domingo, 17 de fevereiro de 2008

Respeite a fécula que se extrai da mandioca

Lembro do que senti assistindo, pela janela do quarto numa pequena cidade do estado de Nova York, uma singela mas orgulhosa parada no Dia dos Veteranos. Fiquei com inveja do orgulho com que as pessoas desfilavam com suas bandeirinhas. Patriotismo, para quem passou a maior parte da vida sob uma ditadura, não cabia, era um luxo a que a gente nunca teve direito, mais uma que a ditadura tirou da minha geração, tirando até o direito de lamentar, já que muita gente perdeu a vida. Naquela hora eu me dei conta disso, e quis ter um país que me enchesse de orgulho. Só depois me dei conta de que a minha inveja era da ingenuidade deles. Para um orgulho sincero, é preciso ser muito ingênuo e ignorante de muitas coisas.
Venho tentando compensar a falta de orgulho com prazer, e me dei conta de que o único vício que adquiri e me permiti nesses tempos de poucas alegrias e muita salada, é uma tapioca na feira de sábado. Quando provei pela primeira vez, não gostei. Resultado da sabedoria indígena, tapioca é feita com a goma da mandioca, extraída num processo quase “científico”, aprendi ali. Crocante, recheada de queijo coalho e/ou côco ralado, o resultado é quase um milagre de tão bom... é tão sagrada quanto o biscoito mentirinha, torrada de pão Petrópolis, croquetes da Pavelka.
Saí por poucos dias do país e quando voltei, vi que tinham profanado a tapioca, usada como instrumento para mais uma denúncia no mínimo duvidosa. Parece que não só a conta da mandioca já foi sanada mesmo antes da denúncia, como muitos agora até gostariam de esquecê-la para sempre, mas não pude deixar de lembar Vitor Hugo e seu personagem em Os Miseráveis, condenado por roubar um pão. Mesmo que o dinheiro não tivesse sido devolvido para os cofres públicos, esse eu perdoaria como justa causa. Afinal, a tapioca é o pão do norte e do nordeste brasileiros. Por isso espero que todos os deuses indígenas que ainda penam por aqui se encarreguem de rogar uma boa praga contra quem foi capaz de tal vilania.

foto: paturis em formação, vistos da janela. Clique para ampliar.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Hola, que tal!


Passando alguns dias em Buenos Aires descobri lá mais do que uma bela cidade, dei de cara também com muitas das nossas incoerências.
Recomendações antes de ir, ouvi várias, com relação à segurança – logo de quem e para quem mora no Rio...referências à hostilidade e ao olhar superior dos argentinos também. Sei que poucos dias não permitem a ninguém impressões definitivas, mas vi lá um comportamento de extrema educação, cortesia e até muita simpatia, mesmo andando por áreas bastante desiguais da cidade. Vi sim, sem nenhuma surpresa e com o constrangimento habitual, várias demonstrações de ignorância e má educação brasileiras, com atitudes de ostensivo desprezo e muita animosidade pelo povo e o país que visitavam. Por que vão lá então? Entrar em um loja falando português sem nem tentar ensaiar um portunhol e deixar que o vendedor se virasse para entender, não seria uma demostração de arrogância? Não pareciam se dar conta.
O que será que nos faz ver as coisas tão diferentes do que são?
Saí buscando explicações. Sei que existe muita rivalidade gerada pelo futebol, mas minha filha foi com a encomenda do filho de uns amigos para comprar uma camisa do Boca, porque criança não tem preconceito. O vinho, a comida, as compras, todos que vão lá adoram. Mas vai falar bem dos argentinos por aqui para ver a reação...são racistas, chamam os brasileiros de macaquitos, é a primeira coisa de me dizem. Não estou aqui para defender racismo, mas não consigo deixar de lembrar que na Argentina não houve escravidão, e acho que isso serviria de atenuante para uma eventual implicância deles, que provavelmente não é gratuita.
Nos arredores do aeroporto, vi imensos campos verdes onde as pessoas fazem pique-nique nos fins de semana sem que ninguém as importune, e não as tristes favelas que vemos ao chegar ao Rio e a São Paulo. Encontrei uma cidade limpa, com um povo despreocupado andando nas ruas. Fiquei num bairro residencial onde as sorveterias e os bares abrem até as 3 da manhã, cheios de mesas nas calçadas. Motoristas dirigiam com janelas abertas à noite. Os prédios não têm grades como aqui, as pessoas não vivem sobressaltadas com medo, não de um bonde de traficantes, um arrastão ou uma bala perdida, mas uma simples bicicleta por aqui já assusta. E é claro que não falo apenas do Rio, já me senti ameaçada em Recife, Fortaleza, São Paulo, ouvi relatos de amigos assaltados em Porto Alegre...quem não quer tapar o sol com a peneira vai concordar comigo.
Não entendo de economia, mas acabei de ler que há meia dúzia de anos mais da metade da população argentina tinha caído abaixo da linha de pobreza, e as coisas não degringolaram como por aqui. O primeiro motorista de táxi com quem conversamos – e como eles conversam! disse que não era peronista como Nestor Kichner, mas que reconhecia que ele acertou em muitas coisas. Nos últimos anos de alguma forma se reergueram. Vestígios de pobreza,vi muito poucos, comparados com os de qualquer grande cidade brasileira. Sou brasileira, gosto de samba, praia e futebol, amo tanta coisa nesse país, conheço e gosto de cada pedaço da minha cidade, tenho cada vez mais esperança, mas fico pensando – será que não daria para a gente ser um pouquinho mais... normal?

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Intimidade


Lembrei outro dia de uns bichinhos pretos bem pequenos que infestavam a cidade de tempos em tempos, chatos que só, ardia muito quando caíam no olho, e sempre caíam no olho. Eram chamados de lacerdinhas, nunca soube de outro nome para eles. Eram especialmente atraídos pela cor amarela. Nunca mais vi um deles, mas certamente existem, e não só no Rio. Como será que se chamam em outro lugar?
Aqueles bichinhos de praia, bem chatinhos também, que faziam cócegas quando estávamos deitados na areia, e costumavam andar aos pares, eram chamados de “teu pai e tua mãe”, pela velha irreverência carioca.
Conhecer a cidade pelo avesso, a intimidade completa com a língua e as coisas da cidade, acho que nunca conseguimos totalmente fora do lugar em que nascemos ou fomos criados. Deve ser isso que provoca banzo, e a tal palavra saudade que povos de língua portuguesa têm como única a definir um sentimento que não pode ser só dos que falam português. Talvez aí ele seja tão forte pelas levas de homens que se perderam no mar, ou que passaram a vida a navegar, e dos amores que deixavam. E além disso, ou até por causa, por valorizar tanto a estrutura familiar mais do que a da comunidade.
Não sei se é reação a isso, mas sempre me senti naturalmente bem em qualquer lugar debaixo do céu que nos protege, independente da língua falada no local onde me encontro. Se não tivesse tantas amarras, ser nômade seria a minha escolha. O mundo é cheio de descobertas, e é pequeno, os portugueses descobriram isso também. E trocamos a intimidade que temos com as coisas que nos cercam pelas novas que passamos a conhecer. Ao mesmo tempo, novos olhos podem observar melhor do que os já acostumados, esse é o avesso da mesma história.
Eu acho que o mundo pode ser dividido entre os que ficam e os que se jogam. As razões de cada um, no entanto, nem sempre são o impulso e o temperamento, mas as circunstâncias em que nascemos e vivemos.
Pensei isso visitando a exposição sobre Gilberto Freyre, no Museu da Língua Portuguesa. Sempre associei ao seu nome o rótulo de conservador, e essa palavra aqui tem uma conotação mais negativa do que a própria palavra encerra. O peso das palavras também varia de acordo com o local.
Numa das frases destacadas na exposição, ele diz que "de vez em quando sou acusado de saudosista, como se saudade fosse uma coisa vergonhosa".
Mas um escritor que diz:
"Sem um fim social, o saber será a maior das futilidades".
“Eu deixei sempre portas abertas”.
“Tenho muito medo de chegar a ser benquisto por toda a gente ao mesmo tempo”.
E:
“...há que deixar-se espaço para a dúvida e até para o mistério”,
não pode ser uma pessoa fechada em um pensamento estanque ou pequeno, e merece uma leitura melhor do que um rótulo pode encerrar. Merece ser lido de novo, com outros olhos.
foto(clique para ampliar): fundos de casa na Rua Bela Cintra, SP/fev.2008