Escrevo para esse blog sem método, tempo, hora ou local determinados. Tenho pilhas de pequenos papéis com idéias anotadas ao lado do computador, dentro da bolsa, de notas feitas nos engarrafamentos, na sala de espera do acupunturista, nas mais variadas mesas de refeição, em casa (não sei explicar, mas elas nunca ocorreram no trabalho), nas padarias, nas pizzarias do Zona Sul, onde muitas vezes almoço sozinha e satisfeita. Gosto muito de companhia, mas gosto igualmente de caminhar e almoçar sozinha, o que não caracteriza nenhum comportamento antisocial, apenas são horas muito boas para pensar.
Isso não significa excesso de inspiração ou de talento. Embora as idéias sejam contínuas e abundantes, várias acabam no lixo.
Significa mesmo que o prazer e a vontade de escrever é inversamente proporcional ao tempo que tenho disponível. Enquanto organizo minha pilha, publico aqui outra entrevista feita pelo Paulo Francis, que consegui achar no meu computador, o que pode ser considerado uma façanha ainda maior do que arrumar os meus papéis.
A entrevista é com Norman Mailer. Foi feita pelo Francis para a Globonews, apenas tirada do gravador e traduzida por mim, em 1996.
Não tenho direitos sobre ela, e se alguém se incomodar em vê-la reproduzida aqui, é só avisar, retiro imediatamente. Mas o Francis também é cultura, especialmente antes de virar o personagem que encarnou na TV, e é uma pena que a entrevista fique guardada. Tive o maior prazer em reler (no entanto, queria lembrar que voltarei a escrever…)
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Paulo Francis - Estamos na casa de Norman Mailer em Brooklyn Heights, Nova York. Norman Mailer é o escritor sério mais famoso dos Estados Unidos. Produziu ficção e não ficção, como veremos nesta entrevista.
PF - Sr. Mailer, neste livro “Lee Oswald, um Mistério Americano”, você junta dois dos seus grandes interesses, a figura do Pres. Kennedy e a figura do assassino, Lee Harvey Oswald. Você concorda com isto?
NM - Eu acho que minha ênfase foi muito mais em Oswald do que em Kennedy. Aqui, Kennedy aparece de passagem. Falando do assassinato, eu cheguei à conclusão que não podia concluir definitivamente que ele era o assassino. Depois de um ano e meio escrevendo e pensando sobre isto, conclui que ele tinha o caráter para ser o assassino, mas não quer dizer que foi. Três-quartos da minha mente acreditam que ele foi. Se você quiser, podemos falar como se ele fosse, deixando claro que posso estar errado.
PF - Você fez dele um personagem interessante, e ele na verdade não é, é um homem medíocre. Examinando bem, você criou um personagem de ficção.Talvez Dimitri Karamazov também não fosse interessante, embora tenha assassinado o pai...
NM – Bom, afinal de contas, Flaubert escreveu “Un Coeur Simple” e fez um camponês comum ficar interessante. Ele acreditava que cabia ao escritor transformar uma pessoa sem graça numa pessoa interessante. Eu não acredito quando falam que o Oswald era desinteressante. Só na superfície. Por dentro era extraordinário. Apaixonado, louco, ele se via como uma pessoa mentalmente importante, isto foi uma descoberta: ele se via como uma pessoa mentalmente importante.
PF - Dizem que ele teria que ser um bom atirador, seria uma qualidade dele, mas você discorda. Você diz que não seria preciso ser um bom atirador.
NM –Ele era um atirador bastante bom no Corpo de Fuzileiros Navais. Acima da média. Não era excepcional com o rifle, mas era bom. Examinei a cena, e me parece que exageraram muito a dificuldade do tiro. Não era tão difícil assim.
PF - Era uma situação tensa...
NM - Nove entre dez pessoas falham em situação tensa, o décimo acerta. Outro ponto importante é que pensamos num atirador como excelente ou medíocre. Mas pense num esporte, uma estrela do basquete pode não fazer nada em um jogo e em outro ser magnífico. Há uma história famosa de Oswald errando um coelho a três metros de distância. Julgando por isso, decidiram que ele era péssimo atirador. Provavelmente estava muito nervoso, cercado de soviéticos, muito desconfortável. Ele era muito desigual, em tudo o que fez. Mas o melhor de nós e o pior de nós são duas pessoas diferentes.
PF - E ele era disléxico também, não?
NM - Sim, se você ler o que ele escreveu como forma de dislexia, ele era terrível, iletrado, era estúpido. Se você traduz para bom inglês, o que não é difícil, o inglês dele não era tão ruim, ele seria um bom escritor. Não um grande escritor, mas bom.Pensando assim, eu acho que ele era capaz de atirar bem ocasionalmente.Como um jogador de basquete acertando ocasionalmente. Um jogador medíocre.
PF - Você, como muitos escritores, tem interesse pela mente criminosa.
Tem um livro maravilhoso seu, “The Executioner’s Song”, sobre Gary Gilmore, que foi executado, e seu romance, “An American Dream” é sobre um assassinato. Portanto, você realmente tem interesse pelo assunto...
NM –Warren Beatty fez o papel de “Bugsy” Siegel, que era um criminoso brutal. Para provocá-lo, eu disse que ele foi muito convincente. Ele sorriu e disse que um bom ator só precisa de cinco por cento seus para criar o papel. Você tem sorte quando tem mais de cinco por cento. E o que ele disse vale para escritores. Os meus cinco por cento provavelmente são criminosos. E só o que eu preciso para escrever sobre criminosos. Sem estes cinco por cento eu não poderia escrever. Mas existe uma crença que o escritor ou a escritora escrevem sobre si mesmos. Isto não é verdade. Se temos um dom, é o de usar a experiência de outro e deixar a imaginação fluir através dela, criando personagens diferentes de nós, exceto pelos cinco por cento de ligação.
PF - Sou um velho leitor seu. Lembro de um tempo em que defendia uma vida de liberdade sensorial, como no ensaio “The White Negro”, e em livros famosos que todo mundo leu. Ao mesmo tempo é um pai de familia com seis ou sete filhos...
NM - Nove.
PF - Nove!? Eu não sabia. Você levou uma vida boêmia, mas é um escritor sério, que produziu quase 30 livros, até onde eu sei. Isto é parte do processo do escritor para desenvolver a sensibilidade? Como você define isto?
NM - Isto seria se eu tivesse sentado a 45, 50 anos atrás e traçado um plano de ação.Não foi assim. As coisas acontecem. Tenho nove filhos porque fui casado seis vezes.
PF - Sim, eu sei.
NM - Cada casamento é uma cultura.As pessoas acham que se você se casa seis vezes não passa muito tempo com suas mulheres, mas de fato, só um desses casamentos foi curto, dois anos, os outros duraram sete, nove anos. Um casamento é uma cultura, e você muda vivendo uma cultura. O que me atraiu para Picasso é que seu estilo mudava com as suas mulheres. Se ele teve sete amantes importantes, tem sete estilos diferentes. Isto é verdade, uma mulher é uma cultura. Se você vive com uma mulher a sério, tem filhos e se divorcia, você passa por uma cultura. Se você passa sete anos na França, quando voltar não vai dizer: detestei a França. Vai dizer: a França e eu discordamos em muitas coisas, mas aprendi muito. O que quero dizer é que o seu estilo muda. E uma das coisas que entendi sobre Picasso é que sou muito mais como ele do que como escritores que admiro como Hemingway, Faulkner ou Melville. Eles tinham um estilo único, constante.
PF - Você escreveu um livro sobre o Egito antigo, nos anos 80. Antes seu estilo era caracterizado como espontâneo embora fosse muito trabalhado. Mas, a partir de “Ancient Evenings” você desenvolveu um estilo mais formal. Teve alguma coisa a ver com uma mudança em sua vida, suas perspectivas, ou o quê?
NM - Eu trabalhei em “Ancient Evenings” por onze anos. Do inicio da década de 70, até 81, 82. Em 1973, eu tinha 50 anos e resolvi começar a me organizar, escrever usando tudo o que eu sabia, em vez de ficar a mercê dos fatos. Tentar ser sério de uma outra maneira. Eu costumava adorar a idéia de escrever motivado pelos acontecimentos e resolvi mudar, ter mais controle sobre o que eu escrevesse. “Ancient Evenings” foi a tentativa de escrever um romance formal, num nível mais alto. Um fato interessante foi que, de 1978 a 80, desisti do livro, por dois anos, porque eu estava escrevendo “The Executioner’s Song”, que tinha um estilo totalmente diferente. Foi quando percebi que podia escrever em vários estilos.Novamente me ocorreu a imagem de Picasso. Picasso pintava em vários estilos, usando sempre o que fosse melhor para o que ele queria dizer. Pensei comigo: posso fazer a mesma coisa sem ter que me desculpar. Se quero mudar de estilo, mudo de estilo. “Ancient Evenings” é um livro muito formal, cheio do peso do antigo Egito, que era uma cultura pesada. E “The Executioner’s Song” tinha um estilo simples, simples como as pessoas em Utah...
PF - É um livro maravilhoso e muito mais popular do que “Ancient Evenings”. Mas você acha que em “Ancient Evenings”conseguiu dizer melhor o que pretendia?
NM - Não é o que você quer dizer, é o que surge. Você nunca sabe o que quer dizer até que você escreve.
PF - Deixe-me perguntar sobre “o grande romance americano”. Vi você numa entrevista na televisão dizendo ter desistido do livro. Você não acha que é o escritor certo para escrever este livro, ou talvez já tenha escrito e nós não percebemos. Quando li “The Executioner’s Song”, tive o mesmo sentimento que Joan Didion, na crítica do New York Times, de que não só você escreveu maravilhosamente sobre o ocidente, mas que escreveu também grandes romances. Talvez seja difícil para nós percebermos isto, porque somos seus contemporâneos. Você não acha que já escreveu ou talvez ainda vá escrever?
NM - Não se sabe. Talvez eu tenha feito um grande trabalho, que será lido por muito tempo, ou talvez eu seja apenas uma nota de pé de página daqui a cinquenta anos. E você não deve pensar nisso enquanto está trabalhando, porque duas coisas podem acontecer, ou você fica muito vaidoso e isto não é bom para o trabalho...
PF - Você não costuma ser tão modesto. Na verdade, você mudou a maneira das pessoas pensarem sobre muitas coisas. Minha geração, que não está muito longe da sua, aprendeu muito lendo seus livros.
NM -) Eu não estou sendo modesto. Acho que os livros são bons, eu só não sei se eles vão sobreviver. Talvez o romance sério não tenha nenhuma função no século 21.
PF - As pessoas continuam tentando, Phillip Roth, Updike, não sei sua opinião sobre ele...
NM - É muito boa...
PF - As pessoas continuam escrevendo bons romances, apesar do cinema, da televisão, dos computadores e tudo mais...
NM - Mas não somos mais importantes. É extraordinário. Há três, quatro anos atrás, quando “Harlot’s Ghost” foi lançado, eu achava que era um livro que interessaria muita gente, porque tratava da CIA. Mas o livro não foi bem. Nenhum livro foi bem naquele ano (1991). A única escritora que foi bem foi Nadine Gordimer. Ela tem a extraordinária vantagem dupla de ser uma mulher e ser negra, e ser totalmente polìticamente correta.
PF - Ela ganhou o Premio Nobel.
NM - Sim, mas nenhum escritor é mais polìticamente correto do que ela. Ela é, claro, muito talentosa. Mas hoje é como se o critério para o sucesso de um livro não dependesse mais do livro, e sim se o autor é polìticamente correto, está na moda, etc. E finalmente o computador, eu acho, desvirtua a noção de se sentar por algumas horas com um livro no seu colo. Agora você olha para uma tela iluminada, é tão diferente. Voltando para McLuhan, o meio é a mensagem. O computador não é o meio para a literatura.
PF - Em “The Prisoner of Sex” você não diz boas coisas sobre tecnologia. Você não acha que é um pouco “luddite”?
NM – Ah, eu sou um “luddite”, eu não gosto de máquinas. Particularmente máquinas eletrônicas.
PF - Lembro que você disse que quando come uma coxa de galinha não joga o osso no mar, porque o lugar certo para ossos é a terra. Você dá muita importancia a este tipo de coisa.
NM - Detesto me colocar como ambientalista porque isto significa ser polìticamente correto. Acho que talvez estejamos nos destruindo, como uma cultura, como uma criação, o ser humano pode terminar se envenenando a ponto de deixarmos de existir. Talvez esteja completamente errado. Talvez tenhamos uma civilização maravilhosa daqui a uns anos. Mas não tenho esta certeza. Não acredito que estamos caminhando para um mundo decente.
PF - Estes livros exigem muita inteligência, muita pesquisa, muita análise. Mas tem uma coisa que me deixa muito curioso a seu respeito. Você parece com uma mulher que você admira muito, Jacqueline Kennedy, de quem ouvimos muito mas sabemos pouco.
NM - Graças a Deus.
PF - Você nunca fala das suas relações com sua mãe, com seu pai...Você não acha que nos deve uma autobiografia?
NM - Não, só devo aos leitores divertimento bastante para justificar o preço do livro.
PF - Claro, eu digo deve, no sentido em que deve a você mesmo.
NM - Nunca escrevi sobre coisas pessoais porque, como já disse antes, acho que as experiências que temos na vida se cristalizam na nossa psique . São tão concentradas, tão perfeitas em sua beleza ou sua feiúra, ou complexidade, que se tornam cristais. E se você mantém estes cristais intactos, e filtra através deles sua imaginação, se você tem alguma, você pode criar inúmeros personagens, é como Warren Beatty e seus cinco por cento. Com um aspecto meu, ou de minha mãe ou de uma das minhas mulheres, posso criar centenas de pessoas, usando estes cristais e não escrevendo sobre eles. Então, eu nunca escrevi sobre minhas mulheres, meus filhos, nem sobre mim, diretamente.
PF - Sei que Freud está fora de moda, mas é muito importante seu relacionamento com seus pais, sua mãe, eu sei que sua mãe é uma grande fã sua. Nós ouvimos dela, mas não ouvimos de você. Gostaria de ouvir de você...
NM - Não, eu não quero, meus editores querem que eu escreva a minha autobiografia, porque acham que vai vender bem.
PF - Todo mundo lerá. Até as pessoas que não gostam de você.
NM - Se eu escrever, será o meu fim como escritor. Porque aí então terei que usar todos os cristais. E não quero parar de escrever tão cedo.
PF - No Brasil, eu acho que você vai gostar de saber disto, você é de longe o mais famoso escritor americano sério. Não sei sobre os escritores fáceis, mas entre os sérios, você está entre os mais famosos no mundo.
NM - Bom, se você pôde ver, meus olhos cintilaram quando você disse isto (gargalhadas).
PF - Bom, quero agradecer-lhe muito, foi muito agradável. Espero ouvir mais notícias suas. Última pergunta: você está escrevendo um romance, outra ficção, ou um estudo histórico...?
NM - Estou trabalhando em um romance, mas não posso falar dele agora. Mas acabei de escrever um romance curto, será lançado no próximo ano. Mas o que eu quero mesmo fazer é a segunda parte de “Harlot’s Ghost”.
PF - Seu estudo sobre espionagem.
NM - Sim, porque eu prometi. Se depois de ler mil e duzentas páginas, o leitor encontra um “a seguir” na última página, isto é uma promessa, que não quero morrer sem cumprir. É o proximo livro que eu quero fazer.
PF - Agradeço muito pela entrevista. Tenho certeza que vai aumentar o interesse pelos seus livros muito mais do que já existe. Você já é muito famoso no Brasil.
NM - Bom, um médico não é melhor do que o seu paciente, e o romancista não é melhor do que seu entrevistador. Portanto, obrigado, Paulo Francis.
PF - OK, obrigado, bye, bye.