sábado, 19 de junho de 2010

Um Barão e um Violão


Papéis amarelados, guardados numa pasta de papelão, ganham sobrevida aqui. Se escaparam de algumas vistorias e não foram para o lixo talvez tenham alguma coisa a nos dizer, mesmo que num dado momento nossa memória comece a falar grego, e não encontre eco entre a maioria dos olhos e ouvidos que nos cercam.
Tenho poucos registro das primeiras entrevistas que eu fiz, e se nossa memória é regida pelas emoções, pior ainda, arquivos feitos na adolescência não serão confiáveis aos olhos de agora.
Mas os recortes da pasta ajudam a lembrar detalhes de duas matérias que não esqueci: um barão de mentirinha e uma estrela que escolheu sua viola como sobrenome.
Há pouco tempo encontrei um ator que, ao saber que eu tinha entrevistado o Barão de Itararé, me perguntou como era sua voz, já que estava montando uma peça com suas frases e textos de humor e não achou nenhum registro de sua fala. As frases humorísticas fizeram a fama de Aparício Torelly, jornalista gaúcho que, segundo ele próprio, depois de fundar e afundar jornais no Sul,veio para o Rio nos anos 20. Trabalhou em O Globo e depois em A Manhã, que sem o til deu o título para a mais famosa de suas criações, o jornal “A Manha”. O título de nobreza veio de uma batalha que não se deu, apesar de muito anunciada pela imprensa, a batalha de Itararé.
Da voz eu não lembrava particularmente, mas lembro de como me recebeu, e foi como abri a matéria:
– Entre e sente-se na cadeira principal, disse o barão, abrindo uma fresta da porta da cozinha. Há uma cadeira disponível aí, não há? Havia, entre montes de pilhas de jornais, livros, revistas e folhetos que ocupavam quase toda a sala.
- Fique à vontade e não repare, continuou Aparício Torelly, pois eu sou o mordomo do Barão, o cozinheiro, enfim, aqui eu faço tudo.
Isso explicava o caos do apartamento em que morava no Catete, ao lado da Praça São Salvador.
Ele tinha voltado a ser notícia por ter ido ao Ministério da Educação pedir autorização para participar, como ouvinte, do curso de Biônica Aplicada da UFRJ, no campus da Ilha do Fundão. Aos 75 anos, afirmava que tinha muito o que aprender.
-“Há muita gente que pensa que o coração é o órgão mais importante do nosso corpo. O meu já esteve parado três anos atrás. O que há de mais importante mesmo em nós é o cérebro. O coração alimenta o cérebro através do sangue, funcionando como uma caixa d'água a seu serviço. A maior força do universo é a força do nosso pensamento, mas os homens são dominados pelo ódio, que é a pior arma de destruição. O homem que constrói armas de destruição não constrói nada, está buscando a própria ruína.
Os russos afirmaram uma verdade: Jesus era um astronauta que veio de um desses planetas situados entre Marte e a Terra, e chamados de poeira cósmica. Ele veio para pacificar a Terra, pois as ondas maléficas que estavam sendo emanadas de nosso planeta contaminavam o universo”.
_ “A base da biônica repousa no estudo do cérebro humano. É uma mistura de BIologia com eletrÔNICA. Os matemáticos, seguindo o caminho da Física, chegaram à Eletrônica, que é a ciência que estuda os átomos em ação. Pela Química, chegaram à Biologia, a mais importante ciência que existe: nela se baseiam todas as outras.
A matéria continua:
Os animais, em sua opinião, são tão inteligentes quanto o homem, ou mais. Os insetos tem, inclusive, religião. Em sua casa, cria formigas: o barão conversa com elas que são, segundo afirma, os animais mais admiráveis que existem.
Ele não mata nenhum animal e mesmo as baratas que aparecem em sua casa não são afugentadas: ele lhes dá comida. Vegetariano, afirma que carne é cadáver em putrefação e diz que açúcar refinado, como todo mundo come, provoca a arterioesclerose. Ele só come glicose, tirada da cana de açúcar, frutas e vegetais. É gaúcho e se acostumou a tomar mate amargo.
Sem querer desmerecer a gentileza que me fez, só hoje desconfiei que foi por isso que saí de lá com uma caixa de bombons...
A matéria saiu em 1970, no Correio da Manhã, com o título de:
“O Barão, de nôvo: agora êle diz que é a serio”.

A segunda matéria era sobre o jovem e mesmo assim o mais famoso calouro do Instituto Villa-Lobos: Paulinho da Viola.
Vestibulando mas felizmente sem o estresse habitual do vestibular, como ele lembrava, pois a Escola de Música não tinha ainda excesso de candidatos: - "O que é ótimo, pois faz com que seu vestibular tenha puramente o propósito de conhecer os futuros alunos e selecionar melhor as turmas, tirando o aspecto triste do vestibular que é o de barrar candidatos".

Da matéria, que saiu a 19 de fevereiro de 1970:

Paulinho da Viola, o colega que talvez nenhum vestibulando pudesse pensar em ter, prestou provas de Português, Matemática, Espanhol (a língua pela qual optou), Teoria e Solfejo.
Fez curso de contabilidade e chegou a trabalhar como contador numa firma na Rua do Acre, mas felizmente sua verdadeira inclinação prevaleceu – está com o firme propósito de cursar os quatro anos de escola, e se redimir do mau aluno que foi (segundo ele “aluno- média-seis”), pois acha importante se organizar, pois sem disciplina é difícil conseguir alguma coisa.
-“É difícil viver de música aqui no Brasil, principalmente para quem faz música séria”.
Sua verdadeira escola foram as rodas de samba e de choros da casa do pai.
-“Sempre fiz samba e descobri que é impossível uma pessoa se desligar do que já tem dentro de si, do que faz parte da gente”, prossegue Paulinho, com toda a sua simplicidade, e confessa que se acha fortemente ligado à Portela, escola que freqüenta há anos. Seu maior sucesso do momento, talvez a mais aclamada de suas músicas, tem seu fundo cultural, ligada ao amor que tem por sua escola preferida: o samba “Foi um rio de passou em minha vida” nasceu inspirado no título de um livro, “Por onde andou meu coração”.
“Para se fazer um samba é preciso uma forte dose instintiva, principalmente, mas é sempre necessário que se adquira um pouco de técnica, um certo conhecimento de música”.

Carioca, nascido e criado no Rio, Paulinho tinha planos singelos: uma tournée pelo Brasil, com um grupo de amigos, talvez, e um show teatral. Seu compacto gravado, um duplo, tinha se tornado o hino da Portela. E esse rio só fez se tornar cada vez mais caudaloso.

Nenhum comentário: