sexta-feira, 25 de maio de 2007

Força gera mudança, energia e mosquitos


Estive em Tucuruí logo depois que a barragem ficou pronta, entre 1983/84. Um dos maiores choques de realidade da minha vida de jornalista, que ainda começava. A idéia era acompanhar uma comissão do governo do Pará que investigaria denúncias de irregularidades na construção da barragem. Não precisamos ir muito longe. Aliás, bom mesmo que não precisássemos, porque a tal comissão só se animou a fazer – ou tentar fazer – o seu trabalho pela pressão da nossa presença ali. As dificuldades eram muitas e eles ensaiaram desistir da busca várias vezes. Não fiquei sabendo a conclusão de seus trabalhos, porque demoraram muito a concluir qualquer coisa. A suspeita era de que, para cumprir cronogramas e metas, não tinham desmatado como deveriam a região a ser inundada. Em vez de derrubar a floresta, usaram um desfolhante, que seria altamente tóxico. E inundaram a região com as árvores dentro, que apodrecendo dentro d’água provocariam um desequilíbrio ainda maior, prejudicando os peixes e favorecendo os mosquitos. Não tenho conhecimento técnico nem muita memória, já faz tempo, mas da invasão absurda da mosquitos eu fui testemunha.
Lembro que foi muito difícil montar uma estrutura mínima para navegar no Rio Tocantins sem recorrer à administração da hidrelétrica, que passou naturalmente a dominar o município e todos os seus parcos recursos. E que, como era de se esperar, gostaria de receber com todas as honras uma equipe de televisão visitando o lugar. Eram tempos de denúncias raras contra o governo e contra empresas poderosas...
Mesmo assim, conseguimos escapar do “inimigo”, montamos uma expedição meio mambembe e saímos pelo rio tentando descobrir alguma coisa. Os relatos dos moradores eram de cortar o coração, e deveriam sensibilizar mesmo o mais ferrenho defensor de barragens e hidrelétricas. Famílias inteiras, que tinham nascido e vivido por várias gerações num lugar, que garantiam seu parco sustento pescando, se viram de repente jogadas em outro canto, sem nenhuma estrutura, sem história, sem o rio, impedidas de exercer a única atividade que conheciam. Não vi revolta nos relatos, só tristeza, doença e desalento.
Basta um conhecimento mínimo da Amazônia para perceber a ligação dos moradores com a sua floresta. Ela é sua casa, sua despensa, sua farmácia. Os bichos fazem parte da família.
Mudanças podem ser necessárias, mas não seriam tão dolorosas com um mínimo de respeito. Bom, a classificação de crime no Brasil é mesmo muito restrita, e a impunidade nossa velha conhecida, mas de vez em quando, um dia, chega a conta. E é natural que chegue em momentos em que se tem mais chance de ter suas reivindicações pelo menos ouvidas. Vivo cercada de gente que sente arrepios só de pensar em MST, Via Campesina. Seus métodos talvez não sejam ideais para os nossos padrões.
Será possível, para quem sempre teve terra ou teto, se colocar no lugar de quem nunca teve? Como não olhar essas questões com a cabeça de classe-média acostumada a comprar no supermercado da esquina o que necessita, mesmo que às vezes tenha que cortar o iogurte - e fique indignada com isso?
É possível, mas só se a alma não for pequena. Sensibilidade não é uma coisa que a gente deve desenvolver só para entender Fernando Pessoa.

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