sábado, 9 de maio de 2020

Minha mãe




Pense numa pessoa que segue sempre uma linha reta, sem ser careta ou carola. Minha mãe.
Nasceu num paraíso na terra, que se dissolveu quando seus avós se foram. Teve pai até os quatorze anos. Febre reumatóide, que ele trouxe dos invernos em Liverpool, onde passou toda a vida escolar até voltar engenheiro.
Sua mãe também partiu jovem, poucos anos depois que eu nasci, uma avó sempre lembrada que eu mal conheci.
Minha mãe, criada em Santa Teresa, sem rebeldia e sem traumas, num colégio de freiras francesas, gostava de lá.
Rigor e disciplina ajudam muito quando a vida leva a pessoa num pé de vento. E a dela foi assim, um redemoinho, mas ela mesma nunca se abalou. Educava os filhos por formação, senso do dever, e vocação. Teve sete, nossa mãe!
Seguiu seu coração, que seguiu com ela até o fim, na alegria e na tristeza. Meu pai, um competente clínico alopata.
Mas ela se tratou sempre com a homeopatia.
Tinha uma fé cega, mas humana, nada muito espiritual, embora contasse com o reino dos céus. Carregava os filhos para a igreja com ela, aos domingos e nas inesquecíveis missas do Galo, à meia-noite, num tempo que não existe mais.
Viu seus netos - onze ao todo - irem nascendo e não sendo batizados. Lamentava. Planejou um batismo coletivo, quase subversivo, mas não contou com a cumplicidade da Igreja para isso. Desistiu. Deixou nas mãos de Deus, mas contou pela vida afora com a amizade fraterna de um belo representante dele, o Padre - aliás Dom - Hélder Câmara, para ela, o eterno "Padrezinho".
Seu coração, que já era grande, foi ficando ainda maior. Cercada de udenistas por todos os lados, seguiu por conta própria o caminho aberto pelos padres franciscanos da escola em que os filhos estudaram.
Difícil dizer se foi mais mãe do que avó, acumulou funções. E foi se revelando aos poucos, até o fim de sua vida na Terra.
Conhecer mesmo, nós a conhecemos aos oitenta anos, quando lançou um livro contanto sua infância de sonho, quando estudava numa pequena escola que seus avós construíram para os netos e para todas as crianças dos arredores, em seu retiro petropolitano. Nas anotações em um "álbum da avó", confessou um arrependimento: ter comemorado a morte de Getúlio Vargas. Cusiosa mesmo essa D. Mathilde, deixando anotada uma lembrança tardia como essa, que eu só li quando ela já não estava mais aqui. Discreta, silenciosa, quase humilde: surpreendente. Um dia, uma homeopata me disse: vou trocar seu remédio: você parecia que era de um jeito, agora estou achando que você é o oposto - não sei porque, lembrei ali da D. Mathilde. Mathilde com H, ela lembrava. Como lembrava do sobrenome La Rocque, que tirou quando se casou, mas não saiu de seu DNA.
Sempre às voltas com filhos e afazeres, e cuidando sempre das plantas e de quem estivesse à sua volta, a música e o cinema nunca deixaram de ocupar um lugar de honra para ela. Antenada, fugia, se fosse preciso, diante da possibilidade de um filme ou um show interessante.
Dia 20 de abril passado, ela teria feito 98 anos. Mas nos deixou aos 84, com a cabeça de sempre e sem nenhum aviso. Nos deixou, maneira de dizer, porque mesmo para uma pessoa de pouca fé, sua presença é quase palpável. Sua luz não nos deixa, não importa o tamanho da dificuldade que nos aparece. É ela que resolve. E que nos ensinou a seguir. A vida tropeça. A gente segue.