terça-feira, 20 de novembro de 2007

Guardar


Pais adoram contar histórias dos filhos quando eram pequenos. Já os filhos, costumam achar que é mico, e ficam no mínimo desconfortáveis quando isso acontece. Mesmo assim, o que vale a pena é bom registrar. Mais tarde, especialmente quando eles tiverem seus próprios filhos, irão entender como sinal de interesse e carinho. Fiz isso num pequeno caderno, antes da banalização dos filmes domésticos, onde se pode ter guardado um bom momento do passado, mas os flagrantes nem sempre acontecem, como nas horas mais espontâneas e particulares, as horas das atividades corriqueiras, de vestir, de dormir, de comer.
Crianças mostram seus traços, anseios e aptidões muito cedo, e estar atento a eles vai além de dar prazer ou divertir os pais, pode ser útil para ajudar os filhos mais tarde.
Todos os dias temos notícias de pais chocados e surpreendidos com o rumo que os filhos escolhem. Não deveriam se surpreender. Criar e educar, além de exigir trabalho, não é uma tarefa solitária e desvinculada do que se tem em volta. "É preciso uma cidade para criar uma criança", diz um sábio ditado africano - ou seja, educar é tarefa para pais, professores, legisladores, governantes. Não precisa ser letrado, basta ser sensível para saber disso. Lembro da observação de uma costureira da favela da Rocinha, falando de crianças e de violência: “a gente sabe o que uma agulha rombuda pode fazer num tecido fino”.

Comecei a reparar que era mesmo única a minha filha única quando eu desejava bons sonhos na hora de dormir, e a Luiza me respondia que não gostava de sonho, gostava era de pesadelo, que quando a gente acorda, vê que acabou. Já sonho, acabava, e ela ficava uma fera. Choque de realidade aos quatro anos? Ficava preocupada e perguntava pelos pesadelos: eram “um cachorrinho do outro lado da rua latindo e me chamando”, ou “um algodão gigante bem ali na janela”.

Muito pequena mesmo, no banco de trás do carro, viu a estátua do Cristo Redentor de costas, um ângulo diferente do que via da janela de casa e ficou espantada: “mas viram ele?? Quem vira ele?!”

Com três anos e meio, observando uma violeta que ela viu nascer e morrer, perguntou meio preocupada, achando a vida muito curta: “mas as flores são diferentes que as moças, não é mesmo?”
Foi a idade do primeiro filme, A História Sem Fim: “Vamos logo, senão a gente vê essa história com fim...”. Como gostou muito, mas também passou muito medo, tentou negociar: “quero ver de novo, mas ficar na última fila, que lá a gente vê bem pouquinho”.

Aprendendo sobre “a atividade esporte” na creche, perguntou: “filha é trabalho, não é esporte não, né, mãe?”.
Reclamava da Lúcia, uma babá atrapalhada que eu arranjei, e que sempre perdia a hora: “vou comprar um galo de verdade numa fazenda e dar para ela.”.
E explicava para a Lúcia, depois da peça Simbá de Bagdá: “Bagdá é uma cidade, Simbá é uma espécie de índio”.
Brincadeira nessa época já era esperta: querendo brincar de pique e percebendo a desvantagem, ela combinava: “mamãe, você corre atrás de mim, e quem é pegada é que é a campeã, tudo bem?”

Indo de carro para Búzios, alertei que tínhamos que ajudar a prestar atenção nas placas da estrada. Ela respondeu lá de trás: “lamento, mas não sei ler”.
Também no carro, quando uma nuvem cobriu o sol e o tempo mudou bruscamente: “Ih! O filme ficou em preto e branco...”. Depois contou que “o chuvaral alagoou tudo”.

Aos seis anos, continuava a desconfiar que fantasia era melhor que realidade: “queria que a vida fosse igual desenho: cai do abismo, não se machuca, leva tiro, fica preto, toma banho, fica bom, passa o carro em cima, fica fininho, endireita e tudo bem”. Mas graças a esse discernimento, questionou a amiguinha que queria pular com ela da cobertura no quarto andar, com dois panos amarrados feito capas de Mulher Maravilha: “acho que não vai dar certo, Manuela”. Foram falar com a mãe, que jogou um tomate lá de cima e mostrou o que ia acontecer com as duas se pulassem...

Ela estudava na mesma creche que a filha do Gabeira, que cuidava do estilo e lançava moda desde os tempos da tanga de crochê, bem antes de ser deputado. Nós nos conhecíamos, mas eu não reparava muito quando ele chegava para deixar a filha na creche, lembro vagamente que tudo era muito colorido, do carro às roupas.
Vi no Leblon uma loja de sapatos infantis que eu achei lindos, de uma estilista famosa aqui, o couro parecia estampado com decalques, bichinhos, raminhos de flores, e eu achei que ela ia ficar louca na loja. Para minha surpresa, ela, que adorava presentes, não quis nenhum sapato, e sugeriu rindo: “Mãe, nessa loja, quem vai querer comprar é o Gabeira!”.

sábado, 17 de novembro de 2007

Cantoras


Li recentemente uma boa biografia da Dalida, uma cantora que muita gente pode nem conhecer. Apesar do enorme sucesso que fez quando eu era adolescente, tinha me esquecido dela, até que em 1996, entrei em uma lojinha no interior do estado de Nova York onde tocava um CD que me remeteu como um foguete, como se diria na época, para os quinze anos de idade. Gostava mais de Chaque instant de chaque jour, e de J’attendrai, mas que alegria ouvir Come Prima!
Bem depois disso, descobri surpresa em Paris que ela ainda faz muito sucesso, apesar de já ter morrido há vinte anos. Datada, mas não menos divertida por isso, conquistou seu lugar no seu tempo e cadeira cativa em muitos corações.
Criados em um país sem memória, nossa tendência é achar que o mundo inteiro é assim. Não é. Sei que parte do interesse se deve ao lucro que a memória ainda pode produzir, mas quanto mais civilizado o país, infinitamente maior o apreço pela cultura.
Mesmo não sendo gay, virou sua rainha, talvez por ter abraçado a luta pela liberdade e contra o preconceito em geral, de sexo, de idade no amor (como a Piaf, teve maridos muito mais jovens que ela), de nacionalidade - Dalida conseguiu ser idolatrada na França sem pronunciar o “r” como os franceses, e isso não é pouca coisa em se tratando de franceses...
De família italiana radicada no Egito, nascida no Cairo, foi Miss Egito antes de se estabelecer em Paris e fazer sucesso durante décadas no mundo inteiro.
Fui ver Piaf outro dia com medo de ficar triste. Cresci ouvindo suas músicas, era a cantora preferida da minha mãe, que morreu há um ano. Minha irmã morreu há um mês, e além de cantar e compor com muito talento, tocava todas as músicas que queria, no violão, de ouvido. Mas o filme é tão bom que não fiquei triste, saí com vontade de ver de novo. E saí pensando que ser alegre ou ser triste pode ser uma marca, um dom ou uma decisão pessoal, não sei. Sei que cantar é abençoado, e era o talento que eu gostaria de ter se pudesse escolher.
Dalida não é a Piaf, mas passava muita alegria, embora não saiba dizer qual das duas teve a vida mais dramática. Acho que a exuberância pessoal e o sucesso comercial de sua carreira resultaram numa imagem mais festiva, e superficial, apesar de todos os suicídios de sua vida, os de dois maridos e os próprios (no plural porque inclui uma tentativa frustrada anos antes de conseguir morrer). Ninguém com tanta angústia poderia ser voltada apenas para o sucesso comercial. A angústia era anterior, não foi fruto do descompasso que o sucesso costuma provocar pela dificuldade de administrar muita notoriedade ou muito dinheiro. O ser humano teve que se adaptar, em um tempo historicamente muito curto, a uma velocidade maior do que a das próprias pernas, um reconhecimento maior do que o das pessoas com quem poderia cruzar ao longo de toda a vida, um dinheiro maior do que o necessário para levar uma vida muito boa. Os mais preparados podem ter sucesso, mas dificilmente viram livro ou filme. O grande público prefere os freaks.
Lembrei de um matemático americano, daqueles que eles sabem produzir com capricho, conhecido como Unabomber, que mandava bombas pelo correio, para protestar contra a sociedade industrial. Chaplin conseguiu criticar a linha de montagem fazendo menos estrago e alcançando mais gente, embora de maneira menos contundente... As escalas no mundo não têm volta, mas têm correções possíveis, podem ser menos selvagens, em nome de um pouco mais de equilíbrio entre as gentes, e dentro das gentes.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Papo cabeça, sem pé, muitas perguntas e nenhuma resposta


Se está difícil aceitar o rumo que a vida toma, ou saber que rumo se toma na vida, talvez seja porque você não tenha na frente a opção ideal...talvez é uma palavra danada, porque podendo pender para o sim ou para o não, pode guardar a tão abençoada esperança, mas com certeza mesmo, encerra incerteza, e você não sai do lugar. A opção ideal não existe, a gente deixa de lado, melhor olhar as que a gente tem em perspectiva.
Estar no caminho certo ajuda, e é dentro de você que deve chafurdar, sem dó nem piedade, e ainda por cima com sinceridade...porque não vai achar a resposta dentro de um biscoito chinês, no muro de um templo japonês, num terreiro de macumba, na bola de uma vidente, nas cartas de uma cartomante, ou na cabeça ao lado - já procurei e não achei.
Mas mesmo para quem não é de todo desligado, dentro da gente o terreno é às vezes muito vasto, tem pântano, tem sombra...lá vem o Rosa de novo: “Coração da gente – o escuro, escuros.”
Voltando ao nosso quintal, ou ao nosso muro: em cima do muro, por mais largo e sólido que ele possa ser, é impossível achar uma posição confortável por muito tempo. A busca, no entanto, continua difícil:
vai esbarrar no contracheque, na vontade do chefe, no problema da família, nas consultas que tem marcadas, na dieta que não fez, na omelete sem quebrar os ovos, nas análises que não quer fazer.
E vai chegar à conclusão que não se conhece o suficiente. Sem saber se vai ter tempo pra isso.
Por via das dúvidas, leio sempre os analistas de plantão, e li que nas situações em que a gente não acha a saída, é porque a hora de perguntar é na entrada. Mas e se a gente perde a hora, meu Deus?? Não sou pontual! Não há escolha sem perda, ainda lembra o danado.
Mas lembro de ouvir de um amigo que a psicanálise não resolve nada, ela arruma tudo nos escaninhos, e dá nome às pastas. Ajuda? Melhor poupar, por hora, o dinheiro do analista.
Seria melhor não pensar? Mas não pensar na gente, ou não pensar nos outros? Dá para escolher as duas, só a primeira, só a segunda ou uma opção anula a outra?
Clarice Lispector disse uma vez que já nasceu incumbida, um jeito preciso de mostrar como o mundo era pesado para ela e como o tempo era curto para fazer o que queria. Mais uma vez, disse tudo, e eu entendo perfeitamente. Preferia não pensar tanto. Mas vejo que tanto o talento quanto a procura, se não livra as pessoas do câncer, salva do tédio, do esquecimento e da mediocridade. E permite que de vez em quando, por alguns momentos, a gente fique leve, leve...de pernas pro ar.

sábado, 10 de novembro de 2007

“Mundo, mundo, vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não uma solução”, disse o Drummond. Aí Guimarães Rosa, outro mineiro dos bons, disse:
“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
Minas Gerais tem ainda mais arte do que minério, o mundo tem muito, muito mais rimas do que soluções, e o problema talvez seja justamente viver procurando por soluções, em vez de simplesmente viver, até porque o mundo gira ...e a Lusitana roda, para lembrar o slogan que ficou famoso mesmo sem fazer nenhum sentido - girando ou não girando o mundo, uma transportadora tem mais é que rodar, ora pois.
Quando fui a Washington pela primeira vez, a prima Luisa, que mora lá, me levou para ver todos os tons do outono. Achei o paraíso na terra.
Na segunda vez, muitos anos depois, voltei com outro sentimento, o de quem acabou de visitar um parque temático da vida real, o reino mágico do poder, do dinheiro e da gloria, mas já que o mundo gira, talvez antes mesmo do que a gente imagina, o Magic Kingdom verdadeiro passe a ter nos Estados Unidos importância maior do que a de Washington. O sonho da empregada aqui de casa, depois que comprou uma boa casa, é ir à Disney, e ela pode bem ir. Já de Washington, ela mal ouviu falar, e do jeito que estão administrando aquele império...

Bom, Nova York é o topo do mundo, seu “hino” diz que quem consegue vencer lá, consegue em qualquer lugar, e no entanto, com 17 anos, eu não sabia, e amarrava minha bicicleta nos postes da Quinta Avenida como se estivesse nas estradinhas poeirentas de Itaipava, gastando irresponsavelmente o tempo como se tivesse a vida pela frente e o mundo para sempre. Tinha, e estava ocupada, estava aprendendo. Mas as pessoas têm pressa por nós, querem sempre dispor por nós do nosso tempo. Lembro de um amigo me perguntar com um misto de ironia e de pavonice ferida: Mas você vem à Nova York para ficar passeando com o cachorro da tia? Felizmente foi isso que eu preferi fazer. Existem cachorros muito úteis na vida da gente, e especialmente quando a gente é muito jovem faz muito bem em evitar os cachorros grandes. Eu era jovem, mas até que nem era boba de todo.
E por aí vai, o mundo, a vida, a Lusitana que nem sei se ainda existe, a Avenida Brasil que conseguiu ser desbancada pela Linha Vermelha, que consegue ser ainda mais perigosa do que ela. Tem solução?


O mundo árabe parece que não tem, mas quando fui ao Egito, descobri um mundo surpreendente, no Oriente. Outra paisagem, outra cultura, outros valores, tudo muito diferente e estimulante.
Enigma é uma palavra bonita demais para ser decifrada. Mas vamos ganhando outros olhos para olhar melhor para os nossos costumes e o nosso lugar.


No Japão, já que o Oriente é Extremo, as surpresas e as descobertas foram ainda mais profundas.


E aí, dada a volta ao mundo, volto ao Drummond, que nunca precisou sair do Brasil:
“mundo, mundo, vasto mundo
mais vasto é o meu coração.”

domingo, 4 de novembro de 2007

Anima


Li uma vez que o ser humano envelhece quando deixa de amar.
Pela alegria e energia geradas pela força do amor, ele deve ser mesmo fonte de juventude – pelo preparo físico e psicológico que ele exige, também.
Para sobreviver aos desamores, idem.
A paixão é naturalmente restritiva - tem suas razões para isso. Mas o amor é um sentimento abrangente – pode tratar de amor à vida e às coisas do mundo. Por isso eu acrescentaria curiosidade à fórmula da juventude. O dicionário explica: desejo de saber, ver, informar-se, desvendar, alcançar; interesse. Citações no verbete do Collins falam de “olhos bem abertos e cheios de curiosidade” e da “curiosidade do repórter”. Muitas vezes me decepciono vendo a maneira com que a minha profissão é exercida, mas acho que a curiosidade é a sua melhor característica, essencial e saudável. Não deixar que ela fique morna, que se venda, ou se reduza à bisbilhotice já é outro departamento, que trata de qualidade e ética. A curiosidade pode olhar para o lado sem perder qualidade, ou para trás sem ser retrógrada, se está à procura de uma nova maneira de ver as coisas. Pensando melhor, vou olhar sempre a minha profissão com bons olhos, e deixar os maus olhares para os maus profissionais.

sábado, 3 de novembro de 2007

Luz e Sombra


Contradição é o meu traço mais coerente, graças aos céus.
Não fui agraciada com a segurança de quem sabe o que quer, de quem não vive assaltada pelas dúvidas, de quem vai em frente sem pesar cada decisão que precisa tomar, de quem não vai para a cama acompanhada de alguma ilusão que o tempo tratou de adormecer, que o tempo trata mesmo é de adormecer ilusões, uma a uma, nas suas caminhas.
Trago sempre comigo o receio da insensatez, o temor dos maus passos, o desprezo pelos erros de cálculo - pelo ridículo do tombo, pelo orgulho ferido quando flagrados, pelo sofrimento que provocam. Tenho, de quebra, medo de voar. E ainda, como agravante, uma enorme compulsão por sair do chão que, essa sim, acompanha os naturalmente desacomodados, ao longo de toda a vida.
De pai insensato e mãe sonhadora - ou o contrário, não sei - essa foi a minha herança.
Uma cama quente, um teto, um braço amigo, é tudo o que o corpo de uma alma desassossegada pode querer. Já a alma desse corpo, do que é que precisa?
De uma filha sorridente por perto, de água salgada no corpo, de um cheiro de mato, um canteiro florido, e paz.
Mas a vida também traz sem ninguém pedir: um carnê do INSS, outro do IPTU, um boleto do IPVA e mais um do condomínio, nossos neurônios, nosso suor, e nosso tempo, engarrafados higienicamente, para ir entregando à prestação, de acordo com o calendário planetário regulamentar.
Nasci com a alma engessada, bem no meio desse mundo - que manda a gente ficar quieta, em prol da placidez das águas.