quarta-feira, 13 de maio de 2009

Perto, longe, mais perto


Desde que soube do fim dos tiroteios, por conta da saída dos traficantes do Morro Santa Marta, tive vontade de ir lá. Não chegaria a sugerir uma visita ao morro, deixo o olhar estrangeiro para os turistas e seus jipes, que sobem e descem a favela da Rocinha querendo conhecer uma realidade que, lá no fundo, talvez tenha suas raízes mais próximas deles do que possam imaginar.
Antes da invasão do tráfico, os morros eram territórios pobres, mas livres. Cheguei a subir alguns, como jornalista, sem nenhum aparato de segurança. E antes da remoção de algumas favelas da Zona Sul, tudo era muito perto, e a cidade não parecia tão partida assim, apesar da desigualdade econômica.
Eu não teria a mesma visão do jovem articulista do Jornal do Brasil, que escreveu o que reproduzo abaixo, mas gostei das informações e da sinceridade que ele passa.
Tenho ainda saudades do velho JB... um jornal que tinha de Drummond a Clarice Lispector em seus quadros, não deveria chegar ao estado em que se encontra.
Mesmo assim, pela diversidade, ainda revela algumas surpresas quando leio, aos domingos.
Voltando ao Morro, faltou aqui falar do muro. As comunidades têm medo de protestar contra eles e perder os benefícios que estão finalmente conseguindo.
Os muros nas favelas cariocas subirão em silêncio? Se é impossível demarcar e fiscalizar, de que adiantará um muro? Construirão, com ou sem muro, como fazem e farão em qualquer outro morro da cidade, com favela ou não. Sem nenhum apreço pela Mata Atlântica.
Lamento, mas esses muros não resistem a nenhum argumento.



O artigo é do Jornal do Brasil de 10/05/2009. As fotos fiz a partir do Morro do Corcovado - o ponto de vista é bem próximo.

SUBIR O SANTA MARTA, UM PROGRAMA LEGAL
Rio Acima - Marcelo Migliaccio -

O melhor programa no Rio atualmente não está em nenhum guia turístico, nem nos suplementos de jornais e revistas dedicados ao lazer. A boa é rumar para o bairro de Botafogo e dar um passeio até o alto do morro Santa Marta (Dona Marta é o nome da comunidade), onde agora dez mil pessoas vivem em paz depois de anos espremidas entre o jugo do crime organizado e a truculência policial.
Ocupado pela PM desde novembro, o Santa Marta virou uma pacata cidade do interior. O bondinho que sobe vagarosamente - e precisa de uma ventilação melhor, é verdade - revela a cada uma das cinco estações um Rio que os cariocas dos asfalto não conhecem.
Por enquanto, quem está aproveitando mais o novo point são os turistas estrangeiros, sempre destemidos e dispostos a conhecer muito mais do que indicam os folhetos dos hotéis e albergues. Os cariocas da gema, doutrinados pelo preconceito que impede alguns até mesmo de olhar para as favelas, desconhecem, por exemplo, que do alto do Santa Marta tem-se uma vista incrível da Lagoa Rodrigo de Freitas, com o mar de Ipanema ao fundo, assim como da Enseada de Botafogo e do Pão de Açúcar, cartões-postais que a violência dos fuzis e metralhadoras nos sonegou até recentemente. Agora sim, nesse clima de paz, o Cristo Redentor parece realmente abençoar aquela comunidade. Do alto do Santa Marta, a estátua é apreciada bem de frente, grande como nunca foi imaginada pelos que vivem ao nível do mar.
Há, no entanto, algo ainda melhor do que a vista: conversar com os moradores, gente trabalhadora com a qual topamos diariamente nos servindo nos bares e restaurantes, cuidando da limpeza dos prédios em que moramos e dos nossos locais de trabalho, varrendo as ruas. Pessoas que trabalham duro para que ali também haja até alguns universitários. Numa incursão ao Santa Marta, descobrimos que essas pessoas têm muito a nos contar, e estão ávidas por ouvir o que temos a dizer. Só ali podemos conhecê-las sem as barreiras sociais e econômicas que nos separam no dia a dia. Que as tornam invisíveis ao nosso olhar elitizado. O gueto agora pacificado prova que esse abismo entre nós e eles é mais que um pecado. E um desperdício.
Encontrei no bondinho (veículos não sobem, o que só reforça o clima interiorano) José Carlos e Elmira, casal recém chegado do Piauí. Hospedados temporariamente na casa de parentes, trouxeram a pequena Cíntia, de um ano, que carrega no brilho dos olhos toda a esperança da família. José Carlos não conseguia disfarçar a angústia de quem procura desesperadamente trabalho. Com mais sorte, Elmira já havia conseguido vaga de doméstica lá embaixo, mas o marido, forjado no machismo nordestino, parecia sentir-se ainda pior com o fato de ela ser momentaneamente a mantenedora.
- Vou conseguir um emprego também, se Deus quiser - dizia ele, mais para si mesmo e para a mulher do que para mim.
Também conheci o pedreiro Cleiton dos Santos, 17 anos, que abandonou os estudos aos 14, primeiro por preguiça e depois para trabalhar e ajudar a família. Ele trazia numa gaiola enferrujada um passarinho verde todo estropiado.
- É uma saíra, caiu do ninho, e eu peguei para cuidar - contava o rapaz, contemplando aquela frágil metáfora viva de uma gente ao mesmo tempo bela e sofrida.
Crianças soltando pipa, jogando bola de gude e futebol; mulheres conversando, churrascos na laje; famílias aliviando-se do calor em piscinas de plástico. Domingo.
Na porta de seu barraco de madeira úmida, o biscateiro Edson do Carmo dos Santos, 36 anos (aparência de 50), cinco filhos e três netos, me falou de seu sonho: ter uma conta de luz.
- Para a gente poder chegar numa loja lá embaixo e comprar uma mercadoria.
Ele só lamentava não ter ainda coragem de sair à noite:
- Até agora não tenho nada do que reclamar dos PMs, mas ontem a cerveja acabou, e não fui comprar. Sabe como é...até provar que focinho de porco não é tomada...fica a palavra deles contra a minha e como morto não fala...
Claro, ainda há alguns constrangimentos. Depois de tantos anos entrando ali só para dar tiros, é natural que os 120 policiais que ocupam o morro despertam medo e desconfiança em muitos moradores, principalmente nos jovens e nas crianças. Alguns adolescentes lamentavam a ausência de bailes funk e a presença constante dos PMs próximos às suas rodinhas. Disse a eles que, se querem cidadania, terão de se acostumar.
Os idosos, porém, estão adorando. Não há mais no ar o silêncio nervoso que precede um tiroteio. Os traficantes fugiram, e a PM desfila o seu comando azul pelas vielas chefiada por uma mulher - tinha que ser - a capitã Priscila.
- Alguns já me dão bom-dia - comemora a policial.
O ar que se respira no Santa Marta hoje é leve. As pessoas andam de cabeça erguida, visivelmente felizes por receberem atenção do poder público, e não mais apenas os seus caveirões blindados. Depois de 70 anos de abandono, por todos os lados há operários do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC)a construírem novas moradias, creches, escolas profissionalizantes. E a reconstruírem a autoestima de milhares de pessoas que, apesar de nunca terem cometido crime, haviam sido condenadas à indigência, à sujeira e ao abandono, como ainda ocorre em cerca de 600 favelas.
É hora de os cariocas bem nascidos conhecerem a hospitalidade do Santa Marta.
Vão se deparar, é verdade, com muitos valões a céu aberto, crianças com o nariz escorrendo e a barriga inchada de vermes, casas insalubres onde ser humano nenhum deveria viver. Sentir, no entanto, o calor humano, a simplicidade e a receptividade desarmada não tem preço. E cura qualquer depressão.
Por isso no proximo fim de semana, esqueça o shopping center, a praia sempre igual, a orla da Lagoa e as filas do cinema. Vá ver de perto como é linda a vida acontecendo num dia de sol e paz no alto do morro Santa Marta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Isso é prestar serviço, fazer jornalismo alternativo e bom. Obrigada por esta pagina. Vou mostrar para meu filho que tem uma grande vontade de andar por favelas que, fora do Brasil, tornaram-se lugares miticos. Por causa do "Cidade de Deus" mas tambem pelo trabalho que tem sido feito por arquitetos e artistas de todo o mundo em cima da "estetica da favela"
AV

vanda viveiros de castro disse...

Quando ele vier aqui, subimos o Santa Marta. Quero muito fotografar de lá. E pela disposição da Capitã Pricilla (acabei de ler uma entrevista com ela) pelo menos esse morro vai ficar em paz.