sábado, 24 de janeiro de 2015

O afeto que se encerra


Uma jovem amiga - amiga por tabela, mas nem por isso menos querida, me surpreende dizendo que quer conversar comigo sobre...casamento!

Abri um dia o livro Mentes Inquietas, e fechei na primeira página para nunca mais abrir porque ali descobri que a minha não sossega nem quando durmo. Talvez um terço, se não mais desse tempo infernal em que a minha trabalha, eu tenha dedicado a esse espinhoso e insolúvel problema que persegue democraticamente casados e descasados, por isso posso dizer que minha amiga procura uma fórmula que ainda não foi inventada, nem nunca será, desconfio.

Casamento foi um jeito legal de organizar a sociedade, de dar um rumo e um cunho nobre aos nossos instintos selvagens, depois que saímos das cavernas e nos agrupamos em sociedades que se pretendiam civilizadas. Só isso? Os humanos não tiveram que ser inteiramente domados para isso - embora muitos necessitem, sim, de chibatadas por comportamentos inaceitáveis em qualquer espécie, seja humana ou irracional. Essa solução partiu da exploração de instintos autênticos em inúmeras espécies animais, de escolha, exclusividade, necessidade de proteção da prole. Procriar é um projeto a dois, a não ser que, no momento da partida, se decida e explicite o contrário. Caso contrário, decidir sozinho nesse campo é deslealdade das mais deploráveis. Porque o resultado de uma gravidez não é nada descartável, é fonte de alegria e problemas enquanto dura a vida.

Somos desiguais, os iguais se procuram, as desigualdades interessam e estimulam, variam os motivos que norteiam as escolhas. Uma vez feitas, elas carregam, sim, princípios mais aprimorados de humanidade, como a lealdade. Que pode ser confundida e mal comparada com sinceridade, mas é coisa bem diferente. Sinceridade de sentimentos é básica e fundamental. Já sinceridade tipo confessionário, como as doutrinadas em instituições religiosas, é coisa traiçoeira. Trair também é um verbo que se conjuga de várias maneiras. A traição que era prevista e punida em antigos códigos penais pode machucar mas não necessariamente condenar. Até porque os códigos entre casais também variam. O que é e sempre será condenável não é esse tipo de traição, mas deslealdade. Enganar não é apenas trair, é puxar o tapete, é dissimular, é desrespeitar, é não pensar no outro quando são duas as pessoas envolvidas. Muitas vezes isso acontece porque uma pessoa vai se distanciando tanto da outra, embolando tanto o meio de campo enquanto se supunha entre quatro paredes, que perde a noção do limite, despejando enfim no outro a tal sinceridade quase que para se redimir.
Melhor não falar de coisas negativas, é positivo o raciocínio desenvolvido aqui como é saudável a dúvida levantada pela minha amiga. Mesmo que ela olhe com muita suspeita o meu marco de quatro décadas ainda do primeiro casamento, incompreensão natural para quem não viveu o suficiente para entender o emaranhado das vidas compartilhadas por um longo tempo, a cobrança é pertinente e sincera da parte dela, na sua busca por explicações.
Como se sente um sobrevivente? Aliviado por ter sobrevivido, junto com o que acumulou e guardou, podendo conviver em paz com a maior parte das suas lembranças? Arrependido por não ter pulado do barco antes, por conta do peso que o tempo vai depositando nos ombros? Em nome de quê carregar tanto?
Sendo resultado de escolhas ou o rumo que a vida apresenta, quando caminha você nunca tem controle absoluto do resultado, já que adivinhar não vale, mas acredito que está no bom caminho quem procura se conhecer, pensar nas preferências e escolhas pessoais, aceitando principalmente que não se pode ter tudo, ou que não é decente ter tudo, ou alguém vai ficar sem...
Casamentos duram cada vez menos, isso é certo, então, se tem ao seu lado uma pessoa legal, e os dois querem filhos, talvez seja melhor agora começar cedo, para ter alguém que te ajude a empurrar o carrinho e dividir com você o tempo mais maravilhoso que pode haver, que é ver nascer e crescer a vida mais nobre, forte e encantadora que pode existir sobre a Terra. Por outro lado, não é mais seguro ir se conhecendo com o tempo, já que não existe mais muito pudor nesses tempos à la fakebook, e estão à mão todas as ferramentas para a dissimulação em massa? São tantas as tentações vazias de qualquer conteúdo, e tão grande a tentação de escolher conteúdo zero... É tão mais fácil agora apagar o passado, com um click se fica livre de muito entulho que antes se acumulava na gaveta, as fotos que guardo da minha avó vinham num encarte de papelão, com o nome e endereço do fotógrafo impresso em letra caprichada, hoje somem num segundo e você está a salvo de ser apunhalado por uma memória esquecida num canto de armário.

"O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza..."Guimarães Rosa se aplica aqui, como em qualquer lugar.
Sonhar não custa nada, ou custa caro, pode custar uma vida, por isso é bom sonhar com pelo menos um pé no chão.
Enganar não é o que se quer, acredito, mas se enganar a si mesmo é bastante frequente. Existem traços determinantes que o ser humano não escolhe ao nascer, alguns já vem mais aperfeiçoados - o tal do DNA - mas todo mundo pode se aprimorar. Quem quer, quem deseja sinceramente evoluir caminha na direção de se aprimorar, de buscar respostas e soluções, de pensar no outro, e não apenas seguir seus instintos e exercer suas vontades, comportamento que pode ser mais marcadamente masculino mas está longe de ser inerente ao gênero. Fácil como preencher um cheque ou passar o cartão. É que o sexo masculino dominou a sociedade por séculos, ainda é privilegiado no mercado profissional e conserva mais os traços de tempos truculentos, apenas isso.
O que é determinante no comportamento das pessoas, penso que é mesmo o caráter e a sensibilidade, resultados não só do DNA do indivíduo mas da criação que teve. Aí a coisa vem se complicando mesmo, em tempos já mais permissivos mas em gerações que ainda foram educadas essencialmente pela mães. Educar é tarefa árdua e nobre, mas acho que exercida com mais indigência quando se educava filhos homens. Por que será? Mães machistas? Mães intimidadas ou deslumbradas com seus filhos? Vaidade para mim é pecado mortal, sem essa de capital, carece de correção e não de compreensão e até louvor. Particularmente no sexo masculino. Vem disfarçada de pecado venial, mas é veneno, explosivo, passar muito, muito longe! Vaidade em excesso prioriza lixo, o que é substancial e verdadeiro vai para o fim da fila nas escolhas de um vaidoso. De novo, deixemos o que é negativo, é pra frente que se anda, buscar soluções para uma vida saudável e verdadeira é o que se deseja.

O Xis da questão é: sexo e casamento. Sexo e casamentos longos, e no meu tempo o desejo não passava tão rápido quando parece passar agora. Havia mais persistência e porque não dizer, imaginação! De novo vem aí o problema de criação, pessoas criadas cheias de vontades, mãos passadas na cabeça para não traumatizar, foram ficando mais fraquinhas - é preciso esquecer um pouquinho Freud, sem trauma não se cria!
O verbo encerrar é abrangente e antagônico, o sentido da frase do título pode tanto ser o de guardar, guardar com zelo e carinho, quanto o de terminar.
Terminar é triste, mas pode ser muito saudável e até estimulante quando passa a inevitável tristeza por quase tudo que se encerra. Mas existem muitas maneiras de se fazer uma só coisa, e aí lembro de novo o caráter e o sentimento, o afeto que se é capaz de ter, e de cultivar.
Pode haver afeto, sinceridade e decência até numa situação do que convencionalmente se chama de traição. É humano e frequente se enganar, e com isso, ferir os outros involuntariamente. A atitude aí, para não falar novamente em caráter, varia da coragem de cada um. Despreparo é sim, problema de criação. Segurar uma barra sozinho, sem se escorar no outro, ou até pior, culpar o outro quando se engana, ou quando escolhe dar um passo individual e como não dizer, egoísta, demanda coragem e caráter, sim, artigos que estão se tornando mais raros e voláteis até do que casamentos longos.
Em nome de quê se limita ou norteia o desejo hoje, sem o freio das religiões, que tinham muito mais peso no passado, sem o exercício de poder de quem é o mantenedor, antes das mulheres conseguirem um pouco mais de igualdade no campo profissional, sem o medo do inferno?
Numa sociedade organizada, cada um tem sua função, distribuição justa é a que é ajustada entre as partes.
Bom, o que não tem remédio pede uma solução caseira e individual... a gente fica com a que melhor se ajusta. Uma terapeuta me disse para dar notas à importância que cada coisa tem na vida, e seguir as prioridades. Não se pode, repito para mim e para quem quiser ouvir, ter tudo. Se a gente quer tudo, acaba às vezes perdendo o que não escolheria.

Na falta de solução, a gente recorre aos artistas. Gil afirma que o verdadeiro amor é vão, e eu acredito nele. Chico orienta a enviar os amores não amados para a posta restante. Não é o que se deseja, mas como talento e beleza abastecem o coração... mesmo assim, eu diria: acredite na arte, mas nem sempre nos artistas. O ser humano também pode ser muito vão.
Relações humanas não têm bula ou solução, mas têm uma estrela guia: afeto. Procure, cultive e respeite o afeto! E conjugue o verbo encerrar da maneira mais sublime: carregue no peito todo o afeto que conseguir. E fuja, passe a léguas de distância de quem pode até pensar que tem algum, mas não tem o suficiente para suprir um ser humano decente.