sábado, 2 de fevereiro de 2008

Intimidade


Lembrei outro dia de uns bichinhos pretos bem pequenos que infestavam a cidade de tempos em tempos, chatos que só, ardia muito quando caíam no olho, e sempre caíam no olho. Eram chamados de lacerdinhas, nunca soube de outro nome para eles. Eram especialmente atraídos pela cor amarela. Nunca mais vi um deles, mas certamente existem, e não só no Rio. Como será que se chamam em outro lugar?
Aqueles bichinhos de praia, bem chatinhos também, que faziam cócegas quando estávamos deitados na areia, e costumavam andar aos pares, eram chamados de “teu pai e tua mãe”, pela velha irreverência carioca.
Conhecer a cidade pelo avesso, a intimidade completa com a língua e as coisas da cidade, acho que nunca conseguimos totalmente fora do lugar em que nascemos ou fomos criados. Deve ser isso que provoca banzo, e a tal palavra saudade que povos de língua portuguesa têm como única a definir um sentimento que não pode ser só dos que falam português. Talvez aí ele seja tão forte pelas levas de homens que se perderam no mar, ou que passaram a vida a navegar, e dos amores que deixavam. E além disso, ou até por causa, por valorizar tanto a estrutura familiar mais do que a da comunidade.
Não sei se é reação a isso, mas sempre me senti naturalmente bem em qualquer lugar debaixo do céu que nos protege, independente da língua falada no local onde me encontro. Se não tivesse tantas amarras, ser nômade seria a minha escolha. O mundo é cheio de descobertas, e é pequeno, os portugueses descobriram isso também. E trocamos a intimidade que temos com as coisas que nos cercam pelas novas que passamos a conhecer. Ao mesmo tempo, novos olhos podem observar melhor do que os já acostumados, esse é o avesso da mesma história.
Eu acho que o mundo pode ser dividido entre os que ficam e os que se jogam. As razões de cada um, no entanto, nem sempre são o impulso e o temperamento, mas as circunstâncias em que nascemos e vivemos.
Pensei isso visitando a exposição sobre Gilberto Freyre, no Museu da Língua Portuguesa. Sempre associei ao seu nome o rótulo de conservador, e essa palavra aqui tem uma conotação mais negativa do que a própria palavra encerra. O peso das palavras também varia de acordo com o local.
Numa das frases destacadas na exposição, ele diz que "de vez em quando sou acusado de saudosista, como se saudade fosse uma coisa vergonhosa".
Mas um escritor que diz:
"Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades".
“Eu deixei sempre portas abertas”.
“Tenho muito medo de chegar a ser benquisto por toda a gente ao mesmo tempo”.
E:
“...há que deixar-se espaço para a dúvida e até para o mistério”,
não pode ser uma pessoa fechada em um pensamento estanque ou pequeno, e merece uma leitura melhor do que um rótulo pode encerrar. Merece ser lido de novo, com outros olhos.
foto(clique para ampliar): fundos de casa na Rua Bela Cintra, SP/fev.2008

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