sexta-feira, 26 de outubro de 2007
Longa é a arte, breve é a vida*
O que melhor revela, traduz e documenta a vida, não é a ciência, é a arte.
Não sei se existe medida de valor para a arte, não o valor de mercado, mas uma avaliação possível para a criação. Não sei bem onde termina o artesanato e começa a arte, mas acho que essa medida tem a ver não só com a originalidade, mas com a emoção que a criação provoca.
Até mesmo quem só pensa em ganhar dinheiro na vida, acaba se rendendo a alguma manifestação artística quando quer usufruir do dinheiro que ganha, quando busca lazer e prazer: uma música, um filme, um livro, um quadro, um talento culinário, uma bela arquitetura, uma forma bonita. Pode ser esse o segredo do sucesso e da permanência da arte: exprimir com talento e precisão os sentimentos humanos.
Mas muitas vezes nem um atento consumidor de arte tem a idéia exata da distância e do contraste entre o processo de criação e o que resulta dele.
Uma ágil e leve bailarina voando no palco nem sempre revela o trabalho, as horas de dedicação diária e o sacrifício físico exigidos para chegar ao desempenho que admiramos. Os pés das bailarinas são testemunhas.
Vendo um quadro de formas simples, é difícil adivinhar os caminhos percorridos para alcançar a síntese e a harmonia de uma pincelada que pode até se parecer com um trabalho de criança.
O resultado pode ser lúdico, mas a realização não costuma ser. O esforço que a criação exige geralmente não é percebido. Tem mais restrição do que diversão o ofício da arte, ao contrário do que possa parecer para quem desconhece o processo. Vida de artista lembra muito mais boemia do que suor e seriedade, mas geralmente exige muito mais dedicação do que profissões exercidas dentro de um expediente de trabalho. Qualquer pessoa que põe talento e alma no que faz sabe disso, não é privilégio dos artistas.
Quando se tem um real talento, manifestá-lo e desenvolvê-lo nem sempre é uma escolha. Um dom pode ser quase um fardo. Isso explica porque muitos artistas nem gostam de falar do próprio trabalho, falam apenas para fins didáticos. E raramente se preocupam em parecer o que são, os verdadeiros são reconhecidos não pela aparência, mas pela obstinação: são compulsivos e focados. Sobre artistas de verdade, sei que não é a fama o que perseguem. Quem tem cabeça de artista traz na alma uma riqueza pessoal, mas além de talento, é preciso que tenham também vocação. Ao longo da história, muitos foram muito bem sucedidos, apesar da aura monástica e pouco abastada que julgamentos mais ligeiros associam à vida de artista. O sucesso financeiro em nada prejudica a sua arte mas quem tem alma de artista sabe que bom mesmo não é ganhar dinheiro como um fim, mas como um meio. Dinheiro é bom na medida do conforto e do prazer que nos permite ter. Ganhar dinheiro só para o cofre ou para o ego, aí sim, é o fim.
Não tem graça a vida sem arte. Também não é fácil entender a vida de quem vive para a arte. Férias, por exemplo, não costumam estar entre seus projetos prioritários, sob os mais variados pretextos – e em sociedades pouco civilizadas e menos desenvolvidas, sem política cultural, pretextos nunca faltarão para justificar um incessante expediente de trabalho.
Em países onde já se entende a arte como inerente à humanidade, sabem que ela não é um luxo, é vital como a agricultura.
A criação tem parte com o divino, e às vezes tira dos artistas seus pés do chão. A Pietá, de Michelangelo, é quase divina. Mesmo assim não fala, nem respira. Acho que é esse o nó na vida dos artistas. Uma roseira tem vida. Jardineiros não são artistas, mas lidam com a vida e por isso sabem que não se colhe sem plantar, que a colheita corresponde à dedicação recebida, e que até a terra precisa descansar.
Porque não os artistas? Não sei.
E não sei se existe equilíbrio possível entre a arte e a vida.
* primeiro aforismo de Hipócrates
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2 comentários:
Talvez sim, talvez não. Não sei reponder... Só sei que muitas pessoas podem não perceber, mas para alguém exercer a arte de escrever um texto como esse, são necessários muitos calos nas mãos, assim como os machucados nos pés da bailarina... Beijos, Isabella.
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