domingo, 4 de janeiro de 2009

Terra estrangeira

Viajei por seis cidades na Índia, de carro e avião. As distâncias eram grandes, e mesmo restrita ao roteiro que fui produzir, pude ver muita diversidade. Restrição é realidade constante na visita a uma terra estrangeira, em que estamos sempre sujeitos a um visto oficial e muitas autorizações. Além das restrições impostas pela direção e pelas necessidades do nosso trabalho, sabemos que mesmo em nossa terra, senhores da língua, da cultura e dos nossos direitos, existem portas fechadas e subterrâneos. A rigor, para gravar na Índia uma simples imagem de rua, precisaríamos de uma autorização geral, federal, de uma estadual, de uma municipal, e outra da polícia local. E muitos carimbos. São inventores do carimbo e da burocracia. Especialmente quando você carrega muito equipamento e quer usar um tripé de câmera. Mas podem não ser necessários, como não são. A gente descobre depois.


A campanha publicitária oficial diz: Incredible India! Os mais críticos dizem que está certíssima, mas significa que na Índia nada é crível. Nem o que se pede, nem o que se fala. Um orçamento pode pedir dez vezes o que você deveria pagar. São demoradas e incertas as negociações no país que inventou os negócios. A gente aprende.
E por mais misterioso que possa parecer, eu, que me vi muitas vezes perguntando o que é que eu estava fazendo ali, agora tão informada e vacinada já admito a possibilidade de voltar um dia.


É verdade que circulamos por lá numa época em que o país estava em choque com os ataques a Mumbai/Bombaim. E circular na Índia é outro mistério.


Vacas no trânsito, camelo parado no sinal luminoso, que os pilotos dos riquixás de bicicleta ou de motor simplesmente ignoram, como ignoram nossos sustos e solavancos. Elefante nos ultrapassando, a caminho de uma feira, e estou falando das ruas de Delhi, a capital.






Nunca vi nada igual, e não vimos um acidente sequer, apenas a maior confusão, onde tudo se resolve... buzinando - os carros pedem: buzine, por favor! É buzinando que se comunica – estou chegando, quero passar, estou ultrapassando.


O calendário é outro mistério. Maio aqui é dezembro lá – se você é solteiro, ou está casando ou está correndo sério risco na temporada de casamentos. Mesmo se for estrangeiro e não estiver nem um pouco a fim, vão tentar te arranjar um casamento arranjado, como tentaram com um colega da nossa equipe. Os dias da semana e as horas também são diferentes na Índia. Vimos cortejos de casamento em todos os dias e horários. Ou então, os dias e horários nobres não dão vazão, o que é mais surpreendente e preocupante ainda: sabemos o quanto pode ser prejudicial, para os envolvidos ou para a instituição, tal fanatismo por casamento.



Humor à parte, pode explicar uma população de mais de um bilhão de pessoas, num país que tem a metade da área do Brasil. E um terço da população vivendo em condições miseráveis, a ponto de mencionarem trabalho infantil como coisa corriqueira.
Fotografei muito por lá, mas o que o que a gente mais sente, não consegue documentar. O espírito do país é muito diferente. Tínhamos um guia muito eficiente, mas nada é simples a princípio, e no entanto tudo se mostra simples depois de alguma negociação, alguns sustos e negativas. Você invariavelmente ouve um não ou o relato de uma grande dificuldade sempre que propõe alguma coisa, e nem sempre isso acontece para poderem vender facilidades – embora muitas vezes seja. Nada é claro e direto, mas na maioria das vezes os fantasmas desaparecem, sem explicação ou necessidade de explicação. Pode ser exaustivo e exasperante. Parece que é obrigatório se assustar e sofrer para depois ficar aliviado e satisfeito.
Na chegada, depois de mais de trinta horas viajando, contando tempo de voo e aeroportos, bagagem extraviada, burocracia, saímos do aeroporto às duas da manhã, as granadas explodindo em Bombaim e um despachante de alfândega me assustando, primeiro pelo telefone, com a burocracia, depois ao vivo, por conta do caminho que o motorista pegou para o hotel - que eu não conhecia, mas que estava certo. Stress desnecessário, mas com fins lucrativos.
Encontramos no caminho pessoas maravilhosas, sábias, acolhedoras, simples e receptivas, sempre dispostas a ajudar e a resolver. Desigual. Como desigual é a vida em Bombaim, onde poucas quadras separam a “casa” de vinte e sete andares, ainda em construção, de um dos dez homens mais ricos do mundo, dos chawls, os cortiços que são residências típicas até hoje na cidade mais progressista e rica da Índia. Nessa lista dos dez mais ricos, tem mais um ou dois indianos.



Folheando uma revista Elle, no avião de volta, li a história de um casal que morreu no Oberoi, um dos hotéis atacados e ocupados. Ela, francesa de origem indiana, muçulmana, tinha resolvido viver na Índia em busca das raízes, de proximidade, de solidariedade. Bem sucedida, Lumia era a criadora da grife Princesse Tam-Tam, que vendeu para os japoneses. Queria criar uma ONG para órfãos em Bombaim. No site da grife, ela dizia que o que mais detestava eram as injustiças da sorte. Mais uma história chocante e triste, parte da vida desse país tão colorido, agitado, pacífico, e sem a menor dúvida original e que consegue levar a vida com humor. E muito jeitinho. Desconfio que os portugueses não ocuparam apenas Goa por lá, tais as semelhanças que percebi. O maior mercado de temperos e especiarias da Ásia está lá, e parece igual ao que devem ter encontrado em 1500.


Perguntei a um indiano qual o sentimento que eles tinham com relação aos ingleses. Ele respondeu que não havia amargura com relação a eles, não mais do que com relação aos estúpidos marajás. Não consigo ver com bons olhos qualquer colonizador, mas pelo menos no caso da Índia, ficaram os trens, e a língua mais universal do planeta.
E o humor, seria herança britânica? Foi lá que vi a frase, estampada numa sacola de livraria em Pune:
- Esses são os meus princípios – se você não gostar, eu tenho outros.
(Groucho Marx)

2 comentários:

isabella saes disse...

Suas impressões da Índia são muito parecidas com as que tive da China. Esses vizinhos devem ter realmente muito em comum. Beijos!

vanda viveiros de castro disse...

Bella, o Oriente, com todo respeito, me parece uma grande bagunça - tirando o Japão, que eu prezo muito. Bom, cada um com suas qualidades e pecados - quem somos nós para falar deles, mas vejo na cultura ocidental uma evolução, sim, sem querer ofender ninguém... bjs!