domingo, 26 de agosto de 2007

DUAS CIDADES - QUANTAS TRIBOS ?


Acabo de vir do Quênia, um país menor que o estado de Minas Gerais, onde convivem 42 tribos, cada qual com sua língua. Lá, custavam a acreditar que o Brasil quase todo falasse português. Mas quantas tribos teria o Brasil?
Rio e São Paulo. As maiores cidades do país, quase vizinhas, considerando o tamanho do Brasil, e tão distintas (no sentido de diferentes, apenas).
Sou naturalmente carioca, não tive escolha, nasci aqui, mas se tivesse, seria. Sou crítica com o Rio, mas quando ouço elogios a São Paulo, e qualquer comparação, faço como Noel: me calo, tudo penso e nada falo. Acho que não cabe, nem a comparação nem a desvantagem para o Rio.
Ouvi de uma amiga gaúcha que as qualidades do Rio acabam sendo seus pecados. Entendi e concordei. O humor, a irreverência, a complacência, o jeitinho que a então capital desenvolveu para driblar toda a sorte de proibições impostas pelos portugueses ao Brasil colônia, acabaram resultando em transgressão, descuido e malandragem, no mau sentido também.
Eu diria que o mesmo aconteceu em São Paulo, em outra direção: trabalho, respeito pelo trabalho, e muita seriedade, quando desvirtuados, resultam em ganância, prepotência, exploração e desigualdade ainda maiores do que as que vemos por aqui.
O ar de cidade de primeiro mundo que reina em alguns quarteirões paulistanos, que os enche de orgulho, é o resultado natural de uma cidade com dinheiro e sem praia. O MAM certamente não é o MOMA, mas o MASP também não é, e por que não poderia ser? Falta dinheiro, cultura, generosidade?
Não espero que nenhum paulista concorde comigo, muitos parecem ter muito pouco senso crítico com relação à sua cidade: por muito tempo acreditaram, ou talvez ainda acreditem, ser o Rio, sozinho, a capital nacional da violência. Recusam-se a entender que empurrar a miséria e as conseqüências dela para baixo do tapete, ou para a periferia, além de ser indecente (ça va sans dire), não só não cola como não é bom negócio. E os limites de uma cidade tão grande podem ficar bem estreitos.
Nesse quesito, não fossem as duas cidades derrotadas, eu ainda acho que a miséria e a violência carioca resultaram um pouco mais “democráticas”. Já que por aqui as zonas se esbarram a ponto de quase se misturar, quem sabe a chance de diminuir as distâncias entre pobreza e riqueza sejam maiores?? Interrogação dupla, porque as balas zunem sobre nossas cabeças, e a caravana passa. Mesmo que seja em graus diferentes, de onde vem tanta anestesia? Podem ser duas cidades queridas, o que não quer dizer que sejam alegres.
Na residência paulistana mais rica que visitei profissionalmente, fazendo uma entrevista muito simpática à dona da casa, havia muitas salas, muitos quartos, copeiro, arrumadeira, muita riqueza. O comentário da minha equipe ao sair me chamou a atenção: não nos foi oferecido um copo d’água, nas várias horas que passamos lá. Nenhuma obrigação de fazê-lo, mas contrastou com a casa seguinte que visitamos, muitíssimo mais simples e muito mais acolhedora. Aceitamos isso naturalmente, mas qual a lógica?
Nada na linha de que o dinheiro não traz felicidade, sempre achei que a classe dominante quer que o povo acredite nisso para deixá-la lucrar em paz. O dinheiro não precisa trazer nenhum ônus, mas uma sociedade mal construída e injusta permite que pessoas argentarias, insensíveis ou mesmo desonestas sejam muito bem sucedidas. E onde há mais dinheiro, maior a chance de pessoas dispostas a tudo para não mudar as regras. Geralmente com bem menos classe do que imaginam ter.
Em São Paulo, tem um monte de gente assim. No Rio também. E como se não bastasse, ainda recebe reforços de todos os cantos do país. Alguém sabia, antes de ver nas páginas policiais, que o senador e ex-governador do Amazonas Gilberto Mestrinho tinha uma bela casa em São Conrado? Eu gostaria de saber a taxa de ocupação anual dos apartamentos da Vieira Souto, em Ipanema. Se adotassem ali as mesmas regras exigidas para o green card americano, que cobra a presença lá de seis em seis meses, acho que a metade dos proprietários ali perderiam seus direitos. É grande o número de apartamentos que vivem fechados.
Sou testemunha o tempo todo do comportamento prepotente, canalha mesmo, da minha vizinhança na zona sul do Rio: madames e empregadas passeiam cachorros sem lenço e sem documento para recolher a sujeira que produzem. Limpar as ruas não custa nada, afinal, dinheiro público não tem dono, e quem quiser que se desvie como puder e trate de conviver com a imundície. Pitbulls sem mordaça ameaçam a todos, sem a menor possibilidade de seus donos se importarem com a clara lei municipal. Nenhuma chance de serem incomodados pela fiscalização. Festas a incomensuráveis decibéis roubam a noite da vizinhança, sem a menor cerimônia e sem que ninguém reaja – meus vizinhos, quando comento, juram que não ouviram nada, mesmo quando incluem uma bateria de escola de samba até as quatro da manhã. Podem diferir na embalagem, lá e cá, mas o conteúdo é o mesmo. Temos "coisas de primeiro mundo", dizem, mas a civilidade ainda é de quinta.
Na verdade, não estou falando apenas de duas cidades, elas comportam muitas cidades partidas dentro delas. Como muitas outras pelo país afora. Um país extremamente autoritário, tão pouco democrático que isso costuma passar até sem ser notado – a não ser que se sinta na pele.
Existe explicação para tanto corporativismo entre a elite branca, que, no entanto é tão pouco solidária entre si?
Acho que apenas a certeza de que, quando a lei não é cumprida, maior a garantia de se contar com a impunidade, quando for necessário.
Daí para o crime organizado, é menos que um passo.

3 comentários:

Selma Boiron disse...

Um post tão brilhante sem NENHUM comentário??? Ah, sei...Ficaram pensando, pensando e não conseguiram dizer mais nada. Compreensível, cara blogueira...

vanda viveiros de castro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
vanda viveiros de castro disse...

Selma, você veio até aqui!Obrigada e sensibilizada!! Esse blog é quase particular, vou espalhando muito devagar. Mesmo assim, volta e meia tenho surpresas inusitadas, tenho leitores tímidos...a maioria não comenta, ou prefere comentar no e-mail. Gosto de escrever, Mesmo sem pretensão e "audiência, mas é claro que fica muito mais divertido quando a gente tem respostas e pode trocar aqui...um beijo.