segunda-feira, 22 de março de 2010

Concreto sentimento


Podemos ser mais do que a terra do samba, carnaval e futebol, mas não diria que o Brasil é o país dos arquitetos. Mesmo tendo nesse ramo nomes de renome pelo mundo afora, acho que são artistas no papel, que quando botam a mão na massa provavelmente não gostariam de morar no seu castelo de cartas. De museus sem paredes a quartos sem janelas, vai longe a listas dos desatinos arquitetônicos nessa terra.
Falando do Rio e comparando com quem está por perto, São Paulo parece oferecer escolha mais farta e melhor, construções mais sólidas e um pouco mais generosas, e várias áreas silenciosas, considerando o tamanho da cidade.
Aqui, embora saiba que não é só aqui, até nas construções mais antigas, áreas de serviço acanhadíssimas dizem muito do nosso comportamento e caráter.
Comparadas com as habitações de países do primeiro mundo, nossa arquitetura não existe, e não vejo porque tem que continuar a ser assim.
Lembro da alegria da minha filha na primeira viagem internacional que fez, ao ver que alcançava a maçaneta da porta sem esforço e a torneira da pia do banheiro sem precisar subir no banquinho, e isso em terra de um povo de estatura média maior do que a nossa. Temos paisagens maravilhosas, que diante de janelas acanhadíssimas viram inúteis paisagens. E a um primeiro esforço de se padronizar a indústria – desde tamanhos de roupas a tomadas de eletricidade – resistência e críticas. Vejo por aqui uma tendência a relevarmos tudo, temos raízes mais fincadas do que palmeiras imperiais, para o bem ou para o mal. Defesa e reação a mudanças, antes mesmo de avaliar sua propriedade ou qualidade, são traços culturais e sobras de um autoritarismo que em nada nos ajudam.
Essa cidade não é de quem compra, vende, destrói ou constrói, ou de quem só a enxerga somando metros quadrados. É dos seus – cariocas ou honorários – apaixonados, mas que infelizmente não sabem cuidar do que é seu.
Daí ficamos com o hotel marina quando acende, o sol de Ipanema quando se põe, os rios que passam em nossas vidas e não conseguimos desassorear facilmente, dores com razão ou sem razão, morais imprudentes, cadentes recordações.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Dupla face


Se uma coisa te abala fora da medida, procure na infância a explicação. Leiga de todo, me surpreendeu mesmo esse elementar veredito, mas vejo que infância é coisa dispersa, temos muitas infâncias, amadurecemos aos trancos e aos pedaços, por isso o sentido é buscar no passado os tropeços que passaram batidos e nos engasgam mesmo quando nos falha a memória. O corpo tem memória, nem sempre consciente.
Não sou cinéfila, gosto de cinema, não sei se tenho filmes cult, tenho filmes caros, dos que dão vontade de ver e rever muitas vezes. Podem ser de qualquer gênero, alguns até ficam datados, podem decepcionar um pouco, mas o sentimento que um dia provocaram, não. É o dom da arte verdadeira, que fala com as nossas emoções.
“Violência e Paixão” é um dos que não me deixam, por mais que mude a moda. Mesmo envelhecido, através da história que conta continua a falar sobre diferenças, incompreensões mudas, impossibilidades, desencontros surdos. “Gruppo di famiglia in um interno”, de Luchino Visconti, em italiano, “Conversation Piece” em inglês. Gosto igual dos títulos, menos do que recebeu aqui.
Burt Lancaster é um professor que vive sozinho com seus livros, cercado de toda a sua arte. Ceder à proposta de deixar uma marquesa ocupar seu apartamento de cima já é quase uma violência para ele. Junto com ela vem sua filha, o namorado e o amante, e todos os insetos que entram quando se abre uma janela. Malditos, benditos. Escolhas e o que se perde com elas.

Um ser dividido: muito pequena, descobri o mar e a montanha, que não se somavam. Cheiro de sal ou cheiro de mato, eles se alternaram na minha vida desde muito cedo, quando tinha um perdia o outro. Quando a gente é criança, acha que tudo é para sempre, e quando gosta muito, a perda é sempre muito sentida.
Estou mesmo disposta a desbancar a maldição da bipolaridade: nosso coração é bipolar – quando não é tri – e nosso gosto pode muito bem nos levar de um polo a outro por genuíno sentimento de prazer e alegria mesmo.
Nada mais novo que um dia, nada mais difícil do que a ventura de virar uma página.