por esse imenso Portugal, de povo tido como bonzinho, e elas ainda foram aprimoradas na nossa época mais negra, quem não sabe? Gostamos de ser franceses, mas somos mesmo casca grossa, não prestamos, de perto ninguém por aqui é mesmo normal, melhor desfocar um pouco o olhar, ou olhar de bem longe, quem sabe do lado de lá do Atlântico. Guimarães Rosa diz que a vida quer de nós coragem, concordo, mas acho que ainda exige uma grande dose de sagrada e verdadeira paciência, sem ironia, paciência mesmo, para com essa nossa longa noite de amadores.