segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Essencial, imortal e infinito


O que arde cura, o que aperta, segura - por que agora esse pensamento saído de um tempo em que se acreditava em certezas, e se havia sofrimento, maior era a garantia?

Como também já houve o tempo da taquigrafia, da datilografia, do mimeógrafo, e por que não, da máquina de escrever, embora não esteja assim tão extinta quanto estão os dinossauros. Eles não andam mais por aqui mas deles ainda conservamos muitos ossos, e também há quem se dedique a eles com devoção.
O que podemos considerar que seguramos e nos é assegurado num mundo mutante e na corda bamba, que passa celerado assustando tanto o passado? mas que conserva seus dinossauros e dinossauros humanos ainda movidos à devoção?

O ritmo e as mudanças podem até assustar, mas são, deveras, razão para assombro, pois que ao longo do tempo a humanidade evoluiu e muito, até no sentimento humanitário. Se hoje nos chocamos com aberrações que deveriam ter sido extintas em algum lugar do passado, é porque a evolução é o padrão, e é o que se espera da humanidade, sempre. A evolução e o passado não se estranham, já que estão sempre consequentemente ligados.

Tenho me voltado demais para o passado, desenterrando histórias de avós e bisavôs, e não foi nem ideia minha, portanto se existem pessoas querendo saber de bisavôs e de seus feitos, se em nome da História se olha para trás, a celeridade, a ousadia, a impessoalidade, o descompromisso, as desamarras, a inconstância, a fila que anda, anda, anda, não teriam também sua cota de dias contados? Será que o mundo, que não sabe mais o que fazer com o seu lixo, tanto lixo, reserva um bom lugar para uma quimera?
Quisera. Quem dera.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Notícias


Quando eu ainda buscava ideias de pautas, mais de uma vez, por motivações variadas, sugeri um programa em torno da felicidade – o que é - se existe - onde ou como encontrá-la, podemos viver sem ela ? ( "risos" para um formato que, pela longa permanência no ar, virou motivo de troça, para usar uma palavra de outro tempo).

Numa dessas vezes fui motivada pela resenha de um livro que argumentava justamente que a felicidade não é mais possível no mundo atual, já que ninguém é uma ilha e recebemos notícias de tragédias, tristezas e males vindos de todos os lados do planeta. Impossível ser indiferente ao que acontece na Síria, Irã, Iraque, em quase toda a África, se eterniza no Afeganistão, no Vietnã um pouco mais atrás, atrocidades sem nome e sem data, dentro e fora do mapa.
“Você parece carregar as dores do mundo” ouvi de um terapeuta e fiquei até hoje sem entender, porque a terapia foi curta e também porque como não sentir dor vendo crianças vivendo na rua, o que tinha sido o meu comentário ali. Então não é comigo? É comigo, sim, é com todos, muito mais até com os que não sentem que é com eles, mas o que fazer? Não ver? Não ler? Não fazer, já que uma gota não transforma um mar?
Comecei a separar: o que me interessa é o que é possível transformar com a mobilização que uma notícia tem o poder de provocar. Não é pouco, mas a cobertura dos fatos é feita seletivamente, e muito frequentemente, de maneira arbitraria. Vai ficando difícil, quase impossível encontrar isenção e honestidade no que se noticia, como é impossível achar um equilíbrio entre boas e más notícias. É mesmo desequilibrada a cobertura midiática.

Viciada em notícia desde criança, quando meu pai chegava com O Globo, para os quadrinhos que eu e meus irmãos seguiam, o Jornal do Brasil para todo o resto, O Cruzeiro quando atraía mais do que a televisão, que eu não via, outro dia, sem nenhum motivo aparente, me veio uma lembrança esquecida, da primeira redação em que trabalhei: logo que entrei no jornal fui escalada para selecionar notícias que importassem e que coubessem em pequenas frases, que eu deveria mandar para uma empresa que tinha um contrato com o jornal e as exibia, passando numa faixa luminosa, emolduradas pelo morro do Pão de Açúcar, uma cena que me chamava a atenção desde criança. Como pude esquecer?
Era por volta desse tempo que Caetano, o dos bons tempos, perguntava: “Quem lê tanta notícia?”.
As notícias andam mentindo muito, e eu não gosto de me enganar, por isso estou me voltando contra o tempo, o relógio, a atualidade, tenho agora mais prazer com coisas atemporais, incluindo aí as memórias que guardo, bem fora da ordem. E falando de mim posso estar falando de muita gente, mesmo não esquecendo de quem precisa ou insiste em lidar com as últimas notícias, mas em tempos de infelicidade quase plena, o caminho pode ser seguir o clichê: olhar para as pequenas coisas, e deixar o mundo um pouco de lado.
Uma biografia de Saint-Exupéry – quinhentas e tantas páginas, em inglês, com letrinha pequena, rende que é uma beleza, leio aos poucos para, a cada volta, mergulhar nas suas aventuras, hora no deserto, hora no ar, em Paris, na África ou na América do Sul. Nas asas da Aeropostale, que voaram antes que as da Panair – e essa é outra história boa de ler.
Um pensamento do escritor acima me pareceu particularmente atual – ele falava de um momento, na década de 30, na Europa, em que o mundo estava virando um lugar cada vez menos hospitaleiro:
“O essencial é continuar vivo. Não podemos esquecer disso, mas hoje os viventes são obrigados a se defender como se estivessem sendo ameaçados o tempo todo”.
Vivemos muitas batalhas e ataques por aqui. As guerras, as ameaças, mudam de endereço, mudam de padrão e muitas vezes se repetem sem que muita gente se dê conta. A culpa é toda das notícias, que não dão conta de nos contarem o essencial.

sábado, 24 de janeiro de 2015

O afeto que se encerra


Uma jovem amiga - amiga por tabela, mas nem por isso menos querida, me surpreende dizendo que quer conversar comigo sobre...casamento!

Abri um dia o livro Mentes Inquietas, e fechei na primeira página para nunca mais abrir porque ali descobri que a minha não sossega nem quando durmo. Talvez um terço, se não mais desse tempo infernal em que a minha trabalha, eu tenha dedicado a esse espinhoso e insolúvel problema que persegue democraticamente casados e descasados, por isso posso dizer que minha amiga procura uma fórmula que ainda não foi inventada, nem nunca será, desconfio.

Casamento foi um jeito legal de organizar a sociedade, de dar um rumo e um cunho nobre aos nossos instintos selvagens, depois que saímos das cavernas e nos agrupamos em sociedades que se pretendiam civilizadas. Só isso? Os humanos não tiveram que ser inteiramente domados para isso - embora muitos necessitem, sim, de chibatadas por comportamentos inaceitáveis em qualquer espécie, seja humana ou irracional. Essa solução partiu da exploração de instintos autênticos em inúmeras espécies animais, de escolha, exclusividade, necessidade de proteção da prole. Procriar é um projeto a dois, a não ser que, no momento da partida, se decida e explicite o contrário. Caso contrário, decidir sozinho nesse campo é deslealdade das mais deploráveis. Porque o resultado de uma gravidez não é nada descartável, é fonte de alegria e problemas enquanto dura a vida.

Somos desiguais, os iguais se procuram, as desigualdades interessam e estimulam, variam os motivos que norteiam as escolhas. Uma vez feitas, elas carregam, sim, princípios mais aprimorados de humanidade, como a lealdade. Que pode ser confundida e mal comparada com sinceridade, mas é coisa bem diferente. Sinceridade de sentimentos é básica e fundamental. Já sinceridade tipo confessionário, como as doutrinadas em instituições religiosas, é coisa traiçoeira. Trair também é um verbo que se conjuga de várias maneiras. A traição que era prevista e punida em antigos códigos penais pode machucar mas não necessariamente condenar. Até porque os códigos entre casais também variam. O que é e sempre será condenável não é esse tipo de traição, mas deslealdade. Enganar não é apenas trair, é puxar o tapete, é dissimular, é desrespeitar, é não pensar no outro quando são duas as pessoas envolvidas. Muitas vezes isso acontece porque uma pessoa vai se distanciando tanto da outra, embolando tanto o meio de campo enquanto se supunha entre quatro paredes, que perde a noção do limite, despejando enfim no outro a tal sinceridade quase que para se redimir.
Melhor não falar de coisas negativas, é positivo o raciocínio desenvolvido aqui como é saudável a dúvida levantada pela minha amiga. Mesmo que ela olhe com muita suspeita o meu marco de quatro décadas ainda do primeiro casamento, incompreensão natural para quem não viveu o suficiente para entender o emaranhado das vidas compartilhadas por um longo tempo, a cobrança é pertinente e sincera da parte dela, na sua busca por explicações.
Como se sente um sobrevivente? Aliviado por ter sobrevivido, junto com o que acumulou e guardou, podendo conviver em paz com a maior parte das suas lembranças? Arrependido por não ter pulado do barco antes, por conta do peso que o tempo vai depositando nos ombros? Em nome de quê carregar tanto?
Sendo resultado de escolhas ou o rumo que a vida apresenta, quando caminha você nunca tem controle absoluto do resultado, já que adivinhar não vale, mas acredito que está no bom caminho quem procura se conhecer, pensar nas preferências e escolhas pessoais, aceitando principalmente que não se pode ter tudo, ou que não é decente ter tudo, ou alguém vai ficar sem...
Casamentos duram cada vez menos, isso é certo, então, se tem ao seu lado uma pessoa legal, e os dois querem filhos, talvez seja melhor agora começar cedo, para ter alguém que te ajude a empurrar o carrinho e dividir com você o tempo mais maravilhoso que pode haver, que é ver nascer e crescer a vida mais nobre, forte e encantadora que pode existir sobre a Terra. Por outro lado, não é mais seguro ir se conhecendo com o tempo, já que não existe mais muito pudor nesses tempos à la fakebook, e estão à mão todas as ferramentas para a dissimulação em massa? São tantas as tentações vazias de qualquer conteúdo, e tão grande a tentação de escolher conteúdo zero... É tão mais fácil agora apagar o passado, com um click se fica livre de muito entulho que antes se acumulava na gaveta, as fotos que guardo da minha avó vinham num encarte de papelão, com o nome e endereço do fotógrafo impresso em letra caprichada, hoje somem num segundo e você está a salvo de ser apunhalado por uma memória esquecida num canto de armário.

"O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza..."Guimarães Rosa se aplica aqui, como em qualquer lugar.
Sonhar não custa nada, ou custa caro, pode custar uma vida, por isso é bom sonhar com pelo menos um pé no chão.
Enganar não é o que se quer, acredito, mas se enganar a si mesmo é bastante frequente. Existem traços determinantes que o ser humano não escolhe ao nascer, alguns já vem mais aperfeiçoados - o tal do DNA - mas todo mundo pode se aprimorar. Quem quer, quem deseja sinceramente evoluir caminha na direção de se aprimorar, de buscar respostas e soluções, de pensar no outro, e não apenas seguir seus instintos e exercer suas vontades, comportamento que pode ser mais marcadamente masculino mas está longe de ser inerente ao gênero. Fácil como preencher um cheque ou passar o cartão. É que o sexo masculino dominou a sociedade por séculos, ainda é privilegiado no mercado profissional e conserva mais os traços de tempos truculentos, apenas isso.
O que é determinante no comportamento das pessoas, penso que é mesmo o caráter e a sensibilidade, resultados não só do DNA do indivíduo mas da criação que teve. Aí a coisa vem se complicando mesmo, em tempos já mais permissivos mas em gerações que ainda foram educadas essencialmente pela mães. Educar é tarefa árdua e nobre, mas acho que exercida com mais indigência quando se educava filhos homens. Por que será? Mães machistas? Mães intimidadas ou deslumbradas com seus filhos? Vaidade para mim é pecado mortal, sem essa de capital, carece de correção e não de compreensão e até louvor. Particularmente no sexo masculino. Vem disfarçada de pecado venial, mas é veneno, explosivo, passar muito, muito longe! Vaidade em excesso prioriza lixo, o que é substancial e verdadeiro vai para o fim da fila nas escolhas de um vaidoso. De novo, deixemos o que é negativo, é pra frente que se anda, buscar soluções para uma vida saudável e verdadeira é o que se deseja.

O Xis da questão é: sexo e casamento. Sexo e casamentos longos, e no meu tempo o desejo não passava tão rápido quando parece passar agora. Havia mais persistência e porque não dizer, imaginação! De novo vem aí o problema de criação, pessoas criadas cheias de vontades, mãos passadas na cabeça para não traumatizar, foram ficando mais fraquinhas - é preciso esquecer um pouquinho Freud, sem trauma não se cria!
O verbo encerrar é abrangente e antagônico, o sentido da frase do título pode tanto ser o de guardar, guardar com zelo e carinho, quanto o de terminar.
Terminar é triste, mas pode ser muito saudável e até estimulante quando passa a inevitável tristeza por quase tudo que se encerra. Mas existem muitas maneiras de se fazer uma só coisa, e aí lembro de novo o caráter e o sentimento, o afeto que se é capaz de ter, e de cultivar.
Pode haver afeto, sinceridade e decência até numa situação do que convencionalmente se chama de traição. É humano e frequente se enganar, e com isso, ferir os outros involuntariamente. A atitude aí, para não falar novamente em caráter, varia da coragem de cada um. Despreparo é sim, problema de criação. Segurar uma barra sozinho, sem se escorar no outro, ou até pior, culpar o outro quando se engana, ou quando escolhe dar um passo individual e como não dizer, egoísta, demanda coragem e caráter, sim, artigos que estão se tornando mais raros e voláteis até do que casamentos longos.
Em nome de quê se limita ou norteia o desejo hoje, sem o freio das religiões, que tinham muito mais peso no passado, sem o exercício de poder de quem é o mantenedor, antes das mulheres conseguirem um pouco mais de igualdade no campo profissional, sem o medo do inferno?
Numa sociedade organizada, cada um tem sua função, distribuição justa é a que é ajustada entre as partes.
Bom, o que não tem remédio pede uma solução caseira e individual... a gente fica com a que melhor se ajusta. Uma terapeuta me disse para dar notas à importância que cada coisa tem na vida, e seguir as prioridades. Não se pode, repito para mim e para quem quiser ouvir, ter tudo. Se a gente quer tudo, acaba às vezes perdendo o que não escolheria.

Na falta de solução, a gente recorre aos artistas. Gil afirma que o verdadeiro amor é vão, e eu acredito nele. Chico orienta a enviar os amores não amados para a posta restante. Não é o que se deseja, mas como talento e beleza abastecem o coração... mesmo assim, eu diria: acredite na arte, mas nem sempre nos artistas. O ser humano também pode ser muito vão.
Relações humanas não têm bula ou solução, mas têm uma estrela guia: afeto. Procure, cultive e respeite o afeto! E conjugue o verbo encerrar da maneira mais sublime: carregue no peito todo o afeto que conseguir. E fuja, passe a léguas de distância de quem pode até pensar que tem algum, mas não tem o suficiente para suprir um ser humano decente.