
Além do pequeno espaço que ocupamos no Universo, seja por escolha ou circunstância, temos ainda os lugares que o nosso espírito ocupa.
Viajo fácil. Tenho minhas preferências, mas acabo gostando de quase todos os lugares por onde passei. Eles não são iguais, mesmo os que parecem se equivaler. Não está nas ruas, na língua falada, ou na geografia a diferença.
Desconfio que isso seja um lugar comum: o tempo que leva pode variar de pessoa para pessoa, mas Nova York é uma cidade que acaba capturando um pedaço do nosso coração. É uma cidade que parece oferecer a todos uma experiência particular, mesmo sendo habitada e visitada por vários milhões.
A cidade não contribui só com o cenário, sua arquitetura monumental, o contorno dos rios. É movida à energia dos sonhos, do trabalho, das asperezas da vida e do suor de tanta de gente, da mistura de talentos aportados ali até hoje e desde sempre.
Antes de pegar o avião pela primeira vez, ela me foi pintada com cores terrivelmente sombrias. Custei a perceber que era porque fazia parte de um país que representava tudo de ruim para um Brasil sob tortura e ditadura.
Entendi menos ainda ao sentir os ares de liberdade que sopravam na cidade, os filmes de protesto que podia ver ali, tão diferente do país sufocante que eu deixei no início dos anos 70. Comparado com o meu, conheci um país explícito, escancarado, que falava – talvez não tão abertamente quanto hoje - de seus problemas e dos problemas do mundo.
Mas Nova York sempre teve vida própria. Ali podia haver, como houve, um desfile da estilista Zuzu Angel com estampas de protesto pelo filho desaparecido, e promovido pela Embaixada do Brasil! Tudo era confuso para uma pessoa começando a viver, mas já com percepção para ir guardando peças que só se encaixaram anos depois. E anos depois, a própria Zuzu desapareceu, no Brasil, num país com muito menos satisfações e explicações.
Não foi um mar de rosas a minha primeira temporada novaiorquina, mesmo contando com acolhimento familiar, e entre um apuro e outro, naquele momento eu fui um pouco mais feliz ali. Era eu comigo mesma, desbravando o mundo. Ventos de liberdade me levavam de bicicleta pela Ilha de Manhattan. Não podia imaginar que voltaria tantas vezes.
A experiência de trabalhar, por duas vezes, foi tão difícil quanto estimulante. Na primeira, andar muito à pé numa cidade feita para isso. Andava cinquenta quadras sem sentir. Na segunda, descartando maiores apuros, ficaram na lembrança os pequenos prazeres, donuts e um café quente no ar frio da janela do trem.
Quando chegava na estação atrasada, tinha que comprar o ticket dentro do trem, e ouvir sermão do fiscal - era mais caro do que no guichê da plataforma: “Por que pagar mais caro pela mesma coisa? A hora de sair de casa tem que incluir o tempo de comprar o bilhete!” Tudo diferente no país rico em que qualquer níquel tem valor, e controlam até o que você faz com o seu dinheiro.
NY para mim sempre ultrapassou os meus limites.
Fui feliz ali todas as vezes, mas nunca em paz. Dilema, descoberta, prazer, atração, desolação, frustração, tristeza, deslumbramento. Mas sem ideologia, sem lenço e sem documento, julgando apenas pelo sentimento, um quase paraíso.
Hoje, liguei o rádio e ri, porque o Lulu Santos cantava: “não vá para Nova York, amor, não vá...”.
Pois eu vou. Atrás de uma filha, coisa que mãe só não faz se não tiver mesmo jeito. Além da filha, uns panos e uns pratos, espero trazer na bagagem uma nova camiseta para dormir já atualizada, I Love New York com o skyline mais famoso do mundo, mas sem as torres gêmeas.
Quando você tem dentro do peito mais de um lugar, não sendo milionário ou caixeiro viajante, está perdido para sempre. Não sei se é o coração da gente, mas será que existe algum lugar no mundo onde não falte um pedaço?
