Viajei por seis cidades na Índia, de carro e avião. As distâncias eram grandes, e mesmo restrita ao roteiro que fui produzir, pude ver muita diversidade. Restrição é realidade constante na visita a uma terra estrangeira, em que estamos sempre sujeitos a um visto oficial e muitas autorizações. Além das restrições impostas pela direção e pelas necessidades do nosso trabalho, sabemos que mesmo em nossa terra, senhores da língua, da cultura e dos nossos direitos, existem portas fechadas e subterrâneos. A rigor, para gravar na Índia uma simples imagem de rua, precisaríamos de uma autorização geral, federal, de uma estadual, de uma municipal, e outra da polícia local. E muitos carimbos. São inventores do carimbo e da burocracia. Especialmente quando você carrega muito equipamento e quer usar um tripé de câmera. Mas podem não ser necessários, como não são. A gente descobre depois.
A campanha publicitária oficial diz: Incredible India! Os mais críticos dizem que está certíssima, mas significa que na Índia nada é crível. Nem o que se pede, nem o que se fala. Um orçamento pode pedir dez vezes o que você deveria pagar. São demoradas e incertas as negociações no país que inventou os negócios. A gente aprende.
E por mais misterioso que possa parecer, eu, que me vi muitas vezes perguntando o que é que eu estava fazendo ali, agora tão informada e vacinada já admito a possibilidade de voltar um dia.
É verdade que circulamos por lá numa época em que o país estava em choque com os ataques a Mumbai/Bombaim. E circular na Índia é outro mistério.
Vacas no trânsito, camelo parado no sinal luminoso, que os pilotos dos riquixás de bicicleta ou de motor simplesmente ignoram, como ignoram nossos sustos e solavancos. Elefante nos ultrapassando, a caminho de uma feira, e estou falando das ruas de Delhi, a capital.
Nunca vi nada igual, e não vimos um acidente sequer, apenas a maior confusão, onde tudo se resolve... buzinando - os carros pedem: buzine, por favor! É buzinando que se comunica – estou chegando, quero passar, estou ultrapassando.
O calendário é outro mistério. Maio aqui é dezembro lá – se você é solteiro, ou está casando ou está correndo sério risco na temporada de casamentos. Mesmo se for estrangeiro e não estiver nem um pouco a fim, vão tentar te arranjar um casamento arranjado, como tentaram com um colega da nossa equipe. Os dias da semana e as horas também são diferentes na Índia. Vimos cortejos de casamento em todos os dias e horários. Ou então, os dias e horários nobres não dão vazão, o que é mais surpreendente e preocupante ainda: sabemos o quanto pode ser prejudicial, para os envolvidos ou para a instituição, tal fanatismo por casamento.
Humor à parte, pode explicar uma população de mais de um bilhão de pessoas, num país que tem a metade da área do Brasil. E um terço da população vivendo em condições miseráveis, a ponto de mencionarem trabalho infantil como coisa corriqueira.
Fotografei muito por lá, mas o que o que a gente mais sente, não consegue documentar. O espírito do país é muito diferente. Tínhamos um guia muito eficiente, mas nada é simples a princípio, e no entanto tudo se mostra simples depois de alguma negociação, alguns sustos e negativas. Você invariavelmente ouve um não ou o relato de uma grande dificuldade sempre que propõe alguma coisa, e nem sempre isso acontece para poderem vender facilidades – embora muitas vezes seja. Nada é claro e direto, mas na maioria das vezes os fantasmas desaparecem, sem explicação ou necessidade de explicação. Pode ser exaustivo e exasperante. Parece que é obrigatório se assustar e sofrer para depois ficar aliviado e satisfeito.
Na chegada, depois de mais de trinta horas viajando, contando tempo de voo e aeroportos, bagagem extraviada, burocracia, saímos do aeroporto às duas da manhã, as granadas explodindo em Bombaim e um despachante de alfândega me assustando, primeiro pelo telefone, com a burocracia, depois ao vivo, por conta do caminho que o motorista pegou para o hotel - que eu não conhecia, mas que estava certo. Stress desnecessário, mas com fins lucrativos.
Encontramos no caminho pessoas maravilhosas, sábias, acolhedoras, simples e receptivas, sempre dispostas a ajudar e a resolver. Desigual. Como desigual é a vida em Bombaim, onde poucas quadras separam a “casa” de vinte e sete andares, ainda em construção, de um dos dez homens mais ricos do mundo, dos chawls, os cortiços que são residências típicas até hoje na cidade mais progressista e rica da Índia. Nessa lista dos dez mais ricos, tem mais um ou dois indianos.
Folheando uma revista Elle, no avião de volta, li a história de um casal que morreu no Oberoi, um dos hotéis atacados e ocupados. Ela, francesa de origem indiana, muçulmana, tinha resolvido viver na Índia em busca das raízes, de proximidade, de solidariedade. Bem sucedida, Lumia era a criadora da grife Princesse Tam-Tam, que vendeu para os japoneses. Queria criar uma ONG para órfãos em Bombaim. No site da grife, ela dizia que o que mais detestava eram as injustiças da sorte. Mais uma história chocante e triste, parte da vida desse país tão colorido, agitado, pacífico, e sem a menor dúvida original e que consegue levar a vida com humor. E muito jeitinho. Desconfio que os portugueses não ocuparam apenas Goa por lá, tais as semelhanças que percebi. O maior mercado de temperos e especiarias da Ásia está lá, e parece igual ao que devem ter encontrado em 1500.
Perguntei a um indiano qual o sentimento que eles tinham com relação aos ingleses. Ele respondeu que não havia amargura com relação a eles, não mais do que com relação aos estúpidos marajás. Não consigo ver com bons olhos qualquer colonizador, mas pelo menos no caso da Índia, ficaram os trens, e a língua mais universal do planeta.
E o humor, seria herança britânica? Foi lá que vi a frase, estampada numa sacola de livraria em Pune:
- Esses são os meus princípios – se você não gostar, eu tenho outros.
(Groucho Marx)
2 comentários:
Suas impressões da Índia são muito parecidas com as que tive da China. Esses vizinhos devem ter realmente muito em comum. Beijos!
Bella, o Oriente, com todo respeito, me parece uma grande bagunça - tirando o Japão, que eu prezo muito. Bom, cada um com suas qualidades e pecados - quem somos nós para falar deles, mas vejo na cultura ocidental uma evolução, sim, sem querer ofender ninguém... bjs!
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