terça-feira, 29 de junho de 2010

Quase paraíso


Arpoador anos 50

"Um biscoito e um pirulito em extinção"
Da coluna Rio Acima, de Marcelo Migliaccio, no JB de domingo 20/06/2010

"Eu pedalava pela orla de Ipanema quando me deparei com uma espécie em extinção. Até seu nome é antiquado: Arino. Arino Queiroz. Aos 63 anos, ele é um dos últimos vendedores de biju, ou tringuilim, nas praias cariocas. Para quem não está ligando o nome ao sabor, trata-se daquele biscoito doce e comprido, vendido quase sempre com pirulitos em forma de chupeta.
Há 54 anos, o pai de Arino já fazia o biscoito e o pirulito para vender no Maracanã e na Quinta da Boa Vista. Mas a tradição está morrendo e, atualmente, apenas três ambulantes percorrem Ipanema e Leblon fazendo a alegria dos fãs da pré-histórica guloseima.
- Os jovens hoje têm vergonha de vender. Pode ver que os ambulantes são todos cascudos – analisa Arino, que lucra até R$180 em um domingo ensolarado de verão.
Apesar da grana, ele diz que trabalha por hobby. Já criou os quatro filhos e, viúvo, aproveita o batente para jogar conversa fora com os fregueses. Às vezes, até chove em sua horta.
- De vez em quando, pinta uma lacraiazinha – diverte-se o típico carioca do subúrbio.
É no bairro da Abolição (Zona Norte) que Arino prepara suas iguarias. Farinha de trigo, açúcar e água, eis a poção mágica.
- É só enrolar, colocar na prancha e levar ao forno. Faço 200 pacotes com quatro unidades cada por dia – conta Arino, enquanto serve um freguês de seus 30 e poucos anos que apresent o biscoito ao filho de 2.
- Ele tem que conhecer as coisas boas – comenta o pai-coruja, antes de pagar o pacote com uma nota de R$2.
Arino quase não fala nos pirulitos. Pergunto se ele tem preconceito.
- Não é isso, é que o pirulito demora muito a acabar. Eu passo uma vez, vendo, vou até o final da praia. Quando volto a criança ainda está chupando o mesmo pirulito. Com o biscoito é diferente: na volta, eu vendo outro para o mesmo freguês. Os pirulitos são feitos de água, açúcar e um corante, que pode ser de cereja ou groselha. Custam R$1 e são garantia de cárie na boca da molecada.
Fico pensando nas razões que impediram o biju de se tornar um hit como o biscoito Globo, tradicional e rentável produto também consagrado nas areias.
- Quando eu ainda era criança, meu pai comprou as máquinas e tentou legalizar, mas a vigilância sanitária implicou com as impressões digitais que ficavam após o manuseio – conta.
Mesmo assim, Arino assegura que seu produto de fundo de quintal faz mais sucesso que um similar industrializado, vendido em bancas de jornal.
- O deles fica duro e o pessoal não gosta.
(...)
Tiro as fotografias e peço a Arino que agite a sua matraca – uma placa de madeira com uma barrinha de ferro que mais parece uma ratoeira e é outra marca registrada desse jurássico comércio.
-Quer que eu toque o quê? Samba? Forró?
E ele começa a chacoalhar a matraca e a cantar Asa Branca, atraindo as atenções.
É assim há décadas."

*****
Eu (aqui do biscoitochines) me lembro: o biscoitinho, um rolinho comprido e ôco, que eu chamava de tringuilim (para mim, bijou, que conheci bem mais tarde, é de tapioca), se espatifava todo e colava um pouco na boca. Muito mais gostoso e mais leve que o industrializado. A massa parecia mesmo com os “biscoitinhos de hóstia” que a minha mãe comprava nas freiras carmelitas de Petrópolis.
Do pirulito eu não lembro, mas nunca gostei de bala, talvez por isso. Mas lembro de um espetinho de uva caramelada, cor de caramelo, não era vermelho como a maçã que conhecemos. Tudo muito artesanal e caseiro mesmo.
E a praia, tranqüila e deserta... O paraíso só era perturbado pelos “caldos” que a mãe dava para obrigar a molhar a cabeça de tempos em tempos. Mas o sol era mais inocente, ainda não tinham descoberto o buraco na camada de ozônio.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

As canelas e o caminho, via celular


Mudança, mesmo que breve, do horário de trabalho, produziu efeitos inesperados. Ir e voltar a pé.


Com direito a uma caminhada quase noturna no Jardim Botânico (o que só a carteirinha de “sócia” garante).


Um taichi impressionista no cair da tarde. . .


A administração desse blog faz o que pode para se manter coerente com o nome que ele carrega, e reconhece que a cidade tem feito a sua parte.

sábado, 19 de junho de 2010

Um Barão e um Violão


Papéis amarelados, guardados numa pasta de papelão, ganham sobrevida aqui. Se escaparam de algumas vistorias e não foram para o lixo talvez tenham alguma coisa a nos dizer, mesmo que num dado momento nossa memória comece a falar grego, e não encontre eco entre a maioria dos olhos e ouvidos que nos cercam.
Tenho poucos registro das primeiras entrevistas que eu fiz, e se nossa memória é regida pelas emoções, pior ainda, arquivos feitos na adolescência não serão confiáveis aos olhos de agora.
Mas os recortes da pasta ajudam a lembrar detalhes de duas matérias que não esqueci: um barão de mentirinha e uma estrela que escolheu sua viola como sobrenome.
Há pouco tempo encontrei um ator que, ao saber que eu tinha entrevistado o Barão de Itararé, me perguntou como era sua voz, já que estava montando uma peça com suas frases e textos de humor e não achou nenhum registro de sua fala. As frases humorísticas fizeram a fama de Aparício Torelly, jornalista gaúcho que, segundo ele próprio, depois de fundar e afundar jornais no Sul,veio para o Rio nos anos 20. Trabalhou em O Globo e depois em A Manhã, que sem o til deu o título para a mais famosa de suas criações, o jornal “A Manha”. O título de nobreza veio de uma batalha que não se deu, apesar de muito anunciada pela imprensa, a batalha de Itararé.
Da voz eu não lembrava particularmente, mas lembro de como me recebeu, e foi como abri a matéria:
– Entre e sente-se na cadeira principal, disse o barão, abrindo uma fresta da porta da cozinha. Há uma cadeira disponível aí, não há? Havia, entre montes de pilhas de jornais, livros, revistas e folhetos que ocupavam quase toda a sala.
- Fique à vontade e não repare, continuou Aparício Torelly, pois eu sou o mordomo do Barão, o cozinheiro, enfim, aqui eu faço tudo.
Isso explicava o caos do apartamento em que morava no Catete, ao lado da Praça São Salvador.
Ele tinha voltado a ser notícia por ter ido ao Ministério da Educação pedir autorização para participar, como ouvinte, do curso de Biônica Aplicada da UFRJ, no campus da Ilha do Fundão. Aos 75 anos, afirmava que tinha muito o que aprender.
-“Há muita gente que pensa que o coração é o órgão mais importante do nosso corpo. O meu já esteve parado três anos atrás. O que há de mais importante mesmo em nós é o cérebro. O coração alimenta o cérebro através do sangue, funcionando como uma caixa d'água a seu serviço. A maior força do universo é a força do nosso pensamento, mas os homens são dominados pelo ódio, que é a pior arma de destruição. O homem que constrói armas de destruição não constrói nada, está buscando a própria ruína.
Os russos afirmaram uma verdade: Jesus era um astronauta que veio de um desses planetas situados entre Marte e a Terra, e chamados de poeira cósmica. Ele veio para pacificar a Terra, pois as ondas maléficas que estavam sendo emanadas de nosso planeta contaminavam o universo”.
_ “A base da biônica repousa no estudo do cérebro humano. É uma mistura de BIologia com eletrÔNICA. Os matemáticos, seguindo o caminho da Física, chegaram à Eletrônica, que é a ciência que estuda os átomos em ação. Pela Química, chegaram à Biologia, a mais importante ciência que existe: nela se baseiam todas as outras.
A matéria continua:
Os animais, em sua opinião, são tão inteligentes quanto o homem, ou mais. Os insetos tem, inclusive, religião. Em sua casa, cria formigas: o barão conversa com elas que são, segundo afirma, os animais mais admiráveis que existem.
Ele não mata nenhum animal e mesmo as baratas que aparecem em sua casa não são afugentadas: ele lhes dá comida. Vegetariano, afirma que carne é cadáver em putrefação e diz que açúcar refinado, como todo mundo come, provoca a arterioesclerose. Ele só come glicose, tirada da cana de açúcar, frutas e vegetais. É gaúcho e se acostumou a tomar mate amargo.
Sem querer desmerecer a gentileza que me fez, só hoje desconfiei que foi por isso que saí de lá com uma caixa de bombons...
A matéria saiu em 1970, no Correio da Manhã, com o título de:
“O Barão, de nôvo: agora êle diz que é a serio”.

A segunda matéria era sobre o jovem e mesmo assim o mais famoso calouro do Instituto Villa-Lobos: Paulinho da Viola.
Vestibulando mas felizmente sem o estresse habitual do vestibular, como ele lembrava, pois a Escola de Música não tinha ainda excesso de candidatos: - "O que é ótimo, pois faz com que seu vestibular tenha puramente o propósito de conhecer os futuros alunos e selecionar melhor as turmas, tirando o aspecto triste do vestibular que é o de barrar candidatos".

Da matéria, que saiu a 19 de fevereiro de 1970:

Paulinho da Viola, o colega que talvez nenhum vestibulando pudesse pensar em ter, prestou provas de Português, Matemática, Espanhol (a língua pela qual optou), Teoria e Solfejo.
Fez curso de contabilidade e chegou a trabalhar como contador numa firma na Rua do Acre, mas felizmente sua verdadeira inclinação prevaleceu – está com o firme propósito de cursar os quatro anos de escola, e se redimir do mau aluno que foi (segundo ele “aluno- média-seis”), pois acha importante se organizar, pois sem disciplina é difícil conseguir alguma coisa.
-“É difícil viver de música aqui no Brasil, principalmente para quem faz música séria”.
Sua verdadeira escola foram as rodas de samba e de choros da casa do pai.
-“Sempre fiz samba e descobri que é impossível uma pessoa se desligar do que já tem dentro de si, do que faz parte da gente”, prossegue Paulinho, com toda a sua simplicidade, e confessa que se acha fortemente ligado à Portela, escola que freqüenta há anos. Seu maior sucesso do momento, talvez a mais aclamada de suas músicas, tem seu fundo cultural, ligada ao amor que tem por sua escola preferida: o samba “Foi um rio de passou em minha vida” nasceu inspirado no título de um livro, “Por onde andou meu coração”.
“Para se fazer um samba é preciso uma forte dose instintiva, principalmente, mas é sempre necessário que se adquira um pouco de técnica, um certo conhecimento de música”.

Carioca, nascido e criado no Rio, Paulinho tinha planos singelos: uma tournée pelo Brasil, com um grupo de amigos, talvez, e um show teatral. Seu compacto gravado, um duplo, tinha se tornado o hino da Portela. E esse rio só fez se tornar cada vez mais caudaloso.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Viagens e descobrimentos


Minha viagem começou na revista da TAP, que me levou muito mais longe do que as asas de seus aviões alcançariam. Com uma matéria sobre o Minho e suas tradições, entre elas as continhas de ouro com que as moças, ou raparigas, lá fazem pulseiras e colares. Passaporte para a infância a foto das bolinhas com que brincavamos, que corriam pelo chão da casa e se perderam no tempo, como quase tudo. Estavam arquivadas na mais tenra infância, quando eu não fazia a menor idéia de onde vinham.
Até aí, estava achando um pecado passar por Lisboa sem parar um pouquinho que fosse.
Conexão justa. Já tinha comigo o cartão de embarque para Roma, mas resolvi perguntar pelo caminho a alguém da companhia para onde deveria me dirigir. Péssima idéia, mesmo sendo só uma conexão, me mandaram para uma fila, gigantesca e dúbia, porque lembro de ver na minha frente, além da fila geral e a da comunidade européia, uma simpática opção para países de língua portuguesa. Me pareceu confuso, mas às cinco e meia da manhã, noite mal dormida, melhor dar aí um desconto.
No Rio, um gentilíssimo atendimento na loja da TAP me lembrou que se eu perdesse o vôo, a companhia se responsabilizaria, mas mesmo assim, tentando evitar que isso acontecesse, resolvi consultar um funcionário do aeroporto. Eficiente, ele me dirigiu para uma fila de prioridades, por conta do tempo curto. Atrás do guichê envidraçado, uma senhora me fez o sinal de não. Fiquei lá. Ela atendeu primeiro a duas pessoas idosas e então me chamou. Para me passar um sabão. Eu expliquei que fui mandada para lá por um colega dela, porque não tinha muito tempo. Pra quê!
– “A conexão justa é escolha sua, não é culpa da companhia. Seu vôo, aliás, chegou mais cedo, e se chegasse na hora prevista, a senhora não estaria aqui a fazer este discurso!” Terminou ELA o seu discurso de dedo em riste, e eu consegui ficar calada, pensando em chegar logo, levei o passaporte carimbado e o desaforo na mala de mão, numa boa.
Nos infindáveis e desertos corredores, nova dúvida, uma placa com os números dos portões e outra logo abaixo indicava Terminal 2 na mesma direção. Era o meu portão, mas seria no Terminal 1, que era o meu? Tudo muito grande, muito novo e muito deserto. Voltei para perguntar e vi que a dúvida era muito freqüente, alguma coisa errada na sinalização.
Mais tarde, admirei a minha filha, que fez esse mesmo trajeto na semana seguinte, a caminho do Londres, onde iríamos nos encontrar. Teve dúvida mas foi em frente, sozinha, pelos mesmos desertos corredores, sem perguntar a ninguém. Ah, benditas as certezas dos jovens! Ela chegou e ficou em seu portão deserto, e um tempo depois começaram a chegar todos os brasileirinhos, quem sabe, alguns espinafrados como eu fui.
Mania que jornalista tem de perguntar!
Voltando à minha atribulada conexão, vi que tinha tempo para um café! O cardápio trazia: “Carioca – chá com limão”. Perguntei que chá seria, e a atendente me respondeu, ríspida: não é chá, apenas água quente e uma rodela de limão. Deixei essa estranha carioquice de lado e esperei a minha vez. A senhora na minha frente na fila (só havia nós duas ali) perguntou se seria possível pingar um pouco de leite no café que tinha pago. O preço não seria o problema, ela ouviu a descompostura por outro motivo. – “A senhora deveria ter explicado isso ao pedir o café. Se cá uma fila houvesse, a senhora estaria aí a causar atrasos!”. Ela respondeu risonha, com humor de férias: -“Desculpe, errar é humano!” Escaldada, perguntei já ao pagar se seria possível pingar um pouco de leite, etc...já tinha levado o meu pito do dia.
Não sei o que os mordeu. Arriscaria dizer que não gostam do sotaque. Ou quem sabe descontam seus problemas nos brasileiros porque falam a língua? Será o troco pelo frequentemente deseducado comportamento brasileiro, que conhecemos tão bem? Gostaria mesmo de saber. Talvez uma economia mais forte melhorasse o humor por ali. Ou quem sabe o fato de já terem sido donos de meio mundo, com tanta valentia, tenha endurecido alguma coisa ali para sempre? Bem, mesmo não querendo generalizar, compreendi um pouco melhor a minha avozinha por abandonar tão radicalmente a cidadania lusa e abraçar com tanta alegria essa terra tropical.
Fui feliz há alguns anos numa rápida passagem por Lisboa, Sintra e Cascais. Foi bom e ainda pode ser, mas o projeto de férias em Portugal foi adiado sine die. Fiquemos, pois, com os doces maravilhosos, a doçura da poesia e a sólida literatura lusa. Gosto do Sul, e, por falar nissso, também do Mercosul, lembrado na capa do meu passaporte azul.