terça-feira, 9 de junho de 2009

Apetite por Paixão


“Pessoas comuns, no mundo inteiro, usam ditos populares para expressar sua sabedoria. Frequentemente faço uso deles porque encerram grandes verdades universais. Um que ficou muito conhecido, é “Como água para chocolate”. Outro dos meus favoritos é “Amor com amor se paga”. Nada mais verdadeiro. A única medida de valor para o amor é o próprio amor, nem o ouro, nem plumas de quetzal, nem pedras preciosas. O valor do amor está acima de todos os outros, e tudo que vale a pena é realizado com amor.
Desde que foi concebido, Como Água para Chocolate esteve rodeado de amor. Sua gestação começou muito antes da idéia central me ocorrer, começou quando recebi meu primeiro alimento, dado com amor.
Foi com a intenção de dar ao amor transmitido no ato de cozinhar a apreciação que ele merece que escrevi meu primeiro romance. Como Tita em meu livro, estou convencida de que podemos impregnar a comida com emoção, assim como qualquer outra coisa a que nos dediquemos. Quando esta carga afetiva é poderosa, é impossível que passe desapercebida. Os outros podem sentir, podem tocar, podem apreciar. Confirmo isso a cada dia que passa. Escrevi meu romance com amor. Meus agentes, meus editores, meus tradutores, distribuidores sentiram isso, partilharam isso comigo e contagiaram os outros. Este livro é o último elo desta corrente de amor. E estou mais do que satisfeita com o “pagamento”que o meu trabalho tem recebido.
So posso agradecer a todos, presentes e os ausentes, vivos e mortos, que colaboraram com o seu ar, sua terra, seu fogo e sua água para o cozimento deste “apetite por paixão”. Este livro me reconcilia com a crença de que, em se tratando de amor e de cozinha, não existem fronteiras. Cada refeição que eu tive, as pessoas que me acompanharam e a maneira de comer tem determinado quem eu sou. Seguindo este curso, tenho que reconhecer que pelas minhas veias corre uma certa dose de Coca-cola.
Explico: a familia da minha mãe é de Piedras Negras, na fronteira setentrional do México. Para mim, Piedras Negras começava no estado de Coahuila e terminava em San Antonio, Texas. Eram limites bem extensos, pelo menos assim me pareciam. Sendo uma menina, eu não tinha nocão de geografia. Essa idéia de que desta árvore para lá é outro mundo, não me entrava na cabeça. Tudo o que eu sabia era que havia lugares em que eu me sentia em casa. Precisei passar vários anos na escola para aprender que existem coisas como fronteiras e rejeição entre dois povos. A cada ano, minha familia viajava da Cidade do México até San Antonio, no Texas, para visitar parentes. No caminho, sempre parávamos para ver uns amigos em Piedras Negras. Em cada lugar, a magia se repetia: alquimia na cozinha, o ritual da mesa, a poderosa transferência de amor através da comida. A única diferença que havia era que, se em Piedras Negras devorávamos tortillas de farinha, carne desfiada com ovos, e doce de leite com nozes, em San Antonio eu me regalava com roscas cobertas de açúcar e Milky Ways. Por outro lado, como Ariel Dorfman e Armand Matterlart ainda não tinham escrito “Como Ler o Pato Donald”, eu não tinha indigestão lendo as revistinhas de Walt Disney na viagem.
E assim, os anos foram passando e meus conhecimentos de geografia, aumentando. Fiz notáveis avanços. Em pouco tempo entendi que Piedras Negras não chegava até San Antonio. Que uma cidade estava nos Estados Unidos e a outra no México, havia uma fronteira entre elas, e mais, a cultura dos Estados Unidos pouco tinha a ver com a cultura mexicana. Não importava se a cada noite de sábado minha irmã e eu organizávamos festas onde servíamos sanduíches e Coca-colas, dançavamos rock and roll e mascavamos chicletes. Nós tinhamos explicação para tudo: os sanduíches eram uma variação das tortas e as tortas eram mexicanas - ponto final. Nosso gosto por chicletes vinha dos astecas. Muito antes da chegada dos espanhóis, os indios mascavam chapopote. O rock and roll não tinha nada de mal, além do mais, era um fenômeno mundial e Coca-cola...bom, se ela tinha sido criada para fins medicinais, bebê-la só poderia fazer muito bem para nós.
E os anos continuaram passando e meus conhecimentos de geografia, aumentando. Aprendi onde era o Vietnam e que estava dividido em dois. Soube que meu primo em San Antonio tinha sido convocado pelo exército. Foi quando a Coca-cola começou a parecer amarga para mim. Aprendi que ela destrói o esmalte dos dentes e faz mal à saúde. Passamos a chamá-la de “água negra do imperialismo ianque”. Parei de bebê-la, tinha medo que transmitisse o horror da guerra. Felizmente, os hippies apareceram no meu mapa geográfico. Aprendi onde ficava a Universidade da Califórnia em Berkeley e o que estava acontecendo lá. No México, nós jovens, também fomos para as ruas distribuindo flores, ouvindo Joan Baez, rindo e celebrando o amor livre e pensando que o nascimento do “Novo Homem” era possível. Nós acreditávamos que podíamos mudar o mundo, mas não mudamos. Passei muito tempo me perguntando qual teria sido o erro.
Por que foi que nenhuma das revoluções em que tomamos parte conseguiu favorecer o surgimento desse novo Novo Homem? Para onde teriam ido todos os hippies? Joan Baez ainda continuava cantando? Onde estavam os filhos de Woodstock?
O sucesso do meu romance me deu as respostas. Por causa dele eu viajei pelas Américas e concluí que não era a única pessoa preocupada em estabelecer uma nova relação com a terra, com o universo, com o sagrado. Muitas outras pessoas tinham descoberto que a nova revolução iria germinar nos corações, nos ritos, nas cerimônias. Muitas pessoas estavam tentando desesperadamente substituir os valores materiais pelos espirituais. Muitos mantiveram o poder de fogo em suas almas.
Não existem fronteiras! É mentira que uma linha divisória possa separar um povo de outro povo. É mentira dizer que os hippies cantaram em vão - eles deixaram a semente. É mentira que os norte-americanos não comem chili e feijão - eles adoram. É mentira que nós mexicanos não comemos hamburgers - nós comemos com gosto, só adicionamos um pouquinho de pimenta.
Agora eu sei que a esperança ainda existe, que o Novo Homem está a caminho, vai ser uma pessoa completamente ignorante em geografia, não vai se importar em saber de que lado da linha está o chão que ele pisa, vai ter tanto prazer comendo uma tortilla quanto bebendo uma Coca-cola, porque vai saber que não é o que está ingerindo que importa, mas sim que está participando de uma cerimônia que o remeterá à sua origem cósmica, que vai muito além do étnico. Porque se considerarmos as origens, nós mexicanos somos filhos do milho, e os norte-americanos têm comido pipoca o suficiente para serem considerados nossos parentes."

Este prefácio (abreviado aqui) foi escrito por Laura Esquivel para o livro Apetite por Paixão, traduzido por mim do inglês para o português e editado pela L&PM Editores em 1995.

3 comentários:

Selma Boiron disse...

Não conhecia seu côté tradutora. Hmm, très chic! Vou procurar o livro e lê-lo com gosto:D Feliz Dia de Hoje pra vc! Mtos carinhos, mto amor e chocolate rsrs

vanda viveiros de castro disse...

Pois é Selma, fui tradutora quando morava fora, e ainda pretendo ser, mesmo não sendo remunerado e valorizado como deveria, é um bom ganha-pão e um excelente exercício para escrever. E usando o meu côté tradutora, diria que o Dia dos Namorados é very tricky, muito complicado, como qualquer comemoração com tema e data...
mas o chocolate não precisa de data como desculpa, convive muito bem com um suco verde pra lá de saudável que eu faço toda manhã.
E os mesmos votos para você, com o mesmo carinho!

Anônimo disse...

Olá, eu tenho o livro apetite por paixão e fui comparar a sua tradução com a do livro, foi você mesmo que fez a tradução? Pois as palavras estão iguaizinhas a de Vanda Viveiros de Castro, a qual é tradutora do livro de John Willoughby.