quinta-feira, 30 de abril de 2009

A resistência


Papéis resistem. Tem garras, e proliferam. Antes eram pastas de documentos que hoje são quase históricos, quem sabe um dia virarão um livro. Idéias de pauta, fotos bonitas (guardadas, como a mãe fazia, para trabalhos de escola), lembranças, informações para matérias. Documentos de processos que um dia encontrarão solução. Ou a lixeira.
Receitas culinárias, um armário à parte. Agora surgiu ao lado da cadeira do computador uma mesinha, já com pequenas pilhas de coisas fundamentais, idéias para desenvolver, que me olham pelo lado direito. Gosto de me informar sobre o que me interessa, sobre o que acho que importa, ou o que importa é só o que está previsto que eu faça? É preciso ser equilibrista, de circo mesmo, ou mais forte ainda, para acomodar tudo. E conseguir avaliar o quanto o mundo nos empurra sem andarmos com os nossos próprios pés e pelos caminhos que escolhemos.
Não é justo nem produtivo lamentar o que já foi trilhado, nem se desentender com a própria cabeça, mas a vida pede mais simplicidade e frugalidade à medida em que nosso tempo fica mais curto. E tudo pede tempo, que quanto mais passa, menos sobra. Focar não é palavra imperativa agora? Passar a limpo, ficar compacta, leve e objetiva. Numa cabeça livre, quem sabe só entra o que a gente quer? A palavra que me vem nem som bonito tem, mas rede é a sensação que me envolve nesse momento, uma rede para descansar, junto com a rede para me jogar como faço aqui. O pensamento, por ironia, me trouxe mais uma dualidade, dois mundos antagônicos numa só palavra. Nada de novo aqui no litoral.
Não sei, mas já desconfio que a mudança está no jeito de olhar e de andar, mais do que na mudança em si. Vou conseguir ser única, sábia – ou mesmo sabida - inteira e compacta um dia? Mudança é desapego. Contatos e anúncios de apartamento já formavam uma pilha na mesinha ao lado antes de irem para o lixo. Serviram, no entanto, para revelar que o que eu quero não está anunciado, mas mesmo assim vou encontrar.
Nessa rede tão absorvente que abracei nada se paga, só a satisfação é garantida, quem milita aqui costuma ainda ganhar um olhar de viés - como se o mundo real passasse por um criterioso controle de qualidade - vindo dos especialistas estabelecidos e chancelados – que também se servem da rede, vale lembrar.
Como tudo que há nesse mundo, seja na feira ou na rede, é preciso saber escolher.
Feito o poeta Gentileza, que espalha seus escritos gentis pela cidade, gostaria de dar aqui a minha contribuição em alegria, mesmo que as vezes ela seja escassa até para consumo próprio. Para bem viver, além de determinação, imaginação e talento, é preciso ter coragem para vencer o medo do abismo entre perder e ganhar. E poder contar com o auxílio luxuoso de uma rede – ou das duas.

sábado, 18 de abril de 2009

Ao léu e ao mar


Vivo às voltas com idéias, e com a desventura de ver a maioria delas não aproveitada. Quem trabalha em televisão e lida com grandes audiências sabe: é preciso que a pauta seja abrangente, interesse a muita gente, minorias são o terror, não há a menor hipótese de ver aprovada uma pauta de interesse restrito. A televisão não quer saber se a unanimidade é burra, como dizia Nelson Rodrigues: seu sonho de consumo é a unanimidade. Mesmo não me achando burra, algumas relações nessa área eu jamais entenderei. Se falamos para o mundo falando do nosso quintal, como posso aceitar essa busca tão generalizada? Se grandes audiências atraem patrocinadores que querem vender o seu peixe, por que é que são os números que contam, e não a faixa de maior poder aquisitivo, mesmo que em número menor? Desconfio que se fossem destrinchados a fundo os resultados das pesquisas de audiência, da captação às consequências, muita coisa mudaria no mundo da tela pequena. Não acho que estão interessados em discutir isso, nem a televisão nem os institutos de pesquisa, e certamente a minha lógica só vai servir para encher algumas linhas nesse blog.
Outro mistério para mim era o trabalho em um escritório internacional, onde fui cobrir férias, faz muito tempo, apreensiva e animada. Tratei de caprichar nas idéias, escrever, imprimir e levar – a comunicação virtual ainda engatinhava, de modo que fui para lá com tudo muito bem organizado e impresso.
Foram acolhidas com entusiasmo, eram mesmo interessantes e originais, me disseram, mas foram para a gaveta, e de lá para a minha gaveta, onde as encontrei um dia desses. O Brasil só queria saber do que já se sabia – no Brasil! Seria então necessário um escritório internacional, se as pessoas só se interessam pelo que já sabem?
Na primeira redação de jornal em que trabalhei, poderia ter aprendido que criatividade nem sempre imprime. Às vezes, as pautas só se sustentam na imaginação do pauteiro. Lembro de uma que enlouqueceu o repórter encarregado de voltar com a matéria: observar a boca de fumo que tinha sido denunciada, “ver” policiais fazendo vista grossa e, com sorte, flagrar algum pagamento de propina. Nunca poderíamos imaginar como se tornaria corriqueira uma cena que na época parecia ficção. Jornalista de televisão teria ainda muito mais dificuldade para contar essa história, já que se espera que ele conte com imagens. Os chavões e as lendas: “papel aceita tudo”, no caso do jornalismo escrito, e “uma imagem vale mais que mil palavras”. Sei não. Guardamos melhor o que vemos ou o que imaginamos?
Algumas idéias vem, voltam, mas nunca acontecem. A mais antiga que lembro é um programa sobre vida de marinheiro. Consegui o contato de um velho e lendário comandante. Uma das histórias que soube dele era de que abastecia o navio de cerveja vindo da Europa e quando atracava em um porto da Bahia, o navio virava o maior bar de que se tinha notícia. Perguntei se poderia ir a casa dele para conversar, pensando nas fotos que poderia ter. Estranhei a negativa, mas ele completou: - “É pelo decoro, minha filha. Eu moro só”. Conversamos então no Bar Simpatia, na Avenida Rio Branco, famoso por seu delicioso frapée de côco. Nada disso existe mais, o comandante, o Simpatia, o frappé de côco e o decoro.
Os blocos e a cabeça de um repórter são uma colcha de retalhos, uma “lousa mágica”, brinquedo que eu tinha em criança: escrevia, apagava, escrevia por cima – uma espécie de bisavó do computador. A cola da memória é o sentimento que envolve cada coisa que fazemos.

sábado, 4 de abril de 2009

Limbo


A primeira, Nossa Senhora da Conceição da Gávea, eu via da janela, ao longe, antes da especulação imobiliária. E ouvia o som agradável e familiar dos sinos. Mesmo não sendo muito católica, gosto dos salões frescos, silenciosos e vazios. É como eu mais conheço as igrejas, já que não sou assídua em igrejas cheias. Meu pai, que viveu a experiência de ter estudado em colégios de padres, não permitiu que eu fosse para um colégio de freiras, e com isso contribuiu para a minha desconfiança, já no tempo em que me escolheram para me vestir de anjo nos domingos de maio cantando para a Virgem Maria. Para mim era teatro, fantasia e aventura, porque era bem alto o tal do morro da Virgem no altar da Matriz de São José de Itaipava. Tinha esquecido completamente dessa passagem exótica da minha vida, lembrei outro dia, ouvindos os sinos da Santa Margarida Maria, a igreja que tenho ao lado.
Só quem nasceu, ou morou um tempo - o meu caso - em lugar pequeno ou cidade do interior sabe o que é isso, e mais: desfilar nas paradas de Sete de Setembro para ganhar um ponto na média - eu estava sempre precisando de um, que nem tudo me condena nesse passado em que além de anjo fui também bandeirante, e ainda por cima gostava de ser. E paro por aqui as confissões, lembrando que confessar de verdade, tinha que confessar toda semana, para comungar na missa de domingo, e era uma tortura porque eu tinha vergonha da minha falta de pecados, ou dos pecados que achava adequados para confessar. Sempre a mesma ladainha e as mesmas ave-marias de penitência.
Mais tarde, minha mãe ficava triste porque não tinha conseguido passar sua fé para nenhum filho, e como uma incansável guerrilheira às avessas, planejava juntar todos os netos e fazer um batizado coletivo, plano que nunca deu certo. Ela acreditava em limbo, para onde iam as crianças pagãs, e não queria os netos ali. Os fantasmas e os medos que a Igreja cria.
Adulta, lembro de entrar e rezar, em momentos de desalento, quando percebi que devia começar tratando de confiar em mim antes de buscar ajuda divina.
Inquisição, excomunhões, sonsas sacristias, guerras de poder, interesses nada cristãos, posturas arcaicas e reacionárias, fomos aos poucos conhecendo tudo isso, mas minha mãe estava enganada, tanto pela fé quase ingênua na santidade da Igreja, por conta dos bons exemplos que conheceu, quanto por duvidar da fé dos filhos, que mesmo pouco ortodoxa, existe. Da minha parte, acredito tanto na intensidade da fraqueza dos seres humanos, com votos de celibato e castidade ou não, quanto no poder de uma energia boa. E quando vejo grande estardalhaço da mídia envolvendo assuntos religiosos, muitas vezes desconfio de um interesse velado em desmoralizar, com casos particulares, um lado da Igreja que luta, acolhe e prega ensinamentos até hoje revolucionários. Minha memória emocional, no entanto, passa ao largo do céu e do inferno, os sinos para mim ainda conseguem dobrar em paz.


- as fotos são da Igreja Santa Margarida Maria, na Lagoa (clicar para ampliar).

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Bandeira


Fotografei essa bandeira no Museu Histórico. A bandeira da Inglaterra, se não me engano, foi a primeira a virar toalha e biquini. Vivemos tempos, e não faz tanto tempo assim, em que isso por aqui era impensado, de tão proibido. O símbolo nacional deveria ser respeitado e reverenciado a qualquer custo, mesmo que a vida humana não fosse, isso era mero detalhe. Talvez por conta dessa lembrança recente tenhamos um certo pudor com qualquer atitude patriótica, qualquer sentimento de orgulho que envolva o nosso país. Fora dele, no entanto, é absolutamente comum ver brasileiros querendo ser identificados como tal, com bandeiras, bonés, especialmente em eventos esportivos. Somos terrivelmente críticos numa direção estranha. Já eu, prefiro as pessoas aos países, e me interessa mais a cultura do que os símbolos patrióticos porque através delas você conhece e entende os sentimentos humanos. Mas depois de morar fora e ter inveja do patriotismo alheio, de olho comprido com um sentimento de orgulho que eles tinham mas que eu achava que eu não podia ter pelo meus país, concluí que a culpa era minha, e que esse sentimento não se choca com espírito crítico e com o desejo de viver num país mais justo. Nada a ver com conformismo ou tolerância. Só um ligeiro espírito de torcida. Talvez eu não escolhesse essas cores, mas são cores fortes: hoje, acordei em paz com a minha bandeira. Afinal, um país é um conjunto de tudo, sua gente, sua cultura, suas crenças e esperanças, e a bandeira é o símbolo de tudo isso. Quem conseguir fazer com que o povo se sinta um pouco mais em casa dentro da sua própria casa, talvez faça mais por ele até do que subindo os índices econômicos de que os jornais tanto tratam (queremos e merecemos os dois!). Querer mais e melhor não significa não poder festejar o que se tem, pelo contrário, eu penso: se você gosta, e gosta de verdade, quer mais, e melhor. Acho que já escrevi aqui que alegria é destino e é determinação – prefiro sempre o caminho mais alegre e esperançoso, e menos rancoroso. Devo ter sido mesmo feliz em alguma encarnação.