quarta-feira, 30 de maio de 2007


"Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever".

"E eu não aguento a resignação. Ah, como eu devoro com fome e prazer a revolta."

Pesquisando sobre a obra de Clarice Lispector, lembrei do texto MUDE, que andou circulando muito pela internet, e descobri, também na rede, uma grande polêmica em torno desse texto - que não é dela. Mas o espírito – de mudança e risco – certamente é.

terça-feira, 29 de maio de 2007

A palavra escrita


Assistindo ao programa do David Letterman, vi o ex-presidente Clinton dizer que chegando a uma determinada idade todo mundo deveria escrever, pois assim seus descendentes saberiam de onde vieram. Entendi ali que não são só nossas origens, uma árvore genealógica ou os caminhos que a família percorreu, o que muitas vezes procuramos. Histórias e comportamentos familiares nos trazem pistas sobre nós mesmos.
“Cada vez mais sinto falta da minha irmã Lica: eu descubro coisas sobre o passado e não tenho com quem discutir... tanto conhecimento se perde com cada vida. E essa é a razão mais importante para escrever.” Saul Steinberg, em carta a um amigo.
O ato de escrever também ajuda a administrar pensamento e sentimento. Escrevendo, percebi que além de guardar, existe a vontade de partilhar esses sentimentos, que costumam ser menos revelados do que o pensamento ideológico ou intelectual, registrados com mais freqüência em atividades profissionais. E queria escrever o que se pudesse ler com interesse e prazer.
Em 2002 comecei a escrever um livro, que em 2005 registrei, e - sorte minha - nunca publiquei. O título, é o que uso neste blog. O livro, já mudei mil vezes, e vejo que eu mesma fui mudando junto com ele.
Escrever é se revelar, toda exposição exige coragem, mais ainda porque a palavra escrita permanece. Mesmo escritores consagrados já revelaram sua dose de insegurança. Nas mulheres, historicamente mais reprimidas, essa dose costuma ser maior. Sexo feminino - torço e acredito: nos modelos mais recentes os partos já são menos dolorosos.

sábado, 26 de maio de 2007

O Japão, a Ostra, o Vento


Para tentar entender o Japão, o caminho é ficar atento às diferenças. Elas são grandes, não somos tão opostos no mapa-múndi impunemente. E são tantas, que só poderiam mesmo exercer uma atração muito forte sobre nós. O Japão fascina, em primeiro lugar, os nossos olhos: a estética da paisagem, a beleza da comida, seja nos exóticos mercados, nas bandejas prontas vendidas em quiosques nas estações dos trens, ou nas delicadas lojas de doces.
As delícias japonesas, uma comida que já não estranhamos, mas que ainda tem muito mais a oferecer, começam pelos bifes mais macios - e mais caros - do mundo, que encontramos em Kobe.
Em Okinawa, berço do karatê e de uma população que, com uma alimentação sábia, chega fácil aos cem anos, encontramos nosso primeiro tufão. Uma sensação para nós. Para os japoneses, rotina.
E previsão: na cidade, as árvores são amarradas no chão para não voarem com o vento.
Um tufão estava em nosso caminho também na ilha e no museu das pérolas, mas mesmo assim pudemos ver mais beleza e delicadeza cultivadas por mãos japonesas.
Em Tóquio, os luminosos futuristas e mais um tufão, cujos estragos foram perfeitamente controlados poucas horas depois.
Nosso tempo lá era bem curto, havia muito para ver e fazer, e os apelos à dispersão também eram muitos. Nossos guias japoneses sabiam disso, e a agenda era quase uma camisa-de-força, cinco minutos de atraso é falta grave, outra surpresa para nós: a pontualidade no Brasil merece respeito, mas não tem uma cotação assim são alta. A observação do nosso repórter, que não era, como a produtora aqui, marinheiro de primeira viagem em terras nipônicas, é esclarecedora: num país onde a força (e muitas vezes, a fúria) da natureza controla a vida, tudo que é possível controlar, os japoneses controlam, com determinação japonesa.
As crianças aprendem bem cedo na escola as técnicas de comportamento durante um terremoto. Tudo é calculado.
A presença dessa força na vida dos japoneses foi perfeitamente comprovada quando descobrimos que nossa intérprete, japonesa, dormia, por muitos anos, com uma mochila, água e biscoitos na cabeceira da cama, prevendo terremotos. Depois cansou, ela confessou. Ninguém é de ferro, nem mesmo os japoneses. Aí cessam as diferenças. Somos todos humanos.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Força gera mudança, energia e mosquitos


Estive em Tucuruí logo depois que a barragem ficou pronta, entre 1983/84. Um dos maiores choques de realidade da minha vida de jornalista, que ainda começava. A idéia era acompanhar uma comissão do governo do Pará que investigaria denúncias de irregularidades na construção da barragem. Não precisamos ir muito longe. Aliás, bom mesmo que não precisássemos, porque a tal comissão só se animou a fazer – ou tentar fazer – o seu trabalho pela pressão da nossa presença ali. As dificuldades eram muitas e eles ensaiaram desistir da busca várias vezes. Não fiquei sabendo a conclusão de seus trabalhos, porque demoraram muito a concluir qualquer coisa. A suspeita era de que, para cumprir cronogramas e metas, não tinham desmatado como deveriam a região a ser inundada. Em vez de derrubar a floresta, usaram um desfolhante, que seria altamente tóxico. E inundaram a região com as árvores dentro, que apodrecendo dentro d’água provocariam um desequilíbrio ainda maior, prejudicando os peixes e favorecendo os mosquitos. Não tenho conhecimento técnico nem muita memória, já faz tempo, mas da invasão absurda da mosquitos eu fui testemunha.
Lembro que foi muito difícil montar uma estrutura mínima para navegar no Rio Tocantins sem recorrer à administração da hidrelétrica, que passou naturalmente a dominar o município e todos os seus parcos recursos. E que, como era de se esperar, gostaria de receber com todas as honras uma equipe de televisão visitando o lugar. Eram tempos de denúncias raras contra o governo e contra empresas poderosas...
Mesmo assim, conseguimos escapar do “inimigo”, montamos uma expedição meio mambembe e saímos pelo rio tentando descobrir alguma coisa. Os relatos dos moradores eram de cortar o coração, e deveriam sensibilizar mesmo o mais ferrenho defensor de barragens e hidrelétricas. Famílias inteiras, que tinham nascido e vivido por várias gerações num lugar, que garantiam seu parco sustento pescando, se viram de repente jogadas em outro canto, sem nenhuma estrutura, sem história, sem o rio, impedidas de exercer a única atividade que conheciam. Não vi revolta nos relatos, só tristeza, doença e desalento.
Basta um conhecimento mínimo da Amazônia para perceber a ligação dos moradores com a sua floresta. Ela é sua casa, sua despensa, sua farmácia. Os bichos fazem parte da família.
Mudanças podem ser necessárias, mas não seriam tão dolorosas com um mínimo de respeito. Bom, a classificação de crime no Brasil é mesmo muito restrita, e a impunidade nossa velha conhecida, mas de vez em quando, um dia, chega a conta. E é natural que chegue em momentos em que se tem mais chance de ter suas reivindicações pelo menos ouvidas. Vivo cercada de gente que sente arrepios só de pensar em MST, Via Campesina. Seus métodos talvez não sejam ideais para os nossos padrões.
Será possível, para quem sempre teve terra ou teto, se colocar no lugar de quem nunca teve? Como não olhar essas questões com a cabeça de classe-média acostumada a comprar no supermercado da esquina o que necessita, mesmo que às vezes tenha que cortar o iogurte - e fique indignada com isso?
É possível, mas só se a alma não for pequena. Sensibilidade não é uma coisa que a gente deve desenvolver só para entender Fernando Pessoa.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

O Diabo no Telhado


Todo mundo que trabalha com documentário tem o programa ou filme dos seus sonhos guardado na manga, esperando que um dia ele deixe de ser sonho e se realize.
Vi, e nunca mais esqueci, um documentário surpreendente, de 1925, contando a saga de um povo nômade que, vivendo entre o leste europeu e o Oriente Médio passava a vida cruzando rios, montanhas nevadas no inverno, descalços, sempre à procura de pastagens para o seu gado. Um filme de ficção não poderia ser mais ágil e eletrizante. Um épico, narrando uma vida de luta e heroísmo sem trégua, mas com diversão e alegria também. Sempre quis tentar descobrir que destino teve aquele povo.
Muitos anos depois, em um mercado de documentários de que participei, um nome curioso me chamou a atenção: em inglês, “The Devil on the Roof ”.
O filme começava em um consultório médico, em que várias mulheres relatavam seus problemas de pele, manifestações que, com muita freqüência, são provocadas unicamente por estresse.
E então passava a contar a história daquele povo, perdido num deserto, estabelecido ali por força de uma conjuntura político-geográfica, sem muitas opções de trabalho e sem tradição de vida sedentária. Era um povo que durante séculos tinha sido nômade até que se estabeleceu em volta da rede elétrica ali instalada, perdendo a ligação com sua cultura e sem conseguir criar outros laços. Mariposas em volta da lâmpada, atraídas mas tontas, foi a imagem que me veio à cabeça. O diabo no telhado? As antenas de televisão, que, trazendo o mundo para dentro de suas casas, acabavam restringindo ainda mais seus limites, agora demarcados pelas quatro paredes da sala.

Dizer que a televisão é uma janela para o mundo, pelo menos quem trabalha na tv já ouviu várias vezes, é um clichê clássico. Só que esse povo TINHA o mundo.

terça-feira, 22 de maio de 2007

Araraquara à vol d'oiseau


Passei em Araraquara apenas um dia, mas acho que posso dizer que tenho uma visão dessa cidade do interior de São Paulo que a maioria de seus habitantes não tem. Voei de balão sobre Araraquara, numa tarde que começou muito tranqüila, a não ser pela minha consciência, pois tinha jurado que não iria embarcar em nenhuma aventura arriscada, já sabendo que não resistiria à tentação. Estávamos gravando um programa sobre dirigíveis, que ganhou o curioso título de “A Volta do Pássaro Prateado”. Curioso porque nem os dirigíveis estavam voltando, nem se tratava de um pássaro, naturalmente, e prateado, só contando com o brilho do sol em um determinado ângulo, mas como a licença poética existe para proteger os poetas e os editores, ele se chamou assim, e fomos lá, seguindo um apaixonado por balonismo que iria falar do prazer de voar, mesmo baixo e ao sabor do vento. E com ele aprendi em pouco tempo que não é muito confortável ficar ao sabor do vento. Mesmo conhecendo um pouco dos seus humores, como o nosso balonista devia - ou deveria - conhecer, na hora de descer, não contamos com bons ventos que nos levassem para terra firme. Percebi tarde demais que deveria ter feito a entrevista lá embaixo.
Na primeira tentativa de descer, assim que o balão tocou no solo, com um bom solavanco, nosso cinegrafista saiu da cesta, para sorte dele que, mesmo de forma um tanto brusca, pode desembarcar, e para pouca sorte nossa: aliviado do peso de uma pessoa e da câmera, o balão subiu como um foguete. Na segunda tentativa de aterrissagem, eu pulei fora, meio jogada pelo tranco, e novamente o balão subiu, para desespero do piloto. E subitamente a situação se inverte: lá de cima, apesar do medo por não estar conseguindo descer por causa do forte vento, a visão espacial e o silêncio nos davam uma ilusão de tranqüilidade. Caída sozinha em um pasto com o mato meio alto, todo o gado que eu tinha observado de cima, correndo em círculos, perturbado com a visão do balão, agora se encontrava a uma distância bem desconfortável, e eu não senti nenhum alívio por estar finalmente no solo. Tratei de pular logo uma cerca próxima e, ajudada por um menino a cavalo que parecia, ele sim, ter caído do céu, pude chegar à beira de uma estrada, apenas com um susto e alguns arranhões.
Ganhei do balonista um diploma de “voadora” com uma interrogação. Por ter abandonado o barco sem ordem do comandante, não tinha sido totalmente aprovada como tripulante, mas fiquei satisfeita. Voar é com os pássaros. Entrar num balão novamente, só no dia em que o balão carregar uma boa âncora.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

A Hora da Estrela


“De nova et nullius aevi memoria prius visa stella” ( Sobre a estrela nova nunca antes vista), de Tycho Brahe, em 11/11/1573.
Esse estudo ajudou os astrônomos a abandonarem a teoria de Aristóteles de que o céu era imutável e perfeito. A partir daí perceberam que explosões mudavam os céus.
Na terra, não é diferente.
E nem dentro da gente.

"Nada do que é humano me é estranho" *


Seguindo na tentativa de reduzir meus arquivos, achei numa pasta de possíveis pautas, uma matéria sobre um tema meio inusitado: o perdão. Surpreendente, em primeiro lugar, saber da quantidade de pesquisas, conferências e até campanhas sobre o assunto. Um professor de Harvard citava Confúcio: “Se você passa sua vida procurando vingança, cave logo duas sepulturas”. A conclusão da matéria era a seguinte: a vingança pode ser doce, mas dispensar da raiva os que nos ofenderam faz tão bem à saúde que pode ser olhado como um ato de egoísmo.
Não estou falando de nenhuma citação bíblica (embora a matéria comece contando a visita que o papa João Paulo II fez a seu quase assassino) mas de afirmações de vários cientistas, médicos e psicanalistas. Perdoar é preciso: ser generoso e condescendente não trata apenas do nosso bem estar, mas da nossa saúde física.
Trocar raiva, amargura, hostilidade, ressentimento e medo (de ser ferido novamente), por uma vida com menos estresse, é um bom negócio. Mas é um processo, não é um momento. E um processo complexo. Não significa desistir de justiça e nem conviver com quem temos todo o direito de desprezar. Significa esquecer e deixar viver.
Concordando, mas esquecendo um pouco a ciência, acho que depende da dose e do delito a ser perdoado. E como até a lei admite atenuantes, os sentimentos e as intenções me parecem mais importantes do que os (mal) passos dados.
Na esfera sentimental, Vinicius de Moraes, um constante defensor do perdão, alertou que é bom não abusar da regra três, onde menos vale mais. Porque o perdão também cansa de perdoar. Pedir perdão, aí, acho que não se faz: não muda nada e não adianta mesmo. Se for perdoado, alguma coisa fez por merecer. Se não, trate de aprender.
Se errar, como perdoar, é humano, aprender com o que não deu certo é um ato de inteligência. E de sobrevivência.
Já continuar errando, é do ser humano sem-vergonha mesmo.
-
*(Terêncio)

Na Amazônia, como um passarinho


Começar antes do começo, acordar antes do sol. Depois, tombo na lama, dor de barriga, medo de bicho no banho de rio. Todas as famílias de insetos ali representadas, dor, calor, cansaço, muito sol acabando com a pele, inferno verde. Farofa de farinha d’água num panelão comunitário. Acre. Chuva. Sol. Roupa molhada secando no corpo. Chuva de novo subindo o rio. Barco quase virando na corredeira. Estresse na equipe, raiva e desconsolo. Insegurança, produção meio fora de controle, não dá para controlar a Amazônia, quem conseguiu? Madeira-Mamoré, Projeto Jari, quantos outros não nos deixam mentir? Mosquito demais – qual, repelente natural!?! - calor demais, o calor amazônico é sólido, quase palpável, as dificuldades são concretas, quase intransponíveis. Não tem a moleza baiana, a calma no Norte é imperativa e forte.
Com tudo isso, o que é que faz a gente gostar tanto da Amazônia? Qual o estranho e poderoso fascínio daquela região onde as distâncias são sempre – mal! - calculadas em horas, dias, léguas de desconforto, calor e suor? A sensação tão boa do único momento de frescor, não dá para contar sem viver.
A primeira coisa que se percebe na Amazônia é que as soluções pensadas no sul – que é como lá chamam o Brasil do meio para baixo - não são geralmente as que lá desejam, esperam e necessitam os amazônicos. Talvez esteja aí a explicação da potente atração amazônica, mais do que a beleza e a riqueza da floresta: encontramos uma terra mais forte e livre do que o estresse absoluto, provocado pela violenta cobrança - nem sempre consciente - em que vivemos permanentemente, quase-objetos que somos do mundo tido como civilizado. Seres civilizados e profissionais competentes que orgulhosamente somos, empurrados pela concorrência, nossa vida é calculada, nosso tempo é loteado - até no lazer, nossa eficiência é exigida em tudo o que fazemos. E de repente bate na nossa cara uma terra transbordante, exuberante, grande, fora das medidas. Nos sentimos então um pouco pequenos, e por isso, um pouco menos responsáveis, mais tolerantes, menos cobrados por alguma coisa que fique fora de tempo e lugar. Aprendemos a aceitar o que nos é dado, e a nos largamos um pouco. Se a rede não foi inventada lá, deveria ter sido. Faz parte do cenário, do ritmo e do aconchego amazônico.

domingo, 13 de maio de 2007

Amai-vos Uns aos Outros


Mesmo que a cobertura da visita papal não conclua isso, é fácil constatar que ela trouxe muito mais polêmica e discórdia do que harmonia e união, como se poderia esperar de um evento religioso. Para mim, o mérito - da visita e da cobertura - foi a oportunidade de lembrar Leonardo Boff.
Minha mãe, por ter filhos na escola dos freis franciscanos em Petrópolis, ficou muito próxima do então frei Leonardo, e dele nunca se afastou. Antes disso, teve como amigo de família, da vida inteira, o "Padre Hélder", Dom Hélder Câmara, que me batizou e me deu a primeira comunhão. Ela nunca se interessou por política, não devia entender bem a teologia da libertação, mas foi o lado da igreja que ela escolheu, naturalmente, sem se preocupar com rótulos, só por acreditar sinceramente nos ensinamentos do seu livro de missa. Ser boa, pia e generosa pode ser uma atitude. Ela era genuinamente assim, sem atitude. E foi assim que, com oitenta anos, para surpresa de todos, conseguiu realizar um sonho de muitos anos: escrever um livro para contar às gerações mais novas a infância alegre e inesquecível que ela e os primos tiveram. Esse livro tem na contracapa um texto de Leonardo Boff, por quem tenho, além de admiração, muita gratidão. Durante uma semana em que ela ficou em coma, antes de morrer, no ano passado, foi visitada duas vezes pelo "frei Leonardo". De cadeira de rodas por causa de um problema no joelho, ele explicou ao meu irmão que a audição é um dos últimos sentidos a nos abandonar, e por isso ele foi lá conversar com ela, para ajudá-la a ir em paz.
Este foi o texto que ele fez para o livro:
"Terras Encantadas, de Mathilde Costa Viveiros de Castro, traduz o resgate emocionado das lembranças da Chácara das Rosas, e da Fazenda São José do Magé, guardadas pela família que ali viveu tempos felizes e áureos. Mathilde, com seu estilo suave, como quem pede desculpa por aparecer, recolheu tudo com carinho, seja suas próprias memórias, seja das pessoas que aí passaram e que deram seu depoimento. O livro produz encantamento pela saudade e pela emoção que passa. Ele comprova que o ser humano e seu entorno querido formam uma unidade ecológica e que nós não somos nada sem a terra, a casa, a família, o amor, a capela, a festa, a familiaridade e a veneração das coisas sagradas. Leonardo Boff."

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Estrela Solitária, Paixão cega


Cada bebê que nascia na família já tinha à sua espera um mini uniforme botafoguense. Lavagem cerebral, praticada pela minha avó. Tinha razão: o Botafogo nasceu no quintal da casa dela, no bairro que deu nome ao time. Eles mesmos capinaram o terreno para fazer um campo de futebol. Eram tempos ingênuos. Ficou famosa a história de um tio-avô, Mimi Sodré, que anulou um gol feito chamando o juiz e confessando que a bola bateu sem querer na mão dele...
Meu avô, meus quatro tios-avós, meus tios e meu pai jogaram nos times juvenis do Botafogo, e conforme atestado em uma crônica do João Saldanha (Jornal do Brasil, 21/12/ 82), “todos eles jogavam bola, e bem... joguei com um dos maiores craques de futebol que tinha visto”, referindo-se a um tio meu que depois trocou o time pelos jesuítas e acabou reitor da PUC. Saldanha também conta ali que o tio Eurico resolveu se profissionalizar e “foi levar beiço de ordenado lá no Santos”. Mudou de rumo e virou advogado. O tio Maninho, também advogado, acabou mais tarde presidente do Botafogo. Quando me casei, ouvi um tio-avô contando para minha avó: “ele é flamenguista, mas parece que é boa gente”.
Criança, lembro de passar muito tempo sem ver o Botafogo campeão. Não entendia o hino, por que tinha que falar de vitória em 1910, um ano tão remoto? Não gostava de torcer por um time que perdia tanto. Resolvi mudar, e nunca vi meu pai tão zangado comigo em toda a minha vida. Mais tarde, não fiz o mesmo com a minha filha, ela escolheu, e eu aprendi a conviver bem com a bandeira do Flamengo e suas alegres vitórias, embora a do Botafogo continue aqui. Lembro sempre da minha avó ouvindo no rádio jogos de futebol em todos os cantos do país, tentando descobrir bons jogadores, ainda não famosos, que pudessem ser contratados para levantar o time.
Marcos de Castro contou, também no JB, que D.Orminda Sodré Viveiros de Castro baixou a sepultura, no ano de 1977, aos 83 anos, com o caixão envolto em uma bandeira do Botafogo. O Botafogo, como clube, cometeu muitos pecados. Já a paixão, com razão ou sem razão, quem é que pode condenar?

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Para viajar, basta existir (Fernando Pessoa)


Viagens de trabalho têm a propriedade de mudar o foco do nosso olhar. Não somos turistas, somos viajantes exercendo nosso ofício, no curso normal de nossas vidas, só que em outros lugares, entre outros povos. Estamos em outra terra, mas no mesmo barco, mais próximos das crianças que vão para a escola, do guarda que está cedo em seu posto. Também temos que acordar e cuidar das nossas obrigações, e ficamos com um olhar mais apurado para o dia a dia, para o que funciona ou não, e como funciona, as diferenças culturais que dificultam e emperram o que precisamos fazer.
Turistas têm outro espírito e outro tempo. Pode ser que um turista passe uma temporada no Cairo sem perceber que na cidade quase não existem sinais de trânsito, pode nunca ter precisado atravessar uma rua no caótico centro da cidade. Assistido e condicionado pelos guias e ônibus de turismo, talvez não tenha chegado a descobrir que para cumprir o ato banal de atravessar a rua tenha que “fechar os olhos, rezar e correr”, o conselho que ouvi de um egípcio (não é nada simples atravessar uma rua no centro do Cairo).
O barulho ininterrupto das buzinas que embalam o trânsito como se elas fossem o acelerador dos carros perturba mais quem tem que trabalhar, é impossível não registrar que no Cairo a hora do rush se estende por nove horas seguidas e que é essencial conseguir um quarto num andar bem alto para conseguir algum sossego.
Jornalistas têm o olhar treinado, e viajar com o sentido de observar as diferenças, pode ser um bom caminho para olharmos melhor para nós mesmos.

O Japão, a Ostra, o Vento



Para tentar entender o Japão, o caminho é ficar atento às diferenças. Elas são grandes, não somos tão opostos no mapa-múndi impunemente. E são tantas, que só poderiam mesmo exercer uma atração muito forte sobre nós. O Japão fascina, em primeiro lugar, os nossos olhos: a estética da paisagem, a beleza da comida, seja nos exóticos mercados, nas bandejas prontas vendidas em quiosques nas estações dos trens, ou nas delicadas lojas de doces.
As delícias japonesas, uma comida que já não estranhamos, mas que ainda tem muito mais a oferecer, começam pelos bifes mais macios - e mais caros - do mundo, que encontramos em Kobe.
Em Okinawa, berço do karatê e de uma população que, com uma alimentação sábia, chega fácil aos cem anos, encontramos nosso primeiro tufão. Uma sensação para nós. Para os japoneses, rotina. E previsão: na cidade, as árvores são amarradas no chão para não voarem com o vento.
Um tufão estava em nosso caminho também na ilha e no museu das pérolas, mas mesmo assim pudemos ver mais beleza e delicadeza cultivada por mãos japonesas.
Em Tóquio, os luminosos futuristas e mais um tufão, cujos estragos foram perfeitamente controlados poucas horas depois.
Nosso tempo lá era bem curto, havia muito para ver e fazer, e os apelos à dispersão também eram muitos. Os guias japoneses sabiam disso, nossa agenda era quase uma camisa-de-força, cinco minutos de atraso é falha grave, outra surpresa para nós: a pontualidade no Brasil merece respeito, mas não tem uma cotação assim são alta. A observação do nosso repórter, que não era, como a produtora aqui, marinheiro de primeira viagem em terras nipônicas, é esclarecedora: num país onde a força (e muitas vezes, a fúria) da natureza controla a vida, tudo que é possível controlar, os japoneses controlam, com determinação japonesa.
As crianças aprendem bem cedo na escola as técnicas de comportamento durante um terremoto. Tudo é calculado.
A presença dessa força na vida dos japoneses foi perfeitamente comprovada quando descobrimos que nossa intérprete, japonesa, dormia, por muitos anos, com uma mochila, água e biscoitos na cabeceira da cama, prevendo terremotos. Depois cansou, ela confessou. Ninguém é de ferro, nem mesmo os japoneses. Aí cessam as diferenças. Somos todos humanos.

quarta-feira, 2 de maio de 2007

Viagem Interior


Primeiro você vai até Goiânia, depois de Goiânia a Jataí, de Jataí a Serranópolis, de Serranópolis até... até ver a quantidade da fina terra vermelha que suas narinas aspiraram e descobrir que tudo em volta está coberto por uma boa camada dessa terra.
Você percebe então que está bem longe de tudo, mas não sente falta de nada. A gruta de onde saem bandos de araras gritando no fim da tarde, a refeição, servida quase no escuro, só com uma luz fraquinha de lamparina, depois de um dia exaustivo de muita estrada e muito trabalho. O gosto da comida, tomate e alface colhido na horta ali bem perto da porta da cozinha, almôndegas conservadas na gordura e não na inexistente geladeira, arroz bem refogado e feijão novo, também colhido no quintal de casa. Quintal que emenda com a plantação a perder de vista, a casa não tem muro ou cerca, cercada apenas pelo próprio isolamento. Qualquer pessoa que chegasse naquele lugar tão remoto, mesmo sem aviso – avisar como? - ganharia um prato como uma pessoa da família, e se sentiria muito bem acolhida naquela casa sem portão ou estrada na porta, sem luz e quase nenhum vestígio da civilização urbana. A cena, passadas quase três décadas, ficou no passado e na memória. Mas já era distante mesmo naquela época, uma distância que não é medida por quilômetros nem horas. Pensando bem, o tempo marcado no relógio que levei para chegar lá foi muito pouco, considerando o longo caminho que separa o universo do interior e o da cidade. Em questão de poucas horas, muda o ar, o tempo e a relação com o tempo, e só assim você percebe que bicho estranho é o habitante da cidade grande.