terça-feira, 4 de dezembro de 2007
Galbraith, Francis, pastas de arquivo
Faz pouco mais de dez anos, 1996, não é tanto tempo assim, mas quando a vida muda muito, uma década atrás pode parecer perdida na pré-história.
Eu morava em Nova York e entre outras coisas que fazia, tirava de um gravador para o computador, traduzindo, entrevistas que o Paulo Francis fazia para a Globonews - ele entrevistava em inglês o que tinha que ser legendado em português. Uma delas foi com o economista canadense/americano John Kenneth Galbraith.
O Francis é até hoje um mistério para mim: a pessoa afável que conheci, e que por isso fez muitos amigos e admiradores, não combinava com o que depois passou a dizer na televisão, que eu não gostava nem concordava.
Galbraith era um velho conhecido dos meus arquivos. Em criança, herdei da minha mãe um armário cheio de escaninhos, era uma “discoteca”, onde ela antes guardava seus discos de 78 rotações. Ela adorava música. Eu brincava de arquivar o que lia e gostava, e esse móvel veio a calhar: até hoje tento me livrar de pastas que faço e desfaço. Consigo em parte. Lembro de ter guardado uma entrevista do Galbraith que me impressionou muito. Ela felizmente já foi para o lixo, mas a entrevista que traduzi para o Francis ainda está no meu computador, e parte dela reproduzo aqui.
P.Francis - John Kenneth Galbraith, professor emérito de Harvard. Nós estamos em Cambrige, Massachussets, onde ele mora. Este é o seu livro “The Good Society”, seu vigésimo livro, publicado em português com o título de “A Sociedade Justa”. Nós vamos fazer uma entrevista com o Prof. Galbraith perguntando-lhe sobre o livro, sobre o Brasil e sobre suas idéias em geral.
P.F. - Professor Galbraith, sendo esta uma entrevista para a televisão brasileira, devo perguntar o que o senhor acha das possibilidades do Brasil, um país enorme, maior que os Estados Unidos, com tantos recursos, a maioria deles ainda inexplorados, porque setenta por cento do país é controlado por companhias estatais que impedem a abertura da economia. O senhor pode nos dar algumas idéias sobre o assunto?
J.G. - Estive muitas vezes no Brasil, sou um admirador deste país e acho que está no rumo certo. Houve um tempo em que a industria sofreu o problema que você mencionou e que é sério. Nós aprendemos que a economia moderna precisa de liberdade de mercado para funcionar bem. Eu me vejo como um social-democrata mas aceito a economia de mercado, não há alternativa para ela.
P.F. - É muito bom os brasileiros ouvirem isso, muitos deles ainda não têm esta certeza. Em seu livro, A Sociedade Justa, o senhor não vê a igualdade como uma coisa desejável, ou possível. Mas vê uma possibilidade de justiça social, adquirida cobrando impostos progressivos. Em 1994, uma maioria elegeu um congresso republicano, porque se sentia pouco representada e muito taxada. Pode ser uma opinião errada mas representava o sentimento dos eleitores. O senhor comparou, brincando, o Contrato com a America com o Manifesto Comunista. Não seria mais plausível interpretar como um não aos impostos sem representatividade, porque a classe média está sub-representada neste país?
J.G. - Eu não diria isto, nunca. A classe média e os ricos estão muito bem representados no Congresso. O problema é que os pobres, particularmente nas grandes cidades, não estão representados. Eles não votam. O que tivemos há dois anos atrás foi passageiro. Foi a revolta de uma pequena parcela da classe média e alguns ricos contra a rede de proteção, que precisamos manter, para apoiar os pobres.
P.F. - Mas setenta por cento dos homens brancos votaram pelos republicanos. Achei isto surpreendente.
J.G. - Setenta por cento dos que votaram, mas nosso povo não vota. Temos uma democracia imperfeita. Só metade do povo vota.
Estes setenta por cento diminuiriam se tivéssemos os votos de todo o povo.
P.F. - Mas o senhor não concorda que os que votam são os mais engajados na mudança da sociedade? Deste Contrato com a América, não importa o que o senhor ache, muitos dos artigos passaram no Congresso.
J.G. - Acho que devemos esperar até a proxima eleição. Há dois anos tinha-se a impressão que de alguma maneira poderiamos ter uma boa sociedade com menos participação do governo. Poderiamos fazer isto cortando assistência médica, seguro social, e particularmente toda uma rede de apoio aos pobres...
PF - Mas...
JG - Deixe-me terminar. Há dois anos atrás, tivemos uma espécie de guerra contra os pobres. E descobriu-se que nada disso era muito prático. Estas leis não passaram. O que o porta voz, o Senhor Gingrich, fez, foi alienar muita gente que dependia desta rede.
PF – Eu acho que não, mas eles não estão preocupados com benefícios sociais, estão preocupados com o imposto alto. Quem ganha abaixo de cinquenta a cem mil dólares por ano se sente sobretaxado. Eu ouço isto de muitos dos meus amigos americanos...
JG - Eu aceito isto, os ricos e os ascendentes sempre se sentem sobretaxados. É inevitável. Os muito ricos gastam um tempo enorme inventando argumentos para provar que deveriam pagar menos impostos.
PF - O senhor escreveu propondo a cobrança progressiva de impostos.
JG – Que eu apoio com convicção.
Eu não escrevo para o aplauso, eu escrevo pela verdade. Cobrança de impostos progressiva tem uma enorme influência civilizante, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Como eu disse, uma das maiores preocupações dos muito ricos é tentar provar que não devem pagar tanto. Você já ouviu falar do método de distribuição do pardal e do cavalo?
PF - Não.
JG - É muito sério. Ele sustenta que se você alimenta o cavalo com bastante aveia, alguma vai acabar caindo na estrada para alimentar os pardais. É a base da doutrina dos ricos.
PF - Eu lembro de ler no livro de Edmund Burke, “Reflexões sobre a Revolução Francesa”, ele disse que os ricos deveriam ficar mais ricos, pois esta seria finalmente a maneira de conseguir alguma riqueza para as classes mais pobres. É uma opinião bem conservadora que o senhor não deve partilhar...
JG - Eu não acredito nem um minuto neste absurdo. Eu acredito em uma distribuição equitativa da renda, eu não acredito em uma distribuição igual da renda. Para uma coisa devemos estar alertas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos: no sistema democrático, do qual dependemos e para o qual não há alternativa, a distribuição de renda é muito desigual.
PF - Eu entendo isto, mas as tarefas, a inteligência, as habilidades são desiguais. Aqui existe esta população enorme, que vem do mundo inteiro para países ricos, como os Estados Unidos, o único país do ocidente, do primeiro mundo, a criar empregos. De 1974 a 93, a Europa ocidental não criou um único emprego e os Estados Unidos com sua economia aberta, criou milhões de empregos. O senhor não acha que isto traduz bem o sistema daqui?
JG - Não afirmo que o sistema não funciona, eu afirmo que muitas pessoas, principalmente nas grandes cidades, ficam fora do sistema. Tranquilidade social, justiça social, asim como decência social, exigem que os pobres tenham oportunidades decentes.
PF - Em seu livro “A Sociedade Afluente”, quando falava do novo estado industrial, o senhor parecia bem mais confiante no futuro deste país e agora o senhor parece bastante crítico. O que aconteceu?
JG - Eu não sou um pessimista. Neste novo livro, eu falo do que está errado e também no que seria certo. Isto pode ter dado uma impressão errada, mas eu estava tentando definir o que seria uma boa sociedade.
PF - E seria naturalmente uma sociedade com justiça social e boa distribuição da renda.
JG - Eu diria igualdade de oportunidades para as pessoas, sem levar em conta a raça, o sexo, a origem étnica. Eu quero ver todo mundo tendo oportunidades de acordo com suas proprias habilidades e suas aspirações. Isso seria diferente para pessoas diferentes. As pessoas teriam motivações diferentes para ganhar dinheiro. Alguns fariam muito mais do que os outros. Eu não defendo a possibilidade de igualdade de renda, eu quero que se reconheça que a nossa economia distribui a renda de uma maneira muito desigual, aqui e no Brasil.
PF - Sim, naturalmente, mas deixe-me perguntar uma coisa. Com esta fabulosa revolução tecnológica, haverá muita gente desempregada. Como o senhor sugere que o governo deva encarar a questão do desemprego?
JG - Deve-se ter uma visão mais ampla do problema. Com o desenvolvimento da economia, nós passamos da simples produção de coisas, objetos físicos, para as necessidades mais elevadas da sociedade, como as artes, a exploração científica e técnica, as universidades. Com o desenvolvimento da economia, tendemos a absorver pessoas em outros setores além da simples produção industrial. Isto é o que acontece nos Estados Unidos. É o caso de Nova York, onde ninguém vive da atividade industrial, mas todos ganham bem a vida na área do laser, das artes, da propaganda...
PF - São os chamados serviços...
JG - Indústria de serviços. Nós não devemos ter a mente atada apenas na atividade industrial.
PF - O senhor dedicou um capítulo inteiros para os pobres no planeta, as nações pobres. O senhor acha que os países pobres podem acompanhar este fantástico progresso tecnológico do primeiro mundo? O Brasil é um bom exemplo, não se consegue abrir a economia, embora o atual presidente tente. Com toda a distancia tecnológica, o senhor vê uma maneira de equilibrar as diferenças?
JG - Este é certamente o maior problema dos nossos tempos. O progresso econômico moderno é uma coisa muito desigual. Eu discuto no livro que esta é uma das responsabilidades que devemos assumir. Devemos ajudar os mais pobres no planeta. Eu dou muita importancia para o investimento humano, em educação, saúde. Devemos ter sempre em mente um fato simples do nosso tempo: não há povo culto e educado que seja pobre, e não há população iletrada que seja rica. Este é um forte indício da importância da educação.
PF - Em sociedades organizadas, como a União Soviética, os povos se entendiam melhor do que agora. De repente, temos um número enorme de pequenas guerras étnicas. Nesta sociedade, que é a mais rica do mundo, temos a bomba de Oklahoma, o Unabomber. O senhor acha que existe alguma coisa psicológica que deva ser analisada por economistas, políticos ou profissionais sociais? Eu sinto um enorme desconforto com o presente.
JG - Eu não sinto isso de modo algum. Eu acho que existe falta de notícias e então alguém como o Unabomber ganha uma atenção enorme. Um desastre de avião vira manchete. Estas são aberrações normais de uma sociedade normal. Nada que nos faça pensar em um período excepcional. Com o fim da guerra fria e a paz entre os países afortunados, estas coisas ganharam mais atenção do público do que teriam em outros tempos.
…
Sobre populações miseráveis, nos EUA e no Brasil:
JG - Mas eu não acho que estes problemas não têm solução. Acho que três pontos são parte da solução. Em primeiro lugar, uma rede de proteção que livre as pessoas da miséria absoluta. Em segundo lugar, um forte sistema educacional. Eu repito o que disse antes, isto é absolutamente essencial. Em terceiro lugar, a criação de alguns serviços importantes para os pobres, como saúde, bibliotecas, casas populares, o que o sistema privado, o sistema de mercado, não oferece. Com estas três coisas, ficaremos muito melhores do que estamos agora.
PF - Professor Galbraith, agradeço muito por esta entrevista e espero que o senhor vá novamente ao Brasil, em breve, para ver o novo país se desenvolvendo sob a liderança do presidente Fernando Henrique Cardoso.
JG- Eu é que agradeço. É sempre um prazer ir ao Brasil. Saudações a todos que sofreram com meus livros no passado...
PF - Não, seus livros são muito claros e muito bem escritos, eu posso dizer, sendo seu leitor. Embora não partilhando de algumas das suas opiniões, sou um grande admirador seu.
JG - Muito obrigado.
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