terça-feira, 19 de abril de 2011

O samba mandou me chamar


Carioca da Zona Sul não conhece a Zona Norte, e não será de metrô que conhecerá, se ouvir o que a mídia e os motoristas de taxi da cidade dizem sobre o metrô do Rio (seriam isentos?) Na contramão do que acabei de citar, peguei o metrô no sábado à noite, para o lado que vê o Cristo de costas. Meu destino ia além da estação terminal - a Pavuna - para onde só mesmo um bom samba me levaria por livre e espontânea vontade. O samba histórico do Almirante, que imortalizou o bairro dessa estação, não foi a única lembrança que me veio ao longo da viagem - Botafogo, Flamengo, Largo do Machado, Catete, Glória, Cinelândia, Carioca, Uruguaiana, Presidente Vargas, Central, Cidade Nova, São Cristóvão, Maracanã, Triagem, Maria da Graça, Nova América/Del Castilho, Inhaúma, Engenho da Rainha, Thomaz Coelho, Vicente de Carvalho, Irajá, Colégio, Coelho Neto, Acari/Fazenda Botafogo, Engenheiro Rubens Paiva, Pavuna. Conheço metade delas, da outra metade, em cada nome, alguma referência.
Estive uma vez na casa do Engenheiro Rubens Paiva, que hoje batiza uma estação. Eu era adolescente e a casa, muito longe dali, era no Leblon, numa festa de aniversário em que não se poderia imaginar o destino trágico que a covarde ditadura militar lhe reservaria.
Estive em Del Castilho com a minha filha, em tempos já mais alegres, atrás de alguma coisa que só tinha numa loja daquele shopping, e lembro de passar por um Rio rural, verdinho, e minha filha brincar comigo, dizendo que eu já ia querer morar em Maria da Graça.
Por ali foi o trem entrando pelo túnel do tempo, nessa viagem que não tinha nada a ver com as recomendações que me fizeram, meninas no vagão voltavam para casa brincando de adedanha com os pais, eu estava sozinha mas não me senti sozinha, porque o clima era quase interiorano. As áreas externas do trajeto são coalhadas de luzes no escuro, não se vê bem à noite as grandes favelas que os trilhos atravessam. Minha vida foi voltando para trás, à medida em que o trem avançava. Estive em muitos trens pela vida afora, mas esse acabou me levando para o trem que eu via passar em Itaipava, que agora só existe na minha memória de infância. Tinha ficado triste durante o dia, pensando no rumo que a vida toma, deve ter sido isso.

O destino era um show em comemoração aos 20 anos da Casa da Cultura de São João de Meriti, na Praça da Prefeitura, e a recomendação era não sair do metrô até que chegasse o meu resgate para lá. Enquanto esperava, fiquei olhando as levas de gente que chegavam nos trens seguintes. A moda propriamente dita não era tão diferente por lá, embora o resultado fosse. Jeans hoje uniformiza bastante, mas o jeito de usar, de não se incomodar com o que sobra fora das peças, sempre muito justas, difere um pouco. Muitas cabeleiras louras e alisadas. Pensei que o que provoca mais contraste do que o poder aquisitivo é a cultura, portanto, o contraste poderia ser menor, mesmo vivendo a realidade do mundo capitalista – não fosse o nosso capitalismo mais selvagem do que os olhos com que a Zona Sul do Rio vê a Baixada Fluminense.
Mal vi São João, mas me disseram lá que foi melhor assim... Não é um lugar bonito, é certo, e me veio um impluso de baixar ali com um caminhão de mudas para plantar árvores em cada esquina. Isso já faria uma enorme diferença em pouco tempo. Mas não será o atual prefeito que fará isso: ele administra o que é a maior densidade demográfica do país - e talvez das Américas - com 93 por cento de rejeição. Fiquei pensando na explicação para a triste sina da cena política do Estado do Rio de Janeiro, há tantas décadas, com tão escassas exceções.

Mas eu ia de encontro à mais pura alegria, e foi mesmo alegre o show na praça. Alegre e retumbante. De onde eu estava, de cara para o palco, as potentes caixas de som estouraram todas as minhas tentativas de gravação, não valeram os registros, mas soube ali que foi em São João de Meriti que viveu João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, muito homenageado.
A viagem de trem foi curta, o show foi curto, como a vida é curta. Curta! É o que eu espero ainda aprender a fazer. Já tenho a filha que quis. Não fiz um livro, mas escrevo aqui o que me apraz. Posso não conseguir plantar as árvores que eu sinceramente gostaria de plantar, mas decidi ter um jardim, e vou conseguir. Já encontrei ali um pinheiro, e quem sabe as raízes dos futuros canteiros vão me ensinar a plantar as minhas próprias raízes, em paz com a régua e o compasso que a vida generosamente me deu.


terça-feira, 12 de abril de 2011

Degenerar



O lugar que me coube na profissão que escolhi me poupa de lidar obrigatoriamente com grandes tragédias. Sou jornalista, no entanto, e essa é daquelas profissões que entram na corrente sanguínea, difícil calar ou segurar o teclado diante de uma notícia.
Sendo mãe, não posso imaginar dor maior do que perder um filho. Já ficamos agredidos e abalados apenas em saber que outras pessoas passam por sofrimento tão grande. Por isso admito que o desagrado e a rejeição que costumam provocar em mim a exposição do sofrimento não sirvam de parâmetro para medir a intensidade da cobertura de crimes e tragédias como a que aconteceu em Realengo. Críticar a cobertura pode parecer, para quem tem que lidar com notícias muito chocantes e tristes, injusto e até ofensivo, mesmo que não fosse parte da nossa cultura uma especial aversão a críticas. O que eu considero uma de nossas desventuras, porque crítica, bem como sofrimento – excluindo é claro as exceções traumatizantes - costumam proporcionar crescimento e evolução.
A minha primeira reação é a de respeito pelo sofrimento alheio. A única justificativa para expor pessoas que sofrem é denunciar injustiças, no sentido de que sejam punidas para evitar sua repetição. Aí eu penso: o que move uma cobertura é sempre a procura das causas?
É evidente que se fosse possível prever e antecipar um assassinato, não haveria assassinos. Mas da mesma forma que para se criar uma criança é preciso uma rede em volta dela, uma sociedade empenhada em protegê-la, detetar um psicopata, impedir que ele tenha acesso a uma arma, entre num lugar cheio de crianças indefesas e promova um massacre deveriam também ser tarefa de uma sociedade. Um doente mental é responsabilidade – embora seja uma difícil e triste tarefa – da família e também do estado. Um vizinho problemático pode ser detetado por um gesto de interesse ou ajudado por um gesto de carinho. Os problemas que temos aqui não vieram de Marte. O que é estranho também é humano, na medida em que faz parte da Humanidade, e o que me choca, na verdade, é constatar sempre o choque apenas em situações extremas. Não se trata de procurar culpas depois do leite derramado, mas muita coisa poderia ser evitada, sim, e com ajuda da mídia. Não, não tem perdão. Eu esperava da minha profissão um pouco mais de coração e massa cinzenta do que o que podemos procurar – até cansar - num megafone.