sábado, 29 de dezembro de 2007

Novo, velho, velho, novo, novo, velho, novo de novo...


Todo finalzinho de ano, lá vem ela, a tal esperança de renovação.
Recomeçar sempre. Deixar os problemas para trás e enfrentar novos desafios parece mais fácil e revigorante do que renovar o que não é novo, mas eu desconfio que chega uma hora que até novidade, quando é muita, se repete e cansa...mas o momento não é, definitivamente, de cansaço, portanto, xô cansaço!!
Existe por aqui um deslumbramento com o novo, seriam traços de país ligeiro e inculto um pouco além das medidas ? O espírito que aqui reina não parece voltado para a permanência e a duração, é muito mais freqüente a decisão de rebatizar e mudar a fachada, botando um par de vasos diferentes na frente se alguma coisa não estiver a contento, do que pacientemente procurar desacertos e corrigir rumos, talvez porque isso implique em ir ao cerne das questões. Sendo assim, Ano Novo faz sempre muito sucesso.
Raro é o ano em que não recebo de alguém esse trecho de poema do Drummond, que tem, no entanto, a felicidade de não gastar nunca:

"Para ganhar um Ano Novo, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo; eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre".

Pode não ser fácil, mas tentar sempre vale, e o mundo conspira a favor, muda tudo o tempo todo, quanto mais a gente vive, mais sente as mudanças...
Outro dia achei uma foto minha com as torres gêmeas do World Trade Center ao fundo e pensei que esse cenário não existe mais. Estava no Japão quando elas foram abaixo e só sei que o mundo mudou muito a partir daquele momento. Resolvi guardar o que tenho com referência ao WTC, que não é muito, e não é mesmo nada para quem tem mania de guardar, numa caixa ou no peito, o que interessa e gosta, sejam lembranças ou um cardápio do Windows on the World, o restaurante do andar 107 de uma das torres.
E aí reparei que a camiseta que eu estou usando para dormir, a preferida, porque com o tempo foi ficando cada vez mais leve e macia, foi comprada na Orchard Street, a rua de comércio judeu na Nova York de outros tempos. É daquelas camisetas com desenhos de pontos turísticos de uma cidade, hoje é lugar comum, mas a primeira que eu vi e comprei era novaiorquina. Tem o Empire State Building, duas dançarinas da Broadway, uma maçã, três árvores do Central Park, o táxi checker/amarelo, uma shopping bag, a Brooklyn Bridge, a Estátua da Liberdade...e não tem o World Trade Center ainda.
Ele não existe mais, e minha camiseta resiste sem um furinho. Vou guardá-la. Não sei o que vai ser da minha decisão de me livrar de muito do que guardo, mas vou acolher bem o Ano Novo, com as esperanças de sempre, com as novidades que ele trouxer. A questão não é ser velho ou novo (não estou advogando em causa própria!)
É ser bom, e merecer ser mantido, guardado, lembrado.


Feliz Ano Novo!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Estranhas formas de vida


- Ela era uma piranha.
- Ela era um ser humano. E permita-me lembrá-la que mesmo o mais indigno dos seres humanos tem o direito de viver, e de tentar ser feliz.
-Pelo que eu soube, ela tentava isso em todas as direções.
Leo G. Carroll e Patricia Hitchcock, Strangers on a Train

-Os laços do matrimônio podem pesar demais em uma alma.
Advogado de divórcio, Born to Kill

-Lar é onde você vai e eles tem que te deixar entrar.
George Sanders, Uncle Harry

-Lar é onde você vai quando fica sem lugar para ir.
Bárbara Stanwyck, Clash by Night

- Se eu tivesse alguma sensatez, fugiria de você.
-Você não tem nenhuma sensatez.
Joan Bennett e Dan Duryea, Scarlet Streeet

- Você acredita em amor à primeira vista?
-Economiza um bocado de tempo.
Ann Sheridan e George Raft, They Drive by Night

- Sabe, minha mãe sempre me disse que se você procurar direito, vai sempre achar alguma coisa boa em qualquer pessoa, mas eu não tenho certeza com relação a você.
-Com todo o respeito pela sua mãe, esse é o segundo erro que ela comete.
Richard Widmark e Paul Douglas, Panic in the Streets

- Eu vim para Casablanca pelas águas.
- Mas estamos no meio do deserto.
- Eu estava mal informado.
Humphrey Bogart e Claude Rains, Casablanca.

- Há uma verdadeira mania, atualmente, de querer classificar todo tipo de relacionamento, as páginas internas dos periódicos estão cheias de enquetes e testes. O que acontece se o seu companheiro é mais jovem que você? A sua personalidade é dominadora ou submissa? Pervertidos ou castos? Para descobrir, é só marcar com uma cruz aqui e ali, e pronto!
(...)
- Muitas vezes, através do pensamento, viajamos como os carros numa rodovia, docilmente guiados pelos sinais e avisos de desvios, limitamo-nos a avançar por inércia, sem ver coisa alguma. Da mesma forma, os testes e as enquetes nunca incluem a existência de um sentimento inútil e puro tal como um gesto de carinho.
Susanna Tamaro, A Grande Casa Branca. Rocco/2007

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Ler e escrever


Escrevo para esse blog sem método, tempo, hora ou local determinados. Tenho pilhas de pequenos papéis com idéias anotadas ao lado do computador, dentro da bolsa, de notas feitas nos engarrafamentos, na sala de espera do acupunturista, nas mais variadas mesas de refeição, em casa (não sei explicar, mas elas nunca ocorreram no trabalho), nas padarias, nas pizzarias do Zona Sul, onde muitas vezes almoço sozinha e satisfeita. Gosto muito de companhia, mas gosto igualmente de caminhar e almoçar sozinha, o que não caracteriza nenhum comportamento antisocial, apenas são horas muito boas para pensar.
Isso não significa excesso de inspiração ou de talento. Embora as idéias sejam contínuas e abundantes, várias acabam no lixo.
Significa mesmo que o prazer e a vontade de escrever é inversamente proporcional ao tempo que tenho disponível. Enquanto organizo minha pilha, publico aqui outra entrevista feita pelo Paulo Francis, que consegui achar no meu computador, o que pode ser considerado uma façanha ainda maior do que arrumar os meus papéis.
A entrevista é com Norman Mailer. Foi feita pelo Francis para a Globonews, apenas tirada do gravador e traduzida por mim, em 1996.
Não tenho direitos sobre ela, e se alguém se incomodar em vê-la reproduzida aqui, é só avisar, retiro imediatamente. Mas o Francis também é cultura, especialmente antes de virar o personagem que encarnou na TV, e é uma pena que a entrevista fique guardada. Tive o maior prazer em reler (no entanto, queria lembrar que voltarei a escrever…)
-
Paulo Francis - Estamos na casa de Norman Mailer em Brooklyn Heights, Nova York. Norman Mailer é o escritor sério mais famoso dos Estados Unidos. Produziu ficção e não ficção, como veremos nesta entrevista.

PF - Sr. Mailer, neste livro “Lee Oswald, um Mistério Americano”, você junta dois dos seus grandes interesses, a figura do Pres. Kennedy e a figura do assassino, Lee Harvey Oswald. Você concorda com isto?

NM - Eu acho que minha ênfase foi muito mais em Oswald do que em Kennedy. Aqui, Kennedy aparece de passagem. Falando do assassinato, eu cheguei à conclusão que não podia concluir definitivamente que ele era o assassino. Depois de um ano e meio escrevendo e pensando sobre isto, conclui que ele tinha o caráter para ser o assassino, mas não quer dizer que foi. Três-quartos da minha mente acreditam que ele foi. Se você quiser, podemos falar como se ele fosse, deixando claro que posso estar errado.

PF - Você fez dele um personagem interessante, e ele na verdade não é, é um homem medíocre. Examinando bem, você criou um personagem de ficção.Talvez Dimitri Karamazov também não fosse interessante, embora tenha assassinado o pai...

NM – Bom, afinal de contas, Flaubert escreveu “Un Coeur Simple” e fez um camponês comum ficar interessante. Ele acreditava que cabia ao escritor transformar uma pessoa sem graça numa pessoa interessante. Eu não acredito quando falam que o Oswald era desinteressante. Só na superfície. Por dentro era extraordinário. Apaixonado, louco, ele se via como uma pessoa mentalmente importante, isto foi uma descoberta: ele se via como uma pessoa mentalmente importante.

PF - Dizem que ele teria que ser um bom atirador, seria uma qualidade dele, mas você discorda. Você diz que não seria preciso ser um bom atirador.

NM –Ele era um atirador bastante bom no Corpo de Fuzileiros Navais. Acima da média. Não era excepcional com o rifle, mas era bom. Examinei a cena, e me parece que exageraram muito a dificuldade do tiro. Não era tão difícil assim.

PF - Era uma situação tensa...

NM - Nove entre dez pessoas falham em situação tensa, o décimo acerta. Outro ponto importante é que pensamos num atirador como excelente ou medíocre. Mas pense num esporte, uma estrela do basquete pode não fazer nada em um jogo e em outro ser magnífico. Há uma história famosa de Oswald errando um coelho a três metros de distância. Julgando por isso, decidiram que ele era péssimo atirador. Provavelmente estava muito nervoso, cercado de soviéticos, muito desconfortável. Ele era muito desigual, em tudo o que fez. Mas o melhor de nós e o pior de nós são duas pessoas diferentes.

PF - E ele era disléxico também, não?

NM - Sim, se você ler o que ele escreveu como forma de dislexia, ele era terrível, iletrado, era estúpido. Se você traduz para bom inglês, o que não é difícil, o inglês dele não era tão ruim, ele seria um bom escritor. Não um grande escritor, mas bom.Pensando assim, eu acho que ele era capaz de atirar bem ocasionalmente.Como um jogador de basquete acertando ocasionalmente. Um jogador medíocre.

PF - Você, como muitos escritores, tem interesse pela mente criminosa.
Tem um livro maravilhoso seu, “The Executioner’s Song”, sobre Gary Gilmore, que foi executado, e seu romance, “An American Dream” é sobre um assassinato. Portanto, você realmente tem interesse pelo assunto...

NM –Warren Beatty fez o papel de “Bugsy” Siegel, que era um criminoso brutal. Para provocá-lo, eu disse que ele foi muito convincente. Ele sorriu e disse que um bom ator só precisa de cinco por cento seus para criar o papel. Você tem sorte quando tem mais de cinco por cento. E o que ele disse vale para escritores. Os meus cinco por cento provavelmente são criminosos. E só o que eu preciso para escrever sobre criminosos. Sem estes cinco por cento eu não poderia escrever. Mas existe uma crença que o escritor ou a escritora escrevem sobre si mesmos. Isto não é verdade. Se temos um dom, é o de usar a experiência de outro e deixar a imaginação fluir através dela, criando personagens diferentes de nós, exceto pelos cinco por cento de ligação.

PF - Sou um velho leitor seu. Lembro de um tempo em que defendia uma vida de liberdade sensorial, como no ensaio “The White Negro”, e em livros famosos que todo mundo leu. Ao mesmo tempo é um pai de familia com seis ou sete filhos...

NM - Nove.

PF - Nove!? Eu não sabia. Você levou uma vida boêmia, mas é um escritor sério, que produziu quase 30 livros, até onde eu sei. Isto é parte do processo do escritor para desenvolver a sensibilidade? Como você define isto?

NM - Isto seria se eu tivesse sentado a 45, 50 anos atrás e traçado um plano de ação.Não foi assim. As coisas acontecem. Tenho nove filhos porque fui casado seis vezes.

PF - Sim, eu sei.

NM - Cada casamento é uma cultura.As pessoas acham que se você se casa seis vezes não passa muito tempo com suas mulheres, mas de fato, só um desses casamentos foi curto, dois anos, os outros duraram sete, nove anos. Um casamento é uma cultura, e você muda vivendo uma cultura. O que me atraiu para Picasso é que seu estilo mudava com as suas mulheres. Se ele teve sete amantes importantes, tem sete estilos diferentes. Isto é verdade, uma mulher é uma cultura. Se você vive com uma mulher a sério, tem filhos e se divorcia, você passa por uma cultura. Se você passa sete anos na França, quando voltar não vai dizer: detestei a França. Vai dizer: a França e eu discordamos em muitas coisas, mas aprendi muito. O que quero dizer é que o seu estilo muda. E uma das coisas que entendi sobre Picasso é que sou muito mais como ele do que como escritores que admiro como Hemingway, Faulkner ou Melville. Eles tinham um estilo único, constante.

PF - Você escreveu um livro sobre o Egito antigo, nos anos 80. Antes seu estilo era caracterizado como espontâneo embora fosse muito trabalhado. Mas, a partir de “Ancient Evenings” você desenvolveu um estilo mais formal. Teve alguma coisa a ver com uma mudança em sua vida, suas perspectivas, ou o quê?

NM - Eu trabalhei em “Ancient Evenings” por onze anos. Do inicio da década de 70, até 81, 82. Em 1973, eu tinha 50 anos e resolvi começar a me organizar, escrever usando tudo o que eu sabia, em vez de ficar a mercê dos fatos. Tentar ser sério de uma outra maneira. Eu costumava adorar a idéia de escrever motivado pelos acontecimentos e resolvi mudar, ter mais controle sobre o que eu escrevesse. “Ancient Evenings” foi a tentativa de escrever um romance formal, num nível mais alto. Um fato interessante foi que, de 1978 a 80, desisti do livro, por dois anos, porque eu estava escrevendo “The Executioner’s Song”, que tinha um estilo totalmente diferente. Foi quando percebi que podia escrever em vários estilos.Novamente me ocorreu a imagem de Picasso. Picasso pintava em vários estilos, usando sempre o que fosse melhor para o que ele queria dizer. Pensei comigo: posso fazer a mesma coisa sem ter que me desculpar. Se quero mudar de estilo, mudo de estilo. “Ancient Evenings” é um livro muito formal, cheio do peso do antigo Egito, que era uma cultura pesada. E “The Executioner’s Song” tinha um estilo simples, simples como as pessoas em Utah...

PF - É um livro maravilhoso e muito mais popular do que “Ancient Evenings”. Mas você acha que em “Ancient Evenings”conseguiu dizer melhor o que pretendia?

NM - Não é o que você quer dizer, é o que surge. Você nunca sabe o que quer dizer até que você escreve.

PF - Deixe-me perguntar sobre “o grande romance americano”. Vi você numa entrevista na televisão dizendo ter desistido do livro. Você não acha que é o escritor certo para escrever este livro, ou talvez já tenha escrito e nós não percebemos. Quando li “The Executioner’s Song”, tive o mesmo sentimento que Joan Didion, na crítica do New York Times, de que não só você escreveu maravilhosamente sobre o ocidente, mas que escreveu também grandes romances. Talvez seja difícil para nós percebermos isto, porque somos seus contemporâneos. Você não acha que já escreveu ou talvez ainda vá escrever?

NM - Não se sabe. Talvez eu tenha feito um grande trabalho, que será lido por muito tempo, ou talvez eu seja apenas uma nota de pé de página daqui a cinquenta anos. E você não deve pensar nisso enquanto está trabalhando, porque duas coisas podem acontecer, ou você fica muito vaidoso e isto não é bom para o trabalho...

PF - Você não costuma ser tão modesto. Na verdade, você mudou a maneira das pessoas pensarem sobre muitas coisas. Minha geração, que não está muito longe da sua, aprendeu muito lendo seus livros.

NM -) Eu não estou sendo modesto. Acho que os livros são bons, eu só não sei se eles vão sobreviver. Talvez o romance sério não tenha nenhuma função no século 21.

PF - As pessoas continuam tentando, Phillip Roth, Updike, não sei sua opinião sobre ele...

NM - É muito boa...

PF - As pessoas continuam escrevendo bons romances, apesar do cinema, da televisão, dos computadores e tudo mais...

NM - Mas não somos mais importantes. É extraordinário. Há três, quatro anos atrás, quando “Harlot’s Ghost” foi lançado, eu achava que era um livro que interessaria muita gente, porque tratava da CIA. Mas o livro não foi bem. Nenhum livro foi bem naquele ano (1991). A única escritora que foi bem foi Nadine Gordimer. Ela tem a extraordinária vantagem dupla de ser uma mulher e ser negra, e ser totalmente polìticamente correta.

PF - Ela ganhou o Premio Nobel.

NM - Sim, mas nenhum escritor é mais polìticamente correto do que ela. Ela é, claro, muito talentosa. Mas hoje é como se o critério para o sucesso de um livro não dependesse mais do livro, e sim se o autor é polìticamente correto, está na moda, etc. E finalmente o computador, eu acho, desvirtua a noção de se sentar por algumas horas com um livro no seu colo. Agora você olha para uma tela iluminada, é tão diferente. Voltando para McLuhan, o meio é a mensagem. O computador não é o meio para a literatura.

PF - Em “The Prisoner of Sex” você não diz boas coisas sobre tecnologia. Você não acha que é um pouco “luddite”?

NM – Ah, eu sou um “luddite”, eu não gosto de máquinas. Particularmente máquinas eletrônicas.

PF - Lembro que você disse que quando come uma coxa de galinha não joga o osso no mar, porque o lugar certo para ossos é a terra. Você dá muita importancia a este tipo de coisa.

NM - Detesto me colocar como ambientalista porque isto significa ser polìticamente correto. Acho que talvez estejamos nos destruindo, como uma cultura, como uma criação, o ser humano pode terminar se envenenando a ponto de deixarmos de existir. Talvez esteja completamente errado. Talvez tenhamos uma civilização maravilhosa daqui a uns anos. Mas não tenho esta certeza. Não acredito que estamos caminhando para um mundo decente.

PF - Estes livros exigem muita inteligência, muita pesquisa, muita análise. Mas tem uma coisa que me deixa muito curioso a seu respeito. Você parece com uma mulher que você admira muito, Jacqueline Kennedy, de quem ouvimos muito mas sabemos pouco.

NM - Graças a Deus.

PF - Você nunca fala das suas relações com sua mãe, com seu pai...Você não acha que nos deve uma autobiografia?

NM - Não, só devo aos leitores divertimento bastante para justificar o preço do livro.

PF - Claro, eu digo deve, no sentido em que deve a você mesmo.

NM - Nunca escrevi sobre coisas pessoais porque, como já disse antes, acho que as experiências que temos na vida se cristalizam na nossa psique . São tão concentradas, tão perfeitas em sua beleza ou sua feiúra, ou complexidade, que se tornam cristais. E se você mantém estes cristais intactos, e filtra através deles sua imaginação, se você tem alguma, você pode criar inúmeros personagens, é como Warren Beatty e seus cinco por cento. Com um aspecto meu, ou de minha mãe ou de uma das minhas mulheres, posso criar centenas de pessoas, usando estes cristais e não escrevendo sobre eles. Então, eu nunca escrevi sobre minhas mulheres, meus filhos, nem sobre mim, diretamente.

PF - Sei que Freud está fora de moda, mas é muito importante seu relacionamento com seus pais, sua mãe, eu sei que sua mãe é uma grande fã sua. Nós ouvimos dela, mas não ouvimos de você. Gostaria de ouvir de você...

NM - Não, eu não quero, meus editores querem que eu escreva a minha autobiografia, porque acham que vai vender bem.

PF - Todo mundo lerá. Até as pessoas que não gostam de você.

NM - Se eu escrever, será o meu fim como escritor. Porque aí então terei que usar todos os cristais. E não quero parar de escrever tão cedo.

PF - No Brasil, eu acho que você vai gostar de saber disto, você é de longe o mais famoso escritor americano sério. Não sei sobre os escritores fáceis, mas entre os sérios, você está entre os mais famosos no mundo.

NM - Bom, se você pôde ver, meus olhos cintilaram quando você disse isto (gargalhadas).

PF - Bom, quero agradecer-lhe muito, foi muito agradável. Espero ouvir mais notícias suas. Última pergunta: você está escrevendo um romance, outra ficção, ou um estudo histórico...?

NM - Estou trabalhando em um romance, mas não posso falar dele agora. Mas acabei de escrever um romance curto, será lançado no próximo ano. Mas o que eu quero mesmo fazer é a segunda parte de “Harlot’s Ghost”.

PF - Seu estudo sobre espionagem.

NM - Sim, porque eu prometi. Se depois de ler mil e duzentas páginas, o leitor encontra um “a seguir” na última página, isto é uma promessa, que não quero morrer sem cumprir. É o proximo livro que eu quero fazer.

PF - Agradeço muito pela entrevista. Tenho certeza que vai aumentar o interesse pelos seus livros muito mais do que já existe. Você já é muito famoso no Brasil.

NM - Bom, um médico não é melhor do que o seu paciente, e o romancista não é melhor do que seu entrevistador. Portanto, obrigado, Paulo Francis.

PF - OK, obrigado, bye, bye.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Galbraith, Francis, pastas de arquivo


Faz pouco mais de dez anos, 1996, não é tanto tempo assim, mas quando a vida muda muito, uma década atrás pode parecer perdida na pré-história.
Eu morava em Nova York e entre outras coisas que fazia, tirava de um gravador para o computador, traduzindo, entrevistas que o Paulo Francis fazia para a Globonews - ele entrevistava em inglês o que tinha que ser legendado em português. Uma delas foi com o economista canadense/americano John Kenneth Galbraith.

O Francis é até hoje um mistério para mim: a pessoa afável que conheci, e que por isso fez muitos amigos e admiradores, não combinava com o que depois passou a dizer na televisão, que eu não gostava nem concordava.

Galbraith era um velho conhecido dos meus arquivos. Em criança, herdei da minha mãe um armário cheio de escaninhos, era uma “discoteca”, onde ela antes guardava seus discos de 78 rotações. Ela adorava música. Eu brincava de arquivar o que lia e gostava, e esse móvel veio a calhar: até hoje tento me livrar de pastas que faço e desfaço. Consigo em parte. Lembro de ter guardado uma entrevista do Galbraith que me impressionou muito. Ela felizmente já foi para o lixo, mas a entrevista que traduzi para o Francis ainda está no meu computador, e parte dela reproduzo aqui.

P.Francis - John Kenneth Galbraith, professor emérito de Harvard. Nós estamos em Cambrige, Massachussets, onde ele mora. Este é o seu livro “The Good Society”, seu vigésimo livro, publicado em português com o título de “A Sociedade Justa”. Nós vamos fazer uma entrevista com o Prof. Galbraith perguntando-lhe sobre o livro, sobre o Brasil e sobre suas idéias em geral.

P.F. - Professor Galbraith, sendo esta uma entrevista para a televisão brasileira, devo perguntar o que o senhor acha das possibilidades do Brasil, um país enorme, maior que os Estados Unidos, com tantos recursos, a maioria deles ainda inexplorados, porque setenta por cento do país é controlado por companhias estatais que impedem a abertura da economia. O senhor pode nos dar algumas idéias sobre o assunto?

J.G. - Estive muitas vezes no Brasil, sou um admirador deste país e acho que está no rumo certo. Houve um tempo em que a industria sofreu o problema que você mencionou e que é sério. Nós aprendemos que a economia moderna precisa de liberdade de mercado para funcionar bem. Eu me vejo como um social-democrata mas aceito a economia de mercado, não há alternativa para ela.

P.F. - É muito bom os brasileiros ouvirem isso, muitos deles ainda não têm esta certeza. Em seu livro, A Sociedade Justa, o senhor não vê a igualdade como uma coisa desejável, ou possível. Mas vê uma possibilidade de justiça social, adquirida cobrando impostos progressivos. Em 1994, uma maioria elegeu um congresso republicano, porque se sentia pouco representada e muito taxada. Pode ser uma opinião errada mas representava o sentimento dos eleitores. O senhor comparou, brincando, o Contrato com a America com o Manifesto Comunista. Não seria mais plausível interpretar como um não aos impostos sem representatividade, porque a classe média está sub-representada neste país?

J.G. - Eu não diria isto, nunca. A classe média e os ricos estão muito bem representados no Congresso. O problema é que os pobres, particularmente nas grandes cidades, não estão representados. Eles não votam. O que tivemos há dois anos atrás foi passageiro. Foi a revolta de uma pequena parcela da classe média e alguns ricos contra a rede de proteção, que precisamos manter, para apoiar os pobres.

P.F. - Mas setenta por cento dos homens brancos votaram pelos republicanos. Achei isto surpreendente.

J.G. - Setenta por cento dos que votaram, mas nosso povo não vota. Temos uma democracia imperfeita. Só metade do povo vota.
Estes setenta por cento diminuiriam se tivéssemos os votos de todo o povo.

P.F. - Mas o senhor não concorda que os que votam são os mais engajados na mudança da sociedade? Deste Contrato com a América, não importa o que o senhor ache, muitos dos artigos passaram no Congresso.

J.G. - Acho que devemos esperar até a proxima eleição. Há dois anos tinha-se a impressão que de alguma maneira poderiamos ter uma boa sociedade com menos participação do governo. Poderiamos fazer isto cortando assistência médica, seguro social, e particularmente toda uma rede de apoio aos pobres...

PF - Mas...

JG - Deixe-me terminar. Há dois anos atrás, tivemos uma espécie de guerra contra os pobres. E descobriu-se que nada disso era muito prático. Estas leis não passaram. O que o porta voz, o Senhor Gingrich, fez, foi alienar muita gente que dependia desta rede.

PF – Eu acho que não, mas eles não estão preocupados com benefícios sociais, estão preocupados com o imposto alto. Quem ganha abaixo de cinquenta a cem mil dólares por ano se sente sobretaxado. Eu ouço isto de muitos dos meus amigos americanos...

JG - Eu aceito isto, os ricos e os ascendentes sempre se sentem sobretaxados. É inevitável. Os muito ricos gastam um tempo enorme inventando argumentos para provar que deveriam pagar menos impostos.

PF - O senhor escreveu propondo a cobrança progressiva de impostos.

JG – Que eu apoio com convicção.
Eu não escrevo para o aplauso, eu escrevo pela verdade. Cobrança de impostos progressiva tem uma enorme influência civilizante, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Como eu disse, uma das maiores preocupações dos muito ricos é tentar provar que não devem pagar tanto. Você já ouviu falar do método de distribuição do pardal e do cavalo?

PF - Não.

JG - É muito sério. Ele sustenta que se você alimenta o cavalo com bastante aveia, alguma vai acabar caindo na estrada para alimentar os pardais. É a base da doutrina dos ricos.

PF - Eu lembro de ler no livro de Edmund Burke, “Reflexões sobre a Revolução Francesa”, ele disse que os ricos deveriam ficar mais ricos, pois esta seria finalmente a maneira de conseguir alguma riqueza para as classes mais pobres. É uma opinião bem conservadora que o senhor não deve partilhar...

JG - Eu não acredito nem um minuto neste absurdo. Eu acredito em uma distribuição equitativa da renda, eu não acredito em uma distribuição igual da renda. Para uma coisa devemos estar alertas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos: no sistema democrático, do qual dependemos e para o qual não há alternativa, a distribuição de renda é muito desigual.

PF - Eu entendo isto, mas as tarefas, a inteligência, as habilidades são desiguais. Aqui existe esta população enorme, que vem do mundo inteiro para países ricos, como os Estados Unidos, o único país do ocidente, do primeiro mundo, a criar empregos. De 1974 a 93, a Europa ocidental não criou um único emprego e os Estados Unidos com sua economia aberta, criou milhões de empregos. O senhor não acha que isto traduz bem o sistema daqui?

JG - Não afirmo que o sistema não funciona, eu afirmo que muitas pessoas, principalmente nas grandes cidades, ficam fora do sistema. Tranquilidade social, justiça social, asim como decência social, exigem que os pobres tenham oportunidades decentes.

PF - Em seu livro “A Sociedade Afluente”, quando falava do novo estado industrial, o senhor parecia bem mais confiante no futuro deste país e agora o senhor parece bastante crítico. O que aconteceu?

JG - Eu não sou um pessimista. Neste novo livro, eu falo do que está errado e também no que seria certo. Isto pode ter dado uma impressão errada, mas eu estava tentando definir o que seria uma boa sociedade.

PF - E seria naturalmente uma sociedade com justiça social e boa distribuição da renda.

JG - Eu diria igualdade de oportunidades para as pessoas, sem levar em conta a raça, o sexo, a origem étnica. Eu quero ver todo mundo tendo oportunidades de acordo com suas proprias habilidades e suas aspirações. Isso seria diferente para pessoas diferentes. As pessoas teriam motivações diferentes para ganhar dinheiro. Alguns fariam muito mais do que os outros. Eu não defendo a possibilidade de igualdade de renda, eu quero que se reconheça que a nossa economia distribui a renda de uma maneira muito desigual, aqui e no Brasil.

PF - Sim, naturalmente, mas deixe-me perguntar uma coisa. Com esta fabulosa revolução tecnológica, haverá muita gente desempregada. Como o senhor sugere que o governo deva encarar a questão do desemprego?

JG - Deve-se ter uma visão mais ampla do problema. Com o desenvolvimento da economia, nós passamos da simples produção de coisas, objetos físicos, para as necessidades mais elevadas da sociedade, como as artes, a exploração científica e técnica, as universidades. Com o desenvolvimento da economia, tendemos a absorver pessoas em outros setores além da simples produção industrial. Isto é o que acontece nos Estados Unidos. É o caso de Nova York, onde ninguém vive da atividade industrial, mas todos ganham bem a vida na área do laser, das artes, da propaganda...

PF - São os chamados serviços...

JG - Indústria de serviços. Nós não devemos ter a mente atada apenas na atividade industrial.

PF - O senhor dedicou um capítulo inteiros para os pobres no planeta, as nações pobres. O senhor acha que os países pobres podem acompanhar este fantástico progresso tecnológico do primeiro mundo? O Brasil é um bom exemplo, não se consegue abrir a economia, embora o atual presidente tente. Com toda a distancia tecnológica, o senhor vê uma maneira de equilibrar as diferenças?

JG - Este é certamente o maior problema dos nossos tempos. O progresso econômico moderno é uma coisa muito desigual. Eu discuto no livro que esta é uma das responsabilidades que devemos assumir. Devemos ajudar os mais pobres no planeta. Eu dou muita importancia para o investimento humano, em educação, saúde. Devemos ter sempre em mente um fato simples do nosso tempo: não há povo culto e educado que seja pobre, e não há população iletrada que seja rica. Este é um forte indício da importância da educação.

PF - Em sociedades organizadas, como a União Soviética, os povos se entendiam melhor do que agora. De repente, temos um número enorme de pequenas guerras étnicas. Nesta sociedade, que é a mais rica do mundo, temos a bomba de Oklahoma, o Unabomber. O senhor acha que existe alguma coisa psicológica que deva ser analisada por economistas, políticos ou profissionais sociais? Eu sinto um enorme desconforto com o presente.

JG - Eu não sinto isso de modo algum. Eu acho que existe falta de notícias e então alguém como o Unabomber ganha uma atenção enorme. Um desastre de avião vira manchete. Estas são aberrações normais de uma sociedade normal. Nada que nos faça pensar em um período excepcional. Com o fim da guerra fria e a paz entre os países afortunados, estas coisas ganharam mais atenção do público do que teriam em outros tempos.

Sobre populações miseráveis, nos EUA e no Brasil:

JG - Mas eu não acho que estes problemas não têm solução. Acho que três pontos são parte da solução. Em primeiro lugar, uma rede de proteção que livre as pessoas da miséria absoluta. Em segundo lugar, um forte sistema educacional. Eu repito o que disse antes, isto é absolutamente essencial. Em terceiro lugar, a criação de alguns serviços importantes para os pobres, como saúde, bibliotecas, casas populares, o que o sistema privado, o sistema de mercado, não oferece. Com estas três coisas, ficaremos muito melhores do que estamos agora.

PF - Professor Galbraith, agradeço muito por esta entrevista e espero que o senhor vá novamente ao Brasil, em breve, para ver o novo país se desenvolvendo sob a liderança do presidente Fernando Henrique Cardoso.

JG- Eu é que agradeço. É sempre um prazer ir ao Brasil. Saudações a todos que sofreram com meus livros no passado...

PF - Não, seus livros são muito claros e muito bem escritos, eu posso dizer, sendo seu leitor. Embora não partilhando de algumas das suas opiniões, sou um grande admirador seu.

JG - Muito obrigado.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Santa Rede de cada dia


As últimas gerações da minha família eram tão católicas que suspeito que estariam dando bandeira de cristãos novos. Se é fato que estes adotavam nomes de acidentes geográficos e árvores frutíferas como sobrenomes, além do La Rocque, minha mãe tinha Costa e Pereira, que não me deixariam mentir.
Pensando em religião, lembrei do amigo Redi, que dizia que era judeu mas não era muito católico... salve a mistura e o sincretismo tão à brasileira que conhecemos por aqui. Acabei de ver num programa de televisão que exu só é associado ao demônio sob a ótica das religiões ocidentais. Por representar uma força tempestuosa, sexual inclusive, mas sem nenhuma alusão ao pecado, tanta energia e liberdade sem culpa só poderia ser coisa do demo. Acho que tanto católicos quanto espíritas, por exemplo, pregam com muita grandeza a generosidade e a fraternidade, mas usam como trunfos a culpa e o medo do inferno. E axé é construção, serve para arquitetar tudo de bom.
Por tudo isso, mesmo tendo fé e respeitando todas, faço minhas as palavras do Frank Sinatra: sou a favor de qualquer coisa que ajude a passar a noite, sejam orações, calmantes ou uma garrafa de Jack Daniel’s. Bem, hoje eu diminuiria a dose. Muita coisa que não fazia mal antes agora faz. Quem poderia imaginar que um dia até o leite sofreria restrições?
O mundo sofreu mudanças profundas na minha geração.
Difícil até de lembrar como era antes da www. Merecia uma padroeira essa milagrosa rede. Lembro de rirem de mim porque não lembrava como se comprava leite antes do saquinho plástico e da caixinha. Não lembrava como era distribuído na cidade, porque na roça lembro bem, era o Seu Júlio, que passava numa carroça pela estrada em Itaipava, e trazia uma leiteira de metal, que no dia seguinte era trocada por outra. Os três dedos de nata que ficavam em cima eram de puro creme de leite – o que sobrava das nossas colheradas virava manteiga, que meu pai gostava de fazer, batendo e trocando várias águas. Seu Júlio trabalhava no castelo de Itaipava, que era da família Smith de Vasconcellos, família paulista que achou de construir um enorme castelo de pedra como se no vale do Loire estivesse, mas se encontra mesmo às margens do Rio Piabanha.
Passando de Itaipava para o mundo, quero ser a primeira a pedir bênçãos para essa rede, quando houver alguma santa protetora, o que não seria descabido, Santa Clara não é protetora da televisão? Santa Vanda não é protetora dos peregrinos? Teremos para quem rezar, por exemplo, a cada vez que a Virtua enguiça, rezar para que respondam às nossas mensagens, mesmo que algumas vezes o silêncio possa ser mais revelador do que as respostas.
Como nada é perfeito, assessores de imprensa caíram na rede pra valer - mesmo assim a enxurrada de mensagens ainda é melhor do que atender ao telefone alguém querendo saber se em nossas pautas atuais cabe a clientela que representam. O jornalismo também mudou demais nos últimos tempos, como mudou a medicina – daria para imaginar profissionais desses dois ramos sendo oferecidos por assessores de imprensa? Deve ser culpa da Lusitana, de tanto rodar trazendo mudanças.
A rede também não é perfeita para contatos muito pessoais. Ouvi um dia no programa do David Letterman uma pertinente observação sobre os percalços da comunicação pelo computador: a emoção e o tom se perdem ou nunca chegam a seu destino do jeito que saíram, viajam tão mal quanto alguns vinhos, e podem trazer confusões, decepções e contratempos. Mesmo com todas as mudanças, os sentidos humanos continuam, portanto, na crista da onda (ao contrário dessa expressão!).

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Guardar


Pais adoram contar histórias dos filhos quando eram pequenos. Já os filhos, costumam achar que é mico, e ficam no mínimo desconfortáveis quando isso acontece. Mesmo assim, o que vale a pena é bom registrar. Mais tarde, especialmente quando eles tiverem seus próprios filhos, irão entender como sinal de interesse e carinho. Fiz isso num pequeno caderno, antes da banalização dos filmes domésticos, onde se pode ter guardado um bom momento do passado, mas os flagrantes nem sempre acontecem, como nas horas mais espontâneas e particulares, as horas das atividades corriqueiras, de vestir, de dormir, de comer.
Crianças mostram seus traços, anseios e aptidões muito cedo, e estar atento a eles vai além de dar prazer ou divertir os pais, pode ser útil para ajudar os filhos mais tarde.
Todos os dias temos notícias de pais chocados e surpreendidos com o rumo que os filhos escolhem. Não deveriam se surpreender. Criar e educar, além de exigir trabalho, não é uma tarefa solitária e desvinculada do que se tem em volta. "É preciso uma cidade para criar uma criança", diz um sábio ditado africano - ou seja, educar é tarefa para pais, professores, legisladores, governantes. Não precisa ser letrado, basta ser sensível para saber disso. Lembro da observação de uma costureira da favela da Rocinha, falando de crianças e de violência: “a gente sabe o que uma agulha rombuda pode fazer num tecido fino”.

Comecei a reparar que era mesmo única a minha filha única quando eu desejava bons sonhos na hora de dormir, e a Luiza me respondia que não gostava de sonho, gostava era de pesadelo, que quando a gente acorda, vê que acabou. Já sonho, acabava, e ela ficava uma fera. Choque de realidade aos quatro anos? Ficava preocupada e perguntava pelos pesadelos: eram “um cachorrinho do outro lado da rua latindo e me chamando”, ou “um algodão gigante bem ali na janela”.

Muito pequena mesmo, no banco de trás do carro, viu a estátua do Cristo Redentor de costas, um ângulo diferente do que via da janela de casa e ficou espantada: “mas viram ele?? Quem vira ele?!”

Com três anos e meio, observando uma violeta que ela viu nascer e morrer, perguntou meio preocupada, achando a vida muito curta: “mas as flores são diferentes que as moças, não é mesmo?”
Foi a idade do primeiro filme, A História Sem Fim: “Vamos logo, senão a gente vê essa história com fim...”. Como gostou muito, mas também passou muito medo, tentou negociar: “quero ver de novo, mas ficar na última fila, que lá a gente vê bem pouquinho”.

Aprendendo sobre “a atividade esporte” na creche, perguntou: “filha é trabalho, não é esporte não, né, mãe?”.
Reclamava da Lúcia, uma babá atrapalhada que eu arranjei, e que sempre perdia a hora: “vou comprar um galo de verdade numa fazenda e dar para ela.”.
E explicava para a Lúcia, depois da peça Simbá de Bagdá: “Bagdá é uma cidade, Simbá é uma espécie de índio”.
Brincadeira nessa época já era esperta: querendo brincar de pique e percebendo a desvantagem, ela combinava: “mamãe, você corre atrás de mim, e quem é pegada é que é a campeã, tudo bem?”

Indo de carro para Búzios, alertei que tínhamos que ajudar a prestar atenção nas placas da estrada. Ela respondeu lá de trás: “lamento, mas não sei ler”.
Também no carro, quando uma nuvem cobriu o sol e o tempo mudou bruscamente: “Ih! O filme ficou em preto e branco...”. Depois contou que “o chuvaral alagoou tudo”.

Aos seis anos, continuava a desconfiar que fantasia era melhor que realidade: “queria que a vida fosse igual desenho: cai do abismo, não se machuca, leva tiro, fica preto, toma banho, fica bom, passa o carro em cima, fica fininho, endireita e tudo bem”. Mas graças a esse discernimento, questionou a amiguinha que queria pular com ela da cobertura no quarto andar, com dois panos amarrados feito capas de Mulher Maravilha: “acho que não vai dar certo, Manuela”. Foram falar com a mãe, que jogou um tomate lá de cima e mostrou o que ia acontecer com as duas se pulassem...

Ela estudava na mesma creche que a filha do Gabeira, que cuidava do estilo e lançava moda desde os tempos da tanga de crochê, bem antes de ser deputado. Nós nos conhecíamos, mas eu não reparava muito quando ele chegava para deixar a filha na creche, lembro vagamente que tudo era muito colorido, do carro às roupas.
Vi no Leblon uma loja de sapatos infantis que eu achei lindos, de uma estilista famosa aqui, o couro parecia estampado com decalques, bichinhos, raminhos de flores, e eu achei que ela ia ficar louca na loja. Para minha surpresa, ela, que adorava presentes, não quis nenhum sapato, e sugeriu rindo: “Mãe, nessa loja, quem vai querer comprar é o Gabeira!”.

sábado, 17 de novembro de 2007

Cantoras


Li recentemente uma boa biografia da Dalida, uma cantora que muita gente pode nem conhecer. Apesar do enorme sucesso que fez quando eu era adolescente, tinha me esquecido dela, até que em 1996, entrei em uma lojinha no interior do estado de Nova York onde tocava um CD que me remeteu como um foguete, como se diria na época, para os quinze anos de idade. Gostava mais de Chaque instant de chaque jour, e de J’attendrai, mas que alegria ouvir Come Prima!
Bem depois disso, descobri surpresa em Paris que ela ainda faz muito sucesso, apesar de já ter morrido há vinte anos. Datada, mas não menos divertida por isso, conquistou seu lugar no seu tempo e cadeira cativa em muitos corações.
Criados em um país sem memória, nossa tendência é achar que o mundo inteiro é assim. Não é. Sei que parte do interesse se deve ao lucro que a memória ainda pode produzir, mas quanto mais civilizado o país, infinitamente maior o apreço pela cultura.
Mesmo não sendo gay, virou sua rainha, talvez por ter abraçado a luta pela liberdade e contra o preconceito em geral, de sexo, de idade no amor (como a Piaf, teve maridos muito mais jovens que ela), de nacionalidade - Dalida conseguiu ser idolatrada na França sem pronunciar o “r” como os franceses, e isso não é pouca coisa em se tratando de franceses...
De família italiana radicada no Egito, nascida no Cairo, foi Miss Egito antes de se estabelecer em Paris e fazer sucesso durante décadas no mundo inteiro.
Fui ver Piaf outro dia com medo de ficar triste. Cresci ouvindo suas músicas, era a cantora preferida da minha mãe, que morreu há um ano. Minha irmã morreu há um mês, e além de cantar e compor com muito talento, tocava todas as músicas que queria, no violão, de ouvido. Mas o filme é tão bom que não fiquei triste, saí com vontade de ver de novo. E saí pensando que ser alegre ou ser triste pode ser uma marca, um dom ou uma decisão pessoal, não sei. Sei que cantar é abençoado, e era o talento que eu gostaria de ter se pudesse escolher.
Dalida não é a Piaf, mas passava muita alegria, embora não saiba dizer qual das duas teve a vida mais dramática. Acho que a exuberância pessoal e o sucesso comercial de sua carreira resultaram numa imagem mais festiva, e superficial, apesar de todos os suicídios de sua vida, os de dois maridos e os próprios (no plural porque inclui uma tentativa frustrada anos antes de conseguir morrer). Ninguém com tanta angústia poderia ser voltada apenas para o sucesso comercial. A angústia era anterior, não foi fruto do descompasso que o sucesso costuma provocar pela dificuldade de administrar muita notoriedade ou muito dinheiro. O ser humano teve que se adaptar, em um tempo historicamente muito curto, a uma velocidade maior do que a das próprias pernas, um reconhecimento maior do que o das pessoas com quem poderia cruzar ao longo de toda a vida, um dinheiro maior do que o necessário para levar uma vida muito boa. Os mais preparados podem ter sucesso, mas dificilmente viram livro ou filme. O grande público prefere os freaks.
Lembrei de um matemático americano, daqueles que eles sabem produzir com capricho, conhecido como Unabomber, que mandava bombas pelo correio, para protestar contra a sociedade industrial. Chaplin conseguiu criticar a linha de montagem fazendo menos estrago e alcançando mais gente, embora de maneira menos contundente... As escalas no mundo não têm volta, mas têm correções possíveis, podem ser menos selvagens, em nome de um pouco mais de equilíbrio entre as gentes, e dentro das gentes.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Papo cabeça, sem pé, muitas perguntas e nenhuma resposta


Se está difícil aceitar o rumo que a vida toma, ou saber que rumo se toma na vida, talvez seja porque você não tenha na frente a opção ideal...talvez é uma palavra danada, porque podendo pender para o sim ou para o não, pode guardar a tão abençoada esperança, mas com certeza mesmo, encerra incerteza, e você não sai do lugar. A opção ideal não existe, a gente deixa de lado, melhor olhar as que a gente tem em perspectiva.
Estar no caminho certo ajuda, e é dentro de você que deve chafurdar, sem dó nem piedade, e ainda por cima com sinceridade...porque não vai achar a resposta dentro de um biscoito chinês, no muro de um templo japonês, num terreiro de macumba, na bola de uma vidente, nas cartas de uma cartomante, ou na cabeça ao lado - já procurei e não achei.
Mas mesmo para quem não é de todo desligado, dentro da gente o terreno é às vezes muito vasto, tem pântano, tem sombra...lá vem o Rosa de novo: “Coração da gente – o escuro, escuros.”
Voltando ao nosso quintal, ou ao nosso muro: em cima do muro, por mais largo e sólido que ele possa ser, é impossível achar uma posição confortável por muito tempo. A busca, no entanto, continua difícil:
vai esbarrar no contracheque, na vontade do chefe, no problema da família, nas consultas que tem marcadas, na dieta que não fez, na omelete sem quebrar os ovos, nas análises que não quer fazer.
E vai chegar à conclusão que não se conhece o suficiente. Sem saber se vai ter tempo pra isso.
Por via das dúvidas, leio sempre os analistas de plantão, e li que nas situações em que a gente não acha a saída, é porque a hora de perguntar é na entrada. Mas e se a gente perde a hora, meu Deus?? Não sou pontual! Não há escolha sem perda, ainda lembra o danado.
Mas lembro de ouvir de um amigo que a psicanálise não resolve nada, ela arruma tudo nos escaninhos, e dá nome às pastas. Ajuda? Melhor poupar, por hora, o dinheiro do analista.
Seria melhor não pensar? Mas não pensar na gente, ou não pensar nos outros? Dá para escolher as duas, só a primeira, só a segunda ou uma opção anula a outra?
Clarice Lispector disse uma vez que já nasceu incumbida, um jeito preciso de mostrar como o mundo era pesado para ela e como o tempo era curto para fazer o que queria. Mais uma vez, disse tudo, e eu entendo perfeitamente. Preferia não pensar tanto. Mas vejo que tanto o talento quanto a procura, se não livra as pessoas do câncer, salva do tédio, do esquecimento e da mediocridade. E permite que de vez em quando, por alguns momentos, a gente fique leve, leve...de pernas pro ar.

sábado, 10 de novembro de 2007

“Mundo, mundo, vasto mundo,


se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não uma solução”, disse o Drummond. Aí Guimarães Rosa, outro mineiro dos bons, disse:
“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
Minas Gerais tem ainda mais arte do que minério, o mundo tem muito, muito mais rimas do que soluções, e o problema talvez seja justamente viver procurando por soluções, em vez de simplesmente viver, até porque o mundo gira ...e a Lusitana roda, para lembrar o slogan que ficou famoso mesmo sem fazer nenhum sentido - girando ou não girando o mundo, uma transportadora tem mais é que rodar, ora pois.
Quando fui a Washington pela primeira vez, a prima Luisa, que mora lá, me levou para ver todos os tons do outono. Achei o paraíso na terra.
Na segunda vez, muitos anos depois, voltei com outro sentimento, o de quem acabou de visitar um parque temático da vida real, o reino mágico do poder, do dinheiro e da gloria, mas já que o mundo gira, talvez antes mesmo do que a gente imagina, o Magic Kingdom verdadeiro passe a ter nos Estados Unidos importância maior do que a de Washington. O sonho da empregada aqui de casa, depois que comprou uma boa casa, é ir à Disney, e ela pode bem ir. Já de Washington, ela mal ouviu falar, e do jeito que estão administrando aquele império...

Bom, Nova York é o topo do mundo, seu “hino” diz que quem consegue vencer lá, consegue em qualquer lugar, e no entanto, com 17 anos, eu não sabia, e amarrava minha bicicleta nos postes da Quinta Avenida como se estivesse nas estradinhas poeirentas de Itaipava, gastando irresponsavelmente o tempo como se tivesse a vida pela frente e o mundo para sempre. Tinha, e estava ocupada, estava aprendendo. Mas as pessoas têm pressa por nós, querem sempre dispor por nós do nosso tempo. Lembro de um amigo me perguntar com um misto de ironia e de pavonice ferida: Mas você vem à Nova York para ficar passeando com o cachorro da tia? Felizmente foi isso que eu preferi fazer. Existem cachorros muito úteis na vida da gente, e especialmente quando a gente é muito jovem faz muito bem em evitar os cachorros grandes. Eu era jovem, mas até que nem era boba de todo.
E por aí vai, o mundo, a vida, a Lusitana que nem sei se ainda existe, a Avenida Brasil que conseguiu ser desbancada pela Linha Vermelha, que consegue ser ainda mais perigosa do que ela. Tem solução?


O mundo árabe parece que não tem, mas quando fui ao Egito, descobri um mundo surpreendente, no Oriente. Outra paisagem, outra cultura, outros valores, tudo muito diferente e estimulante.
Enigma é uma palavra bonita demais para ser decifrada. Mas vamos ganhando outros olhos para olhar melhor para os nossos costumes e o nosso lugar.


No Japão, já que o Oriente é Extremo, as surpresas e as descobertas foram ainda mais profundas.


E aí, dada a volta ao mundo, volto ao Drummond, que nunca precisou sair do Brasil:
“mundo, mundo, vasto mundo
mais vasto é o meu coração.”

domingo, 4 de novembro de 2007

Anima


Li uma vez que o ser humano envelhece quando deixa de amar.
Pela alegria e energia geradas pela força do amor, ele deve ser mesmo fonte de juventude – pelo preparo físico e psicológico que ele exige, também.
Para sobreviver aos desamores, idem.
A paixão é naturalmente restritiva - tem suas razões para isso. Mas o amor é um sentimento abrangente – pode tratar de amor à vida e às coisas do mundo. Por isso eu acrescentaria curiosidade à fórmula da juventude. O dicionário explica: desejo de saber, ver, informar-se, desvendar, alcançar; interesse. Citações no verbete do Collins falam de “olhos bem abertos e cheios de curiosidade” e da “curiosidade do repórter”. Muitas vezes me decepciono vendo a maneira com que a minha profissão é exercida, mas acho que a curiosidade é a sua melhor característica, essencial e saudável. Não deixar que ela fique morna, que se venda, ou se reduza à bisbilhotice já é outro departamento, que trata de qualidade e ética. A curiosidade pode olhar para o lado sem perder qualidade, ou para trás sem ser retrógrada, se está à procura de uma nova maneira de ver as coisas. Pensando melhor, vou olhar sempre a minha profissão com bons olhos, e deixar os maus olhares para os maus profissionais.

sábado, 3 de novembro de 2007

Luz e Sombra


Contradição é o meu traço mais coerente, graças aos céus.
Não fui agraciada com a segurança de quem sabe o que quer, de quem não vive assaltada pelas dúvidas, de quem vai em frente sem pesar cada decisão que precisa tomar, de quem não vai para a cama acompanhada de alguma ilusão que o tempo tratou de adormecer, que o tempo trata mesmo é de adormecer ilusões, uma a uma, nas suas caminhas.
Trago sempre comigo o receio da insensatez, o temor dos maus passos, o desprezo pelos erros de cálculo - pelo ridículo do tombo, pelo orgulho ferido quando flagrados, pelo sofrimento que provocam. Tenho, de quebra, medo de voar. E ainda, como agravante, uma enorme compulsão por sair do chão que, essa sim, acompanha os naturalmente desacomodados, ao longo de toda a vida.
De pai insensato e mãe sonhadora - ou o contrário, não sei - essa foi a minha herança.
Uma cama quente, um teto, um braço amigo, é tudo o que o corpo de uma alma desassossegada pode querer. Já a alma desse corpo, do que é que precisa?
De uma filha sorridente por perto, de água salgada no corpo, de um cheiro de mato, um canteiro florido, e paz.
Mas a vida também traz sem ninguém pedir: um carnê do INSS, outro do IPTU, um boleto do IPVA e mais um do condomínio, nossos neurônios, nosso suor, e nosso tempo, engarrafados higienicamente, para ir entregando à prestação, de acordo com o calendário planetário regulamentar.
Nasci com a alma engessada, bem no meio desse mundo - que manda a gente ficar quieta, em prol da placidez das águas.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Se a NET é contra nós, só Deus será por nós...


Andou chovendo muito no Rio. Chuvas fortes costumam desabrigar uma legião de pessoas quando caem por aqui, e dessa vez caiu também muita terra, fechando o Túnel Rebouças, a principal ligação entre as zonas norte e sul da cidade. É claro que o fechamento do túnel transtornou o trânsito e a vida da cidade, foi manchetes dos principais jornais do país por vários dias (as dezenas de centenas de desabrigados da Baixada e outros municípios fluminenses já estão acostumados a ficar na sombra nessas ocasiões – sem holofotes e sem água fresca).
Muitas perguntas foram feitas pela mídia, muitas autoridades trocaram acusações e juras de ir até os tribunais, mas de concreto mesmo, além do muro de contenção em cima do túnel, ficou a certeza de que não saberemos ao certo o que provocou o desmoronamento que fechou o túnel.
De resto, ficou flagrante, além da falta de administração, a falta hábito de pensar no povo e dar satisfação a quem paga o pato e a conta, já que as autoridades admitiram que erraram não alertando a população sobre os transtornos que ela enfrentaria ao sair de carro para trabalhar - o que poderia ter reduzido consideravelmente o caos.
Quando se fala em problema na cidade, a NET não pode ficar de fora. Depois de cinco dias sem internet, devo admitir que o serviço melhorou um pouquinho: da última vez foram dez dias. Agora, ela vai, ela vem... uns técnicos vão, outros vem... uns dizem que é o modem velho que precisa ser trocado...eu digo que não pode ser, porque o meu modem não pode ser culpado pela falta de internet no prédio inteiro...depois de trocado, dizem que é uma pecinha da conexão no prédio...depois da troca da pecinha, minha conexão continua mais indo do que vindo, e de tanto que me vejo forçada a ligar para eles, eu correria o risco de acabar noiva dos atendentes da NET, se não fosse o problema da ligação cair com freqüência - será de propósito?
Só as contas chegam em dia, o que eu considero misterioso, diante de tanta indigência administrativa.
Em meados dos anos noventa, passei dois anos morando em Nova York. Dizem que escapei de dois anos de buracos sendo abertos na cidade inteira, para instalarem os cabos da NET. Quando voltei, tratei de incorporar a novidade - do século passado – à minha vida. Depois de vários desencontros e desacertos, chegou à minha casa a equipe da NET. Logo discordaram da indicação do ponto onde estava instalado o telefone, insistiam que o ponto era outro. Existia realmente um outro ponto, onde havia uma extensão desativada. O fio saía de dentro de um armário no fundo do corredor. Não era o ponto original, mas era o que eles queriam. Avisaram que teriam que serrar o armário e perguntaram: “Vocês têm aí uma serra tico-tico?” Foram postos para fora. Dias depois, outra equipe veio e instalou o cabo no lugar que foi mostrado inicialmente para a primeira equipe. E com isso, instalaram também, com garantia vitalícia, ou enquanto eu insistir na NET/VIRTUA, muita chateação e o pior atendimento do planeta.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Longa é a arte, breve é a vida*


O que melhor revela, traduz e documenta a vida, não é a ciência, é a arte.
Não sei se existe medida de valor para a arte, não o valor de mercado, mas uma avaliação possível para a criação. Não sei bem onde termina o artesanato e começa a arte, mas acho que essa medida tem a ver não só com a originalidade, mas com a emoção que a criação provoca.
Até mesmo quem só pensa em ganhar dinheiro na vida, acaba se rendendo a alguma manifestação artística quando quer usufruir do dinheiro que ganha, quando busca lazer e prazer: uma música, um filme, um livro, um quadro, um talento culinário, uma bela arquitetura, uma forma bonita. Pode ser esse o segredo do sucesso e da permanência da arte: exprimir com talento e precisão os sentimentos humanos.
Mas muitas vezes nem um atento consumidor de arte tem a idéia exata da distância e do contraste entre o processo de criação e o que resulta dele.
Uma ágil e leve bailarina voando no palco nem sempre revela o trabalho, as horas de dedicação diária e o sacrifício físico exigidos para chegar ao desempenho que admiramos. Os pés das bailarinas são testemunhas.
Vendo um quadro de formas simples, é difícil adivinhar os caminhos percorridos para alcançar a síntese e a harmonia de uma pincelada que pode até se parecer com um trabalho de criança.
O resultado pode ser lúdico, mas a realização não costuma ser. O esforço que a criação exige geralmente não é percebido. Tem mais restrição do que diversão o ofício da arte, ao contrário do que possa parecer para quem desconhece o processo. Vida de artista lembra muito mais boemia do que suor e seriedade, mas geralmente exige muito mais dedicação do que profissões exercidas dentro de um expediente de trabalho. Qualquer pessoa que põe talento e alma no que faz sabe disso, não é privilégio dos artistas.
Quando se tem um real talento, manifestá-lo e desenvolvê-lo nem sempre é uma escolha. Um dom pode ser quase um fardo. Isso explica porque muitos artistas nem gostam de falar do próprio trabalho, falam apenas para fins didáticos. E raramente se preocupam em parecer o que são, os verdadeiros são reconhecidos não pela aparência, mas pela obstinação: são compulsivos e focados. Sobre artistas de verdade, sei que não é a fama o que perseguem. Quem tem cabeça de artista traz na alma uma riqueza pessoal, mas além de talento, é preciso que tenham também vocação. Ao longo da história, muitos foram muito bem sucedidos, apesar da aura monástica e pouco abastada que julgamentos mais ligeiros associam à vida de artista. O sucesso financeiro em nada prejudica a sua arte mas quem tem alma de artista sabe que bom mesmo não é ganhar dinheiro como um fim, mas como um meio. Dinheiro é bom na medida do conforto e do prazer que nos permite ter. Ganhar dinheiro só para o cofre ou para o ego, aí sim, é o fim.
Não tem graça a vida sem arte. Também não é fácil entender a vida de quem vive para a arte. Férias, por exemplo, não costumam estar entre seus projetos prioritários, sob os mais variados pretextos – e em sociedades pouco civilizadas e menos desenvolvidas, sem política cultural, pretextos nunca faltarão para justificar um incessante expediente de trabalho.
Em países onde já se entende a arte como inerente à humanidade, sabem que ela não é um luxo, é vital como a agricultura.
A criação tem parte com o divino, e às vezes tira dos artistas seus pés do chão. A Pietá, de Michelangelo, é quase divina. Mesmo assim não fala, nem respira. Acho que é esse o nó na vida dos artistas. Uma roseira tem vida. Jardineiros não são artistas, mas lidam com a vida e por isso sabem que não se colhe sem plantar, que a colheita corresponde à dedicação recebida, e que até a terra precisa descansar.
Porque não os artistas? Não sei.
E não sei se existe equilíbrio possível entre a arte e a vida.
* primeiro aforismo de Hipócrates

domingo, 21 de outubro de 2007

O pecado da cor


Depois de muito ler sobre racismo e não racismo no Brasil, e só conseguir ficar de cabelo em pé, fui procurar a opinião de quem tem a pele como testemunha.

“A mudança fundamental é a gente poder falar. Os primeiros lutadores eram mais perseguidos do que membros do Partido Comunista. Houve um tempo no qual era muito difícil, para os militantes, falar do movimento. Outro tempo foi o de contestação. A luta hoje é por participação na sociedade. A estratégia de protestar é fácil, basta agredir. A de conquistar é mais difícil.”

Sobre mestiçagem:
“Isso é bom porque criamos a raça-Basil. Mas não saiu tão perfeito, porque na América do Norte o negro vive melhor e lá muito mais negros participam da administração, das universidades. Cheguei a um banco, vi aquele monte de negros trabalhando, olhei na gerência, só tinha negros! Uma coisa que não existe no Brasil. Aqui tratam você muito bem, tanto quanto qualquer cliente que tenha conta, não discriminam, tudo bem. Mas até naquelas funções mais simples, de recepcionar uma pessoa, você não tem negros trabalhando. A negrinha não tem vaga nesse banco. Falei banco mas podia ser outro lugar. Então a mestiçagem foi muito boa, mas contribuiu para manter essa diferença.”

Sobre cotas:
“Sou favorável. Subir na sociedade depende da convivência. Um conhece um, outro conhece outro. Tanto é que a pessoa, mesmo sem ter preconceito doentio, diz: - eu vou na escola de samba, eu vou no botequim, eu vou na casa do empregado, tudo certo. Mas na festa de batizado da filha ele não leva esse pessoal. De modo que isso dificulta a ascensão. Por isso sou a favor de cotas.”

Segregação social?
“Sem dúvida. Se tivermos um governo preocupado em diminuir a pobreza, ele estará lutando contra o preconceito racial. Quando se diminui a pobreza, diminui-se o problema social, diminui-se o preconceito.”

“Até 1988, centenário da Abolição, grande parte da sociedade tinha certeza de que o Brasil não tinha problema racial. Com o centenário se discutiu muito isso e a sociedade se convenceu de que realmente no Brasil tem preconceito.”

“Dentro da minha família, a gente evitava falar, era perigoso. Você era doutrinado a não falar da cultura negra, religião afro, para poder avançar, conseguir emprego, estudar. Tinha de renegar a origem. Aquilo fica por toda a vida. Para tirar, você tem que fazer uma revolução no seu interior.”

Negro que sobe, casa com branca:
“Primeiro, somos iguais a qualquer um, influenciáveis. Os padrões de beleza que nos venderam a vida inteira qual foi? A mulher branca. Isso fica no inconsciente, arquivado. O outro motivo: quando ele sobe, nos lugares onde anda só tem branca. Se ele não casar com branca, só se for racista.”

Trechos da entrevista de Martinho da Vila no Almanaque Brasil de Cultura Popular – Novembro de 1999.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Ao sabor do vento


A gente pode viver muito tempo tendo a ilusão de que a nossa vida nos pertence, quando na verdade ela é assim uma espécie de concessão da prefeitura, que pode ser resgatada a qualquer momento.
Até tenta dirigir o barco na direção que quer que ele vá - isso ajuda, eu acho.
Já faz um tempo, estou deixando a vida me levar.
Dizer que assim é mais relaxante é mentira, não é.
Viver não é relaxante.
Mas, desincumbidos da obsessão de dirigir a vida, sobra mais tempo
para aprender e curtir.
Curtir as boas coisas – mesmo poucas ou pequenas – que nos aparecem no caminho.
E aprender que mesmo determinados a ir numa direção,
a vida às vezes nos leva para outra.
Deixar um pouco para os outros a decisão. E para nós, a escolha.
Viva a vida.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

O Pará, tucupi, tacacá, açaí, viagem com açúcar e com afeto


Não sei se isso aqui é sobre culinária, amizade, saudade, blogs em geral ou a casa da minha avó. Por enquanto está mais para casa da Mãe Joana, mas vou ver se juntando pé com cabeça essa salada dá um caldo.
Fui para a cozinha com um belo livro de receitas paraenses que me mandou a Regina, ex-colega de muitos anos, que reencontrei graças a esse blog.
Enquanto operava o mixer, pensei que melhor seria substituir o creme de leite e a ricota por queijo cottage. E deu certo o delicioso Patê de Parma com castanha-do-Pará. E aí lembrei do Acre, onde os acreanos me contaram que agora é Castanha da Amazônia, com a autoridade que eles têm por serem seus maiores exportadores – se algum paraense contestar, que brigue com os acreanos, não comigo, que paraense é gente brava e querida - acreanos também.
Operava o mixer, pensava em blogs, seu valor e suas gratas conexões, e pensei num jornalista que ouvi criticando blogs em geral. Ele, jornalista profissional (como eu, e como muito blogueiro bom), não escreveria de graça. Ok. Ele e suas convicções, melhor, muito melhor deixar de lado e voltar para o patê. Ou para o Pará.
Tucupi, cupuaçu, açaí, disso tudo ouvia falar desde pequena na casa da minha avó. Ela recebia o Pará em casa, no Rio, com o carinho de amigos paraenses. Mas fazia para nós um bife e um ovo “estalado” que não existem mais, porque eram fritos na manteiga no tempo que manteiga não era pecado. Abacate se comia com farinha d’água, lembro até hoje.
Morava num sobrado, numa rua sem saída em Botafogo, e não sairia do bairro para nada, como ela dizia, seria, com foi, dali para o cemitério São João Batista, também em Botafogo. Na verdade, já não saía de casa desde que me entendi por gente. Comprava tudo pelo telefone, era conhecida de todo o comércio do bairro, pude constatar depois. E era uma autoridade na rua porque fornecia a bola para a pelada da garotada. Subia e descia as escadas várias vezes por dia, "se não fosse por isso, já estaria entrevada". E não tinha empregada fixa nem ninguém dormindo lá. Vivia só, com cinco cachorros, todos vira-latas.
Num pequeno quintal, uma barra, um cesto de basquete, que ela jogou com os netos até morrer, aos oitenta e dois anos. Um ano exato depois da morte do meu pai, ela desistiu de viver.
Era talentosa, independente e geniosa, a Vó Mindinha, e uma sogra muito difícil para minha mãe. Teria sido mais difícil ainda se tivesse que discutir política hoje, coisa que interessava a ela tanto quanto futebol. Mesmo assim, tenho dela e daquela casa a melhor lembrança que poderia ter, pela enorme ternura com os filhos e com os netos, mas não gosto de passar por lá. O passado deve ficar no passado, acho.
Lembranças. Todo dia 28 de agosto, aniversário dela, os oito filhos, noras, genros e trinta netos se reuniam na casa da rua Alfredo Chaves. Hoje é 28 de setembro, nome de rua, lembro de descobrir que foi assinada nesse dia a Lei do Ventre Livre, daí a rua, e como o pensamento viaja, pensando em política lembrei que esse foi o dia do debate presidencial no ano passado – porque cabeça da gente é território livre, pode ser a casa da Mãe Joana, e nela a gente não precisa nem juntar pé com cabeça, graças a deus. Aliás, quem será que foi Alfredo Chaves?

domingo, 16 de setembro de 2007


O amor? Pássaro que põe ovos de ferro.
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Despedir dá febre.
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Viver é muito perigoso.
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Homem foi feito para o sozinho?
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Ciúme é mais custoso de se sopitar do que amor. Coração da gente – o escuro, escuros.
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Coração mistura amores - tudo cabe.
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Desespero quieto às vezes é o melhor remédio, põe a criatura solta. Medo agarra a gente.
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O sertão é do tamanho do mundo.
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Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
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Amizade dada é amor.
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A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.
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Esquecer para mim é quase igual a perder dinheiro.
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Um sentir é do sentente, mas outro é do sentidor.
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O sertão está em toda a parte.
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Sertão é o sozinho.
*
Sertão: é dentro da gente.
*
Sei de mim?
Cumpro.

Grande Sertão: Veredas João Guimarães Rosa 1956


(rosas em um quintal no Assentamento São Francisco, sertão de Minas)
Fui rever a exposição, agora no MAM, para levar a tia Dedé, colega do Guimarães Rosa no Itamaraty, onde ele trabalhou por vários anos no Departamento de Fronteiras. Costumavam tomar juntos o mesmo lotação para Copacabana, em tempos mais singelos e mais tranquilos no Rio.
Fui premiada: Rosa e sertão fazem tão bem à alma quanto um banho numa vereda, e ainda deixam a necessidade urgente de uma nova visita - ao Rosa e ao sertão.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

I’m tired, je suis fatigué


Além de cair no ridículo, e nos assombrar com aquelas
caras de dragões andróides, o natimorto movimento Cansei
ainda conseguiu tirar de nós, pobres e honestos mortais,
o direito de cansar sossegado, e de dizer:
cansei, sem perturbar com sua nefasta lembrança
o simples e justo direito que temos,
em algum momento da vida, de cansar.
Às vezes a gente cansa. Não para de trabalhar, não pode. Mas cansa.
Não deixa de comer, não vai cortar os pulsos, mas cansa.
Tipo pare o mundo que eu quero descer.
A pior coisa de não ter mais vinte anos não são algumas rugas e
alguns quilos a mais que a gente acumula: é não ter mais o direito
de fazer bobagem e isso ser engraçadinho – para os outros e para nós mesmos.
A idade nos obriga a um pouco de compostura e sabedoria.
I´m so tired, I can´t stop my brain, my mind is on the blink,
I’d give everything I’ve got for a little peace of mind.
Eu e o John Lennon.
Tem (muitas) pessoas e coisas que atrapalham o mundo.
De idéias de jerico, como minha avó dizia, a instalações esdrúxulas,
má arquitetura, má música. Tudo tem seu lugar ao sol,
mas cabe a nós o esforço para não deixar que ocupem muito espaço.
E isso cansa.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Berço Esplêndido


Criar uma filha tendo que explicar que ela está dentro de um carro e uma criança igual a ela está na rua, trabalhando, e que pode ser uma ameaça e não uma criança com quem ela pode brincar, foi difícil porque é difícil explicar o que a gente pode até entender mas não pode aceitar. Você quer defender o seu filho, mas quer também que ele tenha sensibilidade e boa cabeça. E como criar uma criança independente em uma cidade grande, se eu saía de bicicleta sem ter nem que dizer onde ia? Saia justa e vida injusta não são ruins só para os mais injustiçados.
Educação é mesmo a chave para alguma mudança, e não é só a escolar, nem política.

É compreensível que, aos homens, cuidados na infância por uma mulher, possa parecer normal continuar a ter, na idade adulta, uma mulher cuidando deles. Seria natural na divisão de tarefas do passado, em que o homem matava o javali, ou ganhava dinheiro para manter a casa, e a mulher cuidava da casa e da cria.
Temos ainda o impulso atávico de cuidar da casa, mesmo que isso represente uma jornada dupla, ou múltipla – por isso é também feminina a culpa pela sobrecarga. Seja como for, a desigualdade costuma ser desastrosa e é responsável pelo fim de muitas parcerias.
Para uma mulher instruída e ativa profissionalmente, criada de maneira saudável, é difícil aceitar naturalmente a “obrigação” de cuidar de outra pessoa, adulta como ela, e que deve ser tão preparada quanto ela para cuidar de si. Cuidar de crianças é lei, e de lei. Cuidar de um marido, namorado, irmão, pai ou amigo, é um ato de carinho que pode dar muito prazer, mas deve ser encarado como um presente que uma mulher pode querer às vezes dar, e não como lei da natureza. Parece pré-histórico esse papo, mas pelo que observo, o discurso mudou mais do que a realidade.
Nos países de economia desenvolvida, com maior oferta de emprego e mais mulheres independentes economicamente, existem muito mais pessoas morando sozinhas do que havia no passado. Isso sim é uma mudança. Quando se têm filhos pequenos, morar sozinho já não parece tão bom.
As relações humanas não são regidas como se administra uma empresa, mas alguns princípios de uma administração profissional poderiam ser muito úteis em casa, como por exemplo, uma divisão de tarefas realmente democrática - quem sabe no âmbito doméstico seria mais fácil fazer o regime democrático funcionar? Não estou falando de lavar uma louça de vez em quando.
As mudanças que aconteceram são mais teóricas do que reais e mais localizadas do que generalizadas. O homem – salvo abençoadas exceções da regra - continua sendo um animal conservador quando se trata de conservar privilégios, regalias, direitos adquiridos. De modo que, para as mulheres que têm uma profissão ou um emprego, geralmente sobra trabalho dobrado ou a tarefa ingrata e muito pouco romântica de botar a boca no mundo, sempre.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Talento é bom e eu gosto


Espero que seja uma qualidade, mesmo não sendo um talento, saber reconhecer e apreciar talento.
Vivi cercada por ele, o que, sendo uma dádiva, não deixa de ter seus percalços – e percalços, está no dicionário, podem significar tanto lucro quanto transtorno.
Desde muito cedo, aprendi a não esperar o devido crédito para o que eu fizesse, e talvez isso explique minha confusa relação com elogios, já que TODO mundo, e aí me incluo, gosta de ser elogiado. Desde cedo, desconfiava que ser bonitinha não era mérito meu, e não era – apenas - o que me servia.
Ainda no curso primário, tive uma professora que gostava muito de mim. Éramos quase vizinhas e muitas vezes eu ia com ela de carona para a escola. A cada boa nota, um colega me dizia: “ela conta as respostas da prova para você!” é claro que não era verdade, e eu ficava muito infeliz.
Aula de desenho, primeiro dever de casa, nos primeiros anos do ginásio: nada complicado, escolher uma folha, estudar sua forma e criar variações para seu formato. Caprichei bastante, gostava de desenhar e mais ainda de folhas, queria ser botânica. Comentário do professor: “está muito bom, mas aqui tem visìvelmente a mão de um adulto”. Esqueci a nota que ganhei, sei que foi boa, mas a injustiça estava feita. Mais um julgamento falso e o primeiro contato com o truculento mundo adulto. Festival de Filosofia, já no Segundo Grau, que na época se chamava Clássico (quem não tinha medo de matemática, fazia Científico, onde tinha sempre mais meninos, por isso era o curso mais interessante, mas tinha também que ter intimidade com os números). A tarefa era fazer uma letra de música – composta ou parodiada – com a matéria de Filosofia que aprendemos no semestre. Minha irmã, compositora, tinha sido premiada num festival estudantil. Ganhei o Festival de Filosofia, mas não ganhei o crédito. Pelo menos desta vez a professora acreditou em mim, mas os colegas foram implacáveis, embora minha irmã, mais velha que eu três anos, não tivesse tomado conhecimento do meu dever de casa.
Já jornalista, apresentei uma pauta original, não inspirada em nenhuma pesquisa ou matéria de jornal. Comentário infeliz da coleguinha ao lado: essa pauta a gente sabe quem fez, porque sabia que eu era casada com um artista de talento reconhecido.
Tive vontade de dizer que estava já acostumada com deduções ligeiras e mesquinhas, era o ônus por viver cercada por gente talentosa. Deixei passar. Afinal, viriam, como vieram, outras – pautas e pequenas depreciações.
Não é questão de esperar louros e glórias, mas sempre ouvi dizer que dos inimigos se podia esperar justiça... Finalmente aprendi: se você ainda não conseguiu mostrar a que veio – alto e bom som - se puser a cabecinha fora d’água um pouquinho acima da média, corre sério risco de despertar o que há de pior no ser humano ao seu lado.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Subúrbio

Chico Buarque

Lá não tem brisa, não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa

Fala, Penha, fala, Irajá, fala, Olaria
Fala, Acari, Vigário Geral, fala, Piedade
Casas sem cor, ruas de pó, cidade
Que não se pinta, que é sem vaidade
Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop, fala na língua do rap,
Desbanca a outra a tal que abusa
De ser tão maravilhosa

Lá não tem moças douradas expostas,
Andam nus pelas quebradas teus exus
Não tem turistas,
Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus e está de costas

Fala, Maré, fala, Madureira, fala, Pavuna
Fala, Inhaúma, Cordovil, Pilares
Espalha a tua voz nos arredores
Carrega a tua cruz e os teus tambores

Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção
Traz as cabrochas e a roda de samba
Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop, fala na língua do rap,
Fala no pé, dá uma idéia
Naquela que te sombreia

Lá não tem claro-escuro, a luz é dura,
A chapa é quente que futuro tem
Aquela gente toda
Perdido em ti eu ando em roda
É pau, é pedra, é fim de linha, é lenha, é fogo, é foda
Fala, Penha, fala, Irajá, fala, Encantado, Bangu, fala, Realengo...

Fala, Maré, fala, Madureira, fala, Meriti, Nova Iguaçu, fala, Paciência...

domingo, 26 de agosto de 2007

DUAS CIDADES - QUANTAS TRIBOS ?


Acabo de vir do Quênia, um país menor que o estado de Minas Gerais, onde convivem 42 tribos, cada qual com sua língua. Lá, custavam a acreditar que o Brasil quase todo falasse português. Mas quantas tribos teria o Brasil?
Rio e São Paulo. As maiores cidades do país, quase vizinhas, considerando o tamanho do Brasil, e tão distintas (no sentido de diferentes, apenas).
Sou naturalmente carioca, não tive escolha, nasci aqui, mas se tivesse, seria. Sou crítica com o Rio, mas quando ouço elogios a São Paulo, e qualquer comparação, faço como Noel: me calo, tudo penso e nada falo. Acho que não cabe, nem a comparação nem a desvantagem para o Rio.
Ouvi de uma amiga gaúcha que as qualidades do Rio acabam sendo seus pecados. Entendi e concordei. O humor, a irreverência, a complacência, o jeitinho que a então capital desenvolveu para driblar toda a sorte de proibições impostas pelos portugueses ao Brasil colônia, acabaram resultando em transgressão, descuido e malandragem, no mau sentido também.
Eu diria que o mesmo aconteceu em São Paulo, em outra direção: trabalho, respeito pelo trabalho, e muita seriedade, quando desvirtuados, resultam em ganância, prepotência, exploração e desigualdade ainda maiores do que as que vemos por aqui.
O ar de cidade de primeiro mundo que reina em alguns quarteirões paulistanos, que os enche de orgulho, é o resultado natural de uma cidade com dinheiro e sem praia. O MAM certamente não é o MOMA, mas o MASP também não é, e por que não poderia ser? Falta dinheiro, cultura, generosidade?
Não espero que nenhum paulista concorde comigo, muitos parecem ter muito pouco senso crítico com relação à sua cidade: por muito tempo acreditaram, ou talvez ainda acreditem, ser o Rio, sozinho, a capital nacional da violência. Recusam-se a entender que empurrar a miséria e as conseqüências dela para baixo do tapete, ou para a periferia, além de ser indecente (ça va sans dire), não só não cola como não é bom negócio. E os limites de uma cidade tão grande podem ficar bem estreitos.
Nesse quesito, não fossem as duas cidades derrotadas, eu ainda acho que a miséria e a violência carioca resultaram um pouco mais “democráticas”. Já que por aqui as zonas se esbarram a ponto de quase se misturar, quem sabe a chance de diminuir as distâncias entre pobreza e riqueza sejam maiores?? Interrogação dupla, porque as balas zunem sobre nossas cabeças, e a caravana passa. Mesmo que seja em graus diferentes, de onde vem tanta anestesia? Podem ser duas cidades queridas, o que não quer dizer que sejam alegres.
Na residência paulistana mais rica que visitei profissionalmente, fazendo uma entrevista muito simpática à dona da casa, havia muitas salas, muitos quartos, copeiro, arrumadeira, muita riqueza. O comentário da minha equipe ao sair me chamou a atenção: não nos foi oferecido um copo d’água, nas várias horas que passamos lá. Nenhuma obrigação de fazê-lo, mas contrastou com a casa seguinte que visitamos, muitíssimo mais simples e muito mais acolhedora. Aceitamos isso naturalmente, mas qual a lógica?
Nada na linha de que o dinheiro não traz felicidade, sempre achei que a classe dominante quer que o povo acredite nisso para deixá-la lucrar em paz. O dinheiro não precisa trazer nenhum ônus, mas uma sociedade mal construída e injusta permite que pessoas argentarias, insensíveis ou mesmo desonestas sejam muito bem sucedidas. E onde há mais dinheiro, maior a chance de pessoas dispostas a tudo para não mudar as regras. Geralmente com bem menos classe do que imaginam ter.
Em São Paulo, tem um monte de gente assim. No Rio também. E como se não bastasse, ainda recebe reforços de todos os cantos do país. Alguém sabia, antes de ver nas páginas policiais, que o senador e ex-governador do Amazonas Gilberto Mestrinho tinha uma bela casa em São Conrado? Eu gostaria de saber a taxa de ocupação anual dos apartamentos da Vieira Souto, em Ipanema. Se adotassem ali as mesmas regras exigidas para o green card americano, que cobra a presença lá de seis em seis meses, acho que a metade dos proprietários ali perderiam seus direitos. É grande o número de apartamentos que vivem fechados.
Sou testemunha o tempo todo do comportamento prepotente, canalha mesmo, da minha vizinhança na zona sul do Rio: madames e empregadas passeiam cachorros sem lenço e sem documento para recolher a sujeira que produzem. Limpar as ruas não custa nada, afinal, dinheiro público não tem dono, e quem quiser que se desvie como puder e trate de conviver com a imundície. Pitbulls sem mordaça ameaçam a todos, sem a menor possibilidade de seus donos se importarem com a clara lei municipal. Nenhuma chance de serem incomodados pela fiscalização. Festas a incomensuráveis decibéis roubam a noite da vizinhança, sem a menor cerimônia e sem que ninguém reaja – meus vizinhos, quando comento, juram que não ouviram nada, mesmo quando incluem uma bateria de escola de samba até as quatro da manhã. Podem diferir na embalagem, lá e cá, mas o conteúdo é o mesmo. Temos "coisas de primeiro mundo", dizem, mas a civilidade ainda é de quinta.
Na verdade, não estou falando apenas de duas cidades, elas comportam muitas cidades partidas dentro delas. Como muitas outras pelo país afora. Um país extremamente autoritário, tão pouco democrático que isso costuma passar até sem ser notado – a não ser que se sinta na pele.
Existe explicação para tanto corporativismo entre a elite branca, que, no entanto é tão pouco solidária entre si?
Acho que apenas a certeza de que, quando a lei não é cumprida, maior a garantia de se contar com a impunidade, quando for necessário.
Daí para o crime organizado, é menos que um passo.