sábado, 29 de dezembro de 2007

Novo, velho, velho, novo, novo, velho, novo de novo...


Todo finalzinho de ano, lá vem ela, a tal esperança de renovação.
Recomeçar sempre. Deixar os problemas para trás e enfrentar novos desafios parece mais fácil e revigorante do que renovar o que não é novo, mas eu desconfio que chega uma hora que até novidade, quando é muita, se repete e cansa...mas o momento não é, definitivamente, de cansaço, portanto, xô cansaço!!
Existe por aqui um deslumbramento com o novo, seriam traços de país ligeiro e inculto um pouco além das medidas ? O espírito que aqui reina não parece voltado para a permanência e a duração, é muito mais freqüente a decisão de rebatizar e mudar a fachada, botando um par de vasos diferentes na frente se alguma coisa não estiver a contento, do que pacientemente procurar desacertos e corrigir rumos, talvez porque isso implique em ir ao cerne das questões. Sendo assim, Ano Novo faz sempre muito sucesso.
Raro é o ano em que não recebo de alguém esse trecho de poema do Drummond, que tem, no entanto, a felicidade de não gastar nunca:

"Para ganhar um Ano Novo, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo; eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre".

Pode não ser fácil, mas tentar sempre vale, e o mundo conspira a favor, muda tudo o tempo todo, quanto mais a gente vive, mais sente as mudanças...
Outro dia achei uma foto minha com as torres gêmeas do World Trade Center ao fundo e pensei que esse cenário não existe mais. Estava no Japão quando elas foram abaixo e só sei que o mundo mudou muito a partir daquele momento. Resolvi guardar o que tenho com referência ao WTC, que não é muito, e não é mesmo nada para quem tem mania de guardar, numa caixa ou no peito, o que interessa e gosta, sejam lembranças ou um cardápio do Windows on the World, o restaurante do andar 107 de uma das torres.
E aí reparei que a camiseta que eu estou usando para dormir, a preferida, porque com o tempo foi ficando cada vez mais leve e macia, foi comprada na Orchard Street, a rua de comércio judeu na Nova York de outros tempos. É daquelas camisetas com desenhos de pontos turísticos de uma cidade, hoje é lugar comum, mas a primeira que eu vi e comprei era novaiorquina. Tem o Empire State Building, duas dançarinas da Broadway, uma maçã, três árvores do Central Park, o táxi checker/amarelo, uma shopping bag, a Brooklyn Bridge, a Estátua da Liberdade...e não tem o World Trade Center ainda.
Ele não existe mais, e minha camiseta resiste sem um furinho. Vou guardá-la. Não sei o que vai ser da minha decisão de me livrar de muito do que guardo, mas vou acolher bem o Ano Novo, com as esperanças de sempre, com as novidades que ele trouxer. A questão não é ser velho ou novo (não estou advogando em causa própria!)
É ser bom, e merecer ser mantido, guardado, lembrado.


Feliz Ano Novo!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Estranhas formas de vida


- Ela era uma piranha.
- Ela era um ser humano. E permita-me lembrá-la que mesmo o mais indigno dos seres humanos tem o direito de viver, e de tentar ser feliz.
-Pelo que eu soube, ela tentava isso em todas as direções.
Leo G. Carroll e Patricia Hitchcock, Strangers on a Train

-Os laços do matrimônio podem pesar demais em uma alma.
Advogado de divórcio, Born to Kill

-Lar é onde você vai e eles tem que te deixar entrar.
George Sanders, Uncle Harry

-Lar é onde você vai quando fica sem lugar para ir.
Bárbara Stanwyck, Clash by Night

- Se eu tivesse alguma sensatez, fugiria de você.
-Você não tem nenhuma sensatez.
Joan Bennett e Dan Duryea, Scarlet Streeet

- Você acredita em amor à primeira vista?
-Economiza um bocado de tempo.
Ann Sheridan e George Raft, They Drive by Night

- Sabe, minha mãe sempre me disse que se você procurar direito, vai sempre achar alguma coisa boa em qualquer pessoa, mas eu não tenho certeza com relação a você.
-Com todo o respeito pela sua mãe, esse é o segundo erro que ela comete.
Richard Widmark e Paul Douglas, Panic in the Streets

- Eu vim para Casablanca pelas águas.
- Mas estamos no meio do deserto.
- Eu estava mal informado.
Humphrey Bogart e Claude Rains, Casablanca.

- Há uma verdadeira mania, atualmente, de querer classificar todo tipo de relacionamento, as páginas internas dos periódicos estão cheias de enquetes e testes. O que acontece se o seu companheiro é mais jovem que você? A sua personalidade é dominadora ou submissa? Pervertidos ou castos? Para descobrir, é só marcar com uma cruz aqui e ali, e pronto!
(...)
- Muitas vezes, através do pensamento, viajamos como os carros numa rodovia, docilmente guiados pelos sinais e avisos de desvios, limitamo-nos a avançar por inércia, sem ver coisa alguma. Da mesma forma, os testes e as enquetes nunca incluem a existência de um sentimento inútil e puro tal como um gesto de carinho.
Susanna Tamaro, A Grande Casa Branca. Rocco/2007

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Ler e escrever


Escrevo para esse blog sem método, tempo, hora ou local determinados. Tenho pilhas de pequenos papéis com idéias anotadas ao lado do computador, dentro da bolsa, de notas feitas nos engarrafamentos, na sala de espera do acupunturista, nas mais variadas mesas de refeição, em casa (não sei explicar, mas elas nunca ocorreram no trabalho), nas padarias, nas pizzarias do Zona Sul, onde muitas vezes almoço sozinha e satisfeita. Gosto muito de companhia, mas gosto igualmente de caminhar e almoçar sozinha, o que não caracteriza nenhum comportamento antisocial, apenas são horas muito boas para pensar.
Isso não significa excesso de inspiração ou de talento. Embora as idéias sejam contínuas e abundantes, várias acabam no lixo.
Significa mesmo que o prazer e a vontade de escrever é inversamente proporcional ao tempo que tenho disponível. Enquanto organizo minha pilha, publico aqui outra entrevista feita pelo Paulo Francis, que consegui achar no meu computador, o que pode ser considerado uma façanha ainda maior do que arrumar os meus papéis.
A entrevista é com Norman Mailer. Foi feita pelo Francis para a Globonews, apenas tirada do gravador e traduzida por mim, em 1996.
Não tenho direitos sobre ela, e se alguém se incomodar em vê-la reproduzida aqui, é só avisar, retiro imediatamente. Mas o Francis também é cultura, especialmente antes de virar o personagem que encarnou na TV, e é uma pena que a entrevista fique guardada. Tive o maior prazer em reler (no entanto, queria lembrar que voltarei a escrever…)
-
Paulo Francis - Estamos na casa de Norman Mailer em Brooklyn Heights, Nova York. Norman Mailer é o escritor sério mais famoso dos Estados Unidos. Produziu ficção e não ficção, como veremos nesta entrevista.

PF - Sr. Mailer, neste livro “Lee Oswald, um Mistério Americano”, você junta dois dos seus grandes interesses, a figura do Pres. Kennedy e a figura do assassino, Lee Harvey Oswald. Você concorda com isto?

NM - Eu acho que minha ênfase foi muito mais em Oswald do que em Kennedy. Aqui, Kennedy aparece de passagem. Falando do assassinato, eu cheguei à conclusão que não podia concluir definitivamente que ele era o assassino. Depois de um ano e meio escrevendo e pensando sobre isto, conclui que ele tinha o caráter para ser o assassino, mas não quer dizer que foi. Três-quartos da minha mente acreditam que ele foi. Se você quiser, podemos falar como se ele fosse, deixando claro que posso estar errado.

PF - Você fez dele um personagem interessante, e ele na verdade não é, é um homem medíocre. Examinando bem, você criou um personagem de ficção.Talvez Dimitri Karamazov também não fosse interessante, embora tenha assassinado o pai...

NM – Bom, afinal de contas, Flaubert escreveu “Un Coeur Simple” e fez um camponês comum ficar interessante. Ele acreditava que cabia ao escritor transformar uma pessoa sem graça numa pessoa interessante. Eu não acredito quando falam que o Oswald era desinteressante. Só na superfície. Por dentro era extraordinário. Apaixonado, louco, ele se via como uma pessoa mentalmente importante, isto foi uma descoberta: ele se via como uma pessoa mentalmente importante.

PF - Dizem que ele teria que ser um bom atirador, seria uma qualidade dele, mas você discorda. Você diz que não seria preciso ser um bom atirador.

NM –Ele era um atirador bastante bom no Corpo de Fuzileiros Navais. Acima da média. Não era excepcional com o rifle, mas era bom. Examinei a cena, e me parece que exageraram muito a dificuldade do tiro. Não era tão difícil assim.

PF - Era uma situação tensa...

NM - Nove entre dez pessoas falham em situação tensa, o décimo acerta. Outro ponto importante é que pensamos num atirador como excelente ou medíocre. Mas pense num esporte, uma estrela do basquete pode não fazer nada em um jogo e em outro ser magnífico. Há uma história famosa de Oswald errando um coelho a três metros de distância. Julgando por isso, decidiram que ele era péssimo atirador. Provavelmente estava muito nervoso, cercado de soviéticos, muito desconfortável. Ele era muito desigual, em tudo o que fez. Mas o melhor de nós e o pior de nós são duas pessoas diferentes.

PF - E ele era disléxico também, não?

NM - Sim, se você ler o que ele escreveu como forma de dislexia, ele era terrível, iletrado, era estúpido. Se você traduz para bom inglês, o que não é difícil, o inglês dele não era tão ruim, ele seria um bom escritor. Não um grande escritor, mas bom.Pensando assim, eu acho que ele era capaz de atirar bem ocasionalmente.Como um jogador de basquete acertando ocasionalmente. Um jogador medíocre.

PF - Você, como muitos escritores, tem interesse pela mente criminosa.
Tem um livro maravilhoso seu, “The Executioner’s Song”, sobre Gary Gilmore, que foi executado, e seu romance, “An American Dream” é sobre um assassinato. Portanto, você realmente tem interesse pelo assunto...

NM –Warren Beatty fez o papel de “Bugsy” Siegel, que era um criminoso brutal. Para provocá-lo, eu disse que ele foi muito convincente. Ele sorriu e disse que um bom ator só precisa de cinco por cento seus para criar o papel. Você tem sorte quando tem mais de cinco por cento. E o que ele disse vale para escritores. Os meus cinco por cento provavelmente são criminosos. E só o que eu preciso para escrever sobre criminosos. Sem estes cinco por cento eu não poderia escrever. Mas existe uma crença que o escritor ou a escritora escrevem sobre si mesmos. Isto não é verdade. Se temos um dom, é o de usar a experiência de outro e deixar a imaginação fluir através dela, criando personagens diferentes de nós, exceto pelos cinco por cento de ligação.

PF - Sou um velho leitor seu. Lembro de um tempo em que defendia uma vida de liberdade sensorial, como no ensaio “The White Negro”, e em livros famosos que todo mundo leu. Ao mesmo tempo é um pai de familia com seis ou sete filhos...

NM - Nove.

PF - Nove!? Eu não sabia. Você levou uma vida boêmia, mas é um escritor sério, que produziu quase 30 livros, até onde eu sei. Isto é parte do processo do escritor para desenvolver a sensibilidade? Como você define isto?

NM - Isto seria se eu tivesse sentado a 45, 50 anos atrás e traçado um plano de ação.Não foi assim. As coisas acontecem. Tenho nove filhos porque fui casado seis vezes.

PF - Sim, eu sei.

NM - Cada casamento é uma cultura.As pessoas acham que se você se casa seis vezes não passa muito tempo com suas mulheres, mas de fato, só um desses casamentos foi curto, dois anos, os outros duraram sete, nove anos. Um casamento é uma cultura, e você muda vivendo uma cultura. O que me atraiu para Picasso é que seu estilo mudava com as suas mulheres. Se ele teve sete amantes importantes, tem sete estilos diferentes. Isto é verdade, uma mulher é uma cultura. Se você vive com uma mulher a sério, tem filhos e se divorcia, você passa por uma cultura. Se você passa sete anos na França, quando voltar não vai dizer: detestei a França. Vai dizer: a França e eu discordamos em muitas coisas, mas aprendi muito. O que quero dizer é que o seu estilo muda. E uma das coisas que entendi sobre Picasso é que sou muito mais como ele do que como escritores que admiro como Hemingway, Faulkner ou Melville. Eles tinham um estilo único, constante.

PF - Você escreveu um livro sobre o Egito antigo, nos anos 80. Antes seu estilo era caracterizado como espontâneo embora fosse muito trabalhado. Mas, a partir de “Ancient Evenings” você desenvolveu um estilo mais formal. Teve alguma coisa a ver com uma mudança em sua vida, suas perspectivas, ou o quê?

NM - Eu trabalhei em “Ancient Evenings” por onze anos. Do inicio da década de 70, até 81, 82. Em 1973, eu tinha 50 anos e resolvi começar a me organizar, escrever usando tudo o que eu sabia, em vez de ficar a mercê dos fatos. Tentar ser sério de uma outra maneira. Eu costumava adorar a idéia de escrever motivado pelos acontecimentos e resolvi mudar, ter mais controle sobre o que eu escrevesse. “Ancient Evenings” foi a tentativa de escrever um romance formal, num nível mais alto. Um fato interessante foi que, de 1978 a 80, desisti do livro, por dois anos, porque eu estava escrevendo “The Executioner’s Song”, que tinha um estilo totalmente diferente. Foi quando percebi que podia escrever em vários estilos.Novamente me ocorreu a imagem de Picasso. Picasso pintava em vários estilos, usando sempre o que fosse melhor para o que ele queria dizer. Pensei comigo: posso fazer a mesma coisa sem ter que me desculpar. Se quero mudar de estilo, mudo de estilo. “Ancient Evenings” é um livro muito formal, cheio do peso do antigo Egito, que era uma cultura pesada. E “The Executioner’s Song” tinha um estilo simples, simples como as pessoas em Utah...

PF - É um livro maravilhoso e muito mais popular do que “Ancient Evenings”. Mas você acha que em “Ancient Evenings”conseguiu dizer melhor o que pretendia?

NM - Não é o que você quer dizer, é o que surge. Você nunca sabe o que quer dizer até que você escreve.

PF - Deixe-me perguntar sobre “o grande romance americano”. Vi você numa entrevista na televisão dizendo ter desistido do livro. Você não acha que é o escritor certo para escrever este livro, ou talvez já tenha escrito e nós não percebemos. Quando li “The Executioner’s Song”, tive o mesmo sentimento que Joan Didion, na crítica do New York Times, de que não só você escreveu maravilhosamente sobre o ocidente, mas que escreveu também grandes romances. Talvez seja difícil para nós percebermos isto, porque somos seus contemporâneos. Você não acha que já escreveu ou talvez ainda vá escrever?

NM - Não se sabe. Talvez eu tenha feito um grande trabalho, que será lido por muito tempo, ou talvez eu seja apenas uma nota de pé de página daqui a cinquenta anos. E você não deve pensar nisso enquanto está trabalhando, porque duas coisas podem acontecer, ou você fica muito vaidoso e isto não é bom para o trabalho...

PF - Você não costuma ser tão modesto. Na verdade, você mudou a maneira das pessoas pensarem sobre muitas coisas. Minha geração, que não está muito longe da sua, aprendeu muito lendo seus livros.

NM -) Eu não estou sendo modesto. Acho que os livros são bons, eu só não sei se eles vão sobreviver. Talvez o romance sério não tenha nenhuma função no século 21.

PF - As pessoas continuam tentando, Phillip Roth, Updike, não sei sua opinião sobre ele...

NM - É muito boa...

PF - As pessoas continuam escrevendo bons romances, apesar do cinema, da televisão, dos computadores e tudo mais...

NM - Mas não somos mais importantes. É extraordinário. Há três, quatro anos atrás, quando “Harlot’s Ghost” foi lançado, eu achava que era um livro que interessaria muita gente, porque tratava da CIA. Mas o livro não foi bem. Nenhum livro foi bem naquele ano (1991). A única escritora que foi bem foi Nadine Gordimer. Ela tem a extraordinária vantagem dupla de ser uma mulher e ser negra, e ser totalmente polìticamente correta.

PF - Ela ganhou o Premio Nobel.

NM - Sim, mas nenhum escritor é mais polìticamente correto do que ela. Ela é, claro, muito talentosa. Mas hoje é como se o critério para o sucesso de um livro não dependesse mais do livro, e sim se o autor é polìticamente correto, está na moda, etc. E finalmente o computador, eu acho, desvirtua a noção de se sentar por algumas horas com um livro no seu colo. Agora você olha para uma tela iluminada, é tão diferente. Voltando para McLuhan, o meio é a mensagem. O computador não é o meio para a literatura.

PF - Em “The Prisoner of Sex” você não diz boas coisas sobre tecnologia. Você não acha que é um pouco “luddite”?

NM – Ah, eu sou um “luddite”, eu não gosto de máquinas. Particularmente máquinas eletrônicas.

PF - Lembro que você disse que quando come uma coxa de galinha não joga o osso no mar, porque o lugar certo para ossos é a terra. Você dá muita importancia a este tipo de coisa.

NM - Detesto me colocar como ambientalista porque isto significa ser polìticamente correto. Acho que talvez estejamos nos destruindo, como uma cultura, como uma criação, o ser humano pode terminar se envenenando a ponto de deixarmos de existir. Talvez esteja completamente errado. Talvez tenhamos uma civilização maravilhosa daqui a uns anos. Mas não tenho esta certeza. Não acredito que estamos caminhando para um mundo decente.

PF - Estes livros exigem muita inteligência, muita pesquisa, muita análise. Mas tem uma coisa que me deixa muito curioso a seu respeito. Você parece com uma mulher que você admira muito, Jacqueline Kennedy, de quem ouvimos muito mas sabemos pouco.

NM - Graças a Deus.

PF - Você nunca fala das suas relações com sua mãe, com seu pai...Você não acha que nos deve uma autobiografia?

NM - Não, só devo aos leitores divertimento bastante para justificar o preço do livro.

PF - Claro, eu digo deve, no sentido em que deve a você mesmo.

NM - Nunca escrevi sobre coisas pessoais porque, como já disse antes, acho que as experiências que temos na vida se cristalizam na nossa psique . São tão concentradas, tão perfeitas em sua beleza ou sua feiúra, ou complexidade, que se tornam cristais. E se você mantém estes cristais intactos, e filtra através deles sua imaginação, se você tem alguma, você pode criar inúmeros personagens, é como Warren Beatty e seus cinco por cento. Com um aspecto meu, ou de minha mãe ou de uma das minhas mulheres, posso criar centenas de pessoas, usando estes cristais e não escrevendo sobre eles. Então, eu nunca escrevi sobre minhas mulheres, meus filhos, nem sobre mim, diretamente.

PF - Sei que Freud está fora de moda, mas é muito importante seu relacionamento com seus pais, sua mãe, eu sei que sua mãe é uma grande fã sua. Nós ouvimos dela, mas não ouvimos de você. Gostaria de ouvir de você...

NM - Não, eu não quero, meus editores querem que eu escreva a minha autobiografia, porque acham que vai vender bem.

PF - Todo mundo lerá. Até as pessoas que não gostam de você.

NM - Se eu escrever, será o meu fim como escritor. Porque aí então terei que usar todos os cristais. E não quero parar de escrever tão cedo.

PF - No Brasil, eu acho que você vai gostar de saber disto, você é de longe o mais famoso escritor americano sério. Não sei sobre os escritores fáceis, mas entre os sérios, você está entre os mais famosos no mundo.

NM - Bom, se você pôde ver, meus olhos cintilaram quando você disse isto (gargalhadas).

PF - Bom, quero agradecer-lhe muito, foi muito agradável. Espero ouvir mais notícias suas. Última pergunta: você está escrevendo um romance, outra ficção, ou um estudo histórico...?

NM - Estou trabalhando em um romance, mas não posso falar dele agora. Mas acabei de escrever um romance curto, será lançado no próximo ano. Mas o que eu quero mesmo fazer é a segunda parte de “Harlot’s Ghost”.

PF - Seu estudo sobre espionagem.

NM - Sim, porque eu prometi. Se depois de ler mil e duzentas páginas, o leitor encontra um “a seguir” na última página, isto é uma promessa, que não quero morrer sem cumprir. É o proximo livro que eu quero fazer.

PF - Agradeço muito pela entrevista. Tenho certeza que vai aumentar o interesse pelos seus livros muito mais do que já existe. Você já é muito famoso no Brasil.

NM - Bom, um médico não é melhor do que o seu paciente, e o romancista não é melhor do que seu entrevistador. Portanto, obrigado, Paulo Francis.

PF - OK, obrigado, bye, bye.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Galbraith, Francis, pastas de arquivo


Faz pouco mais de dez anos, 1996, não é tanto tempo assim, mas quando a vida muda muito, uma década atrás pode parecer perdida na pré-história.
Eu morava em Nova York e entre outras coisas que fazia, tirava de um gravador para o computador, traduzindo, entrevistas que o Paulo Francis fazia para a Globonews - ele entrevistava em inglês o que tinha que ser legendado em português. Uma delas foi com o economista canadense/americano John Kenneth Galbraith.

O Francis é até hoje um mistério para mim: a pessoa afável que conheci, e que por isso fez muitos amigos e admiradores, não combinava com o que depois passou a dizer na televisão, que eu não gostava nem concordava.

Galbraith era um velho conhecido dos meus arquivos. Em criança, herdei da minha mãe um armário cheio de escaninhos, era uma “discoteca”, onde ela antes guardava seus discos de 78 rotações. Ela adorava música. Eu brincava de arquivar o que lia e gostava, e esse móvel veio a calhar: até hoje tento me livrar de pastas que faço e desfaço. Consigo em parte. Lembro de ter guardado uma entrevista do Galbraith que me impressionou muito. Ela felizmente já foi para o lixo, mas a entrevista que traduzi para o Francis ainda está no meu computador, e parte dela reproduzo aqui.

P.Francis - John Kenneth Galbraith, professor emérito de Harvard. Nós estamos em Cambrige, Massachussets, onde ele mora. Este é o seu livro “The Good Society”, seu vigésimo livro, publicado em português com o título de “A Sociedade Justa”. Nós vamos fazer uma entrevista com o Prof. Galbraith perguntando-lhe sobre o livro, sobre o Brasil e sobre suas idéias em geral.

P.F. - Professor Galbraith, sendo esta uma entrevista para a televisão brasileira, devo perguntar o que o senhor acha das possibilidades do Brasil, um país enorme, maior que os Estados Unidos, com tantos recursos, a maioria deles ainda inexplorados, porque setenta por cento do país é controlado por companhias estatais que impedem a abertura da economia. O senhor pode nos dar algumas idéias sobre o assunto?

J.G. - Estive muitas vezes no Brasil, sou um admirador deste país e acho que está no rumo certo. Houve um tempo em que a industria sofreu o problema que você mencionou e que é sério. Nós aprendemos que a economia moderna precisa de liberdade de mercado para funcionar bem. Eu me vejo como um social-democrata mas aceito a economia de mercado, não há alternativa para ela.

P.F. - É muito bom os brasileiros ouvirem isso, muitos deles ainda não têm esta certeza. Em seu livro, A Sociedade Justa, o senhor não vê a igualdade como uma coisa desejável, ou possível. Mas vê uma possibilidade de justiça social, adquirida cobrando impostos progressivos. Em 1994, uma maioria elegeu um congresso republicano, porque se sentia pouco representada e muito taxada. Pode ser uma opinião errada mas representava o sentimento dos eleitores. O senhor comparou, brincando, o Contrato com a America com o Manifesto Comunista. Não seria mais plausível interpretar como um não aos impostos sem representatividade, porque a classe média está sub-representada neste país?

J.G. - Eu não diria isto, nunca. A classe média e os ricos estão muito bem representados no Congresso. O problema é que os pobres, particularmente nas grandes cidades, não estão representados. Eles não votam. O que tivemos há dois anos atrás foi passageiro. Foi a revolta de uma pequena parcela da classe média e alguns ricos contra a rede de proteção, que precisamos manter, para apoiar os pobres.

P.F. - Mas setenta por cento dos homens brancos votaram pelos republicanos. Achei isto surpreendente.

J.G. - Setenta por cento dos que votaram, mas nosso povo não vota. Temos uma democracia imperfeita. Só metade do povo vota.
Estes setenta por cento diminuiriam se tivéssemos os votos de todo o povo.

P.F. - Mas o senhor não concorda que os que votam são os mais engajados na mudança da sociedade? Deste Contrato com a América, não importa o que o senhor ache, muitos dos artigos passaram no Congresso.

J.G. - Acho que devemos esperar até a proxima eleição. Há dois anos tinha-se a impressão que de alguma maneira poderiamos ter uma boa sociedade com menos participação do governo. Poderiamos fazer isto cortando assistência médica, seguro social, e particularmente toda uma rede de apoio aos pobres...

PF - Mas...

JG - Deixe-me terminar. Há dois anos atrás, tivemos uma espécie de guerra contra os pobres. E descobriu-se que nada disso era muito prático. Estas leis não passaram. O que o porta voz, o Senhor Gingrich, fez, foi alienar muita gente que dependia desta rede.

PF – Eu acho que não, mas eles não estão preocupados com benefícios sociais, estão preocupados com o imposto alto. Quem ganha abaixo de cinquenta a cem mil dólares por ano se sente sobretaxado. Eu ouço isto de muitos dos meus amigos americanos...

JG - Eu aceito isto, os ricos e os ascendentes sempre se sentem sobretaxados. É inevitável. Os muito ricos gastam um tempo enorme inventando argumentos para provar que deveriam pagar menos impostos.

PF - O senhor escreveu propondo a cobrança progressiva de impostos.

JG – Que eu apoio com convicção.
Eu não escrevo para o aplauso, eu escrevo pela verdade. Cobrança de impostos progressiva tem uma enorme influência civilizante, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Como eu disse, uma das maiores preocupações dos muito ricos é tentar provar que não devem pagar tanto. Você já ouviu falar do método de distribuição do pardal e do cavalo?

PF - Não.

JG - É muito sério. Ele sustenta que se você alimenta o cavalo com bastante aveia, alguma vai acabar caindo na estrada para alimentar os pardais. É a base da doutrina dos ricos.

PF - Eu lembro de ler no livro de Edmund Burke, “Reflexões sobre a Revolução Francesa”, ele disse que os ricos deveriam ficar mais ricos, pois esta seria finalmente a maneira de conseguir alguma riqueza para as classes mais pobres. É uma opinião bem conservadora que o senhor não deve partilhar...

JG - Eu não acredito nem um minuto neste absurdo. Eu acredito em uma distribuição equitativa da renda, eu não acredito em uma distribuição igual da renda. Para uma coisa devemos estar alertas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos: no sistema democrático, do qual dependemos e para o qual não há alternativa, a distribuição de renda é muito desigual.

PF - Eu entendo isto, mas as tarefas, a inteligência, as habilidades são desiguais. Aqui existe esta população enorme, que vem do mundo inteiro para países ricos, como os Estados Unidos, o único país do ocidente, do primeiro mundo, a criar empregos. De 1974 a 93, a Europa ocidental não criou um único emprego e os Estados Unidos com sua economia aberta, criou milhões de empregos. O senhor não acha que isto traduz bem o sistema daqui?

JG - Não afirmo que o sistema não funciona, eu afirmo que muitas pessoas, principalmente nas grandes cidades, ficam fora do sistema. Tranquilidade social, justiça social, asim como decência social, exigem que os pobres tenham oportunidades decentes.

PF - Em seu livro “A Sociedade Afluente”, quando falava do novo estado industrial, o senhor parecia bem mais confiante no futuro deste país e agora o senhor parece bastante crítico. O que aconteceu?

JG - Eu não sou um pessimista. Neste novo livro, eu falo do que está errado e também no que seria certo. Isto pode ter dado uma impressão errada, mas eu estava tentando definir o que seria uma boa sociedade.

PF - E seria naturalmente uma sociedade com justiça social e boa distribuição da renda.

JG - Eu diria igualdade de oportunidades para as pessoas, sem levar em conta a raça, o sexo, a origem étnica. Eu quero ver todo mundo tendo oportunidades de acordo com suas proprias habilidades e suas aspirações. Isso seria diferente para pessoas diferentes. As pessoas teriam motivações diferentes para ganhar dinheiro. Alguns fariam muito mais do que os outros. Eu não defendo a possibilidade de igualdade de renda, eu quero que se reconheça que a nossa economia distribui a renda de uma maneira muito desigual, aqui e no Brasil.

PF - Sim, naturalmente, mas deixe-me perguntar uma coisa. Com esta fabulosa revolução tecnológica, haverá muita gente desempregada. Como o senhor sugere que o governo deva encarar a questão do desemprego?

JG - Deve-se ter uma visão mais ampla do problema. Com o desenvolvimento da economia, nós passamos da simples produção de coisas, objetos físicos, para as necessidades mais elevadas da sociedade, como as artes, a exploração científica e técnica, as universidades. Com o desenvolvimento da economia, tendemos a absorver pessoas em outros setores além da simples produção industrial. Isto é o que acontece nos Estados Unidos. É o caso de Nova York, onde ninguém vive da atividade industrial, mas todos ganham bem a vida na área do laser, das artes, da propaganda...

PF - São os chamados serviços...

JG - Indústria de serviços. Nós não devemos ter a mente atada apenas na atividade industrial.

PF - O senhor dedicou um capítulo inteiros para os pobres no planeta, as nações pobres. O senhor acha que os países pobres podem acompanhar este fantástico progresso tecnológico do primeiro mundo? O Brasil é um bom exemplo, não se consegue abrir a economia, embora o atual presidente tente. Com toda a distancia tecnológica, o senhor vê uma maneira de equilibrar as diferenças?

JG - Este é certamente o maior problema dos nossos tempos. O progresso econômico moderno é uma coisa muito desigual. Eu discuto no livro que esta é uma das responsabilidades que devemos assumir. Devemos ajudar os mais pobres no planeta. Eu dou muita importancia para o investimento humano, em educação, saúde. Devemos ter sempre em mente um fato simples do nosso tempo: não há povo culto e educado que seja pobre, e não há população iletrada que seja rica. Este é um forte indício da importância da educação.

PF - Em sociedades organizadas, como a União Soviética, os povos se entendiam melhor do que agora. De repente, temos um número enorme de pequenas guerras étnicas. Nesta sociedade, que é a mais rica do mundo, temos a bomba de Oklahoma, o Unabomber. O senhor acha que existe alguma coisa psicológica que deva ser analisada por economistas, políticos ou profissionais sociais? Eu sinto um enorme desconforto com o presente.

JG - Eu não sinto isso de modo algum. Eu acho que existe falta de notícias e então alguém como o Unabomber ganha uma atenção enorme. Um desastre de avião vira manchete. Estas são aberrações normais de uma sociedade normal. Nada que nos faça pensar em um período excepcional. Com o fim da guerra fria e a paz entre os países afortunados, estas coisas ganharam mais atenção do público do que teriam em outros tempos.

Sobre populações miseráveis, nos EUA e no Brasil:

JG - Mas eu não acho que estes problemas não têm solução. Acho que três pontos são parte da solução. Em primeiro lugar, uma rede de proteção que livre as pessoas da miséria absoluta. Em segundo lugar, um forte sistema educacional. Eu repito o que disse antes, isto é absolutamente essencial. Em terceiro lugar, a criação de alguns serviços importantes para os pobres, como saúde, bibliotecas, casas populares, o que o sistema privado, o sistema de mercado, não oferece. Com estas três coisas, ficaremos muito melhores do que estamos agora.

PF - Professor Galbraith, agradeço muito por esta entrevista e espero que o senhor vá novamente ao Brasil, em breve, para ver o novo país se desenvolvendo sob a liderança do presidente Fernando Henrique Cardoso.

JG- Eu é que agradeço. É sempre um prazer ir ao Brasil. Saudações a todos que sofreram com meus livros no passado...

PF - Não, seus livros são muito claros e muito bem escritos, eu posso dizer, sendo seu leitor. Embora não partilhando de algumas das suas opiniões, sou um grande admirador seu.

JG - Muito obrigado.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Santa Rede de cada dia


As últimas gerações da minha família eram tão católicas que suspeito que estariam dando bandeira de cristãos novos. Se é fato que estes adotavam nomes de acidentes geográficos e árvores frutíferas como sobrenomes, além do La Rocque, minha mãe tinha Costa e Pereira, que não me deixariam mentir.
Pensando em religião, lembrei do amigo Redi, que dizia que era judeu mas não era muito católico... salve a mistura e o sincretismo tão à brasileira que conhecemos por aqui. Acabei de ver num programa de televisão que exu só é associado ao demônio sob a ótica das religiões ocidentais. Por representar uma força tempestuosa, sexual inclusive, mas sem nenhuma alusão ao pecado, tanta energia e liberdade sem culpa só poderia ser coisa do demo. Acho que tanto católicos quanto espíritas, por exemplo, pregam com muita grandeza a generosidade e a fraternidade, mas usam como trunfos a culpa e o medo do inferno. E axé é construção, serve para arquitetar tudo de bom.
Por tudo isso, mesmo tendo fé e respeitando todas, faço minhas as palavras do Frank Sinatra: sou a favor de qualquer coisa que ajude a passar a noite, sejam orações, calmantes ou uma garrafa de Jack Daniel’s. Bem, hoje eu diminuiria a dose. Muita coisa que não fazia mal antes agora faz. Quem poderia imaginar que um dia até o leite sofreria restrições?
O mundo sofreu mudanças profundas na minha geração.
Difícil até de lembrar como era antes da www. Merecia uma padroeira essa milagrosa rede. Lembro de rirem de mim porque não lembrava como se comprava leite antes do saquinho plástico e da caixinha. Não lembrava como era distribuído na cidade, porque na roça lembro bem, era o Seu Júlio, que passava numa carroça pela estrada em Itaipava, e trazia uma leiteira de metal, que no dia seguinte era trocada por outra. Os três dedos de nata que ficavam em cima eram de puro creme de leite – o que sobrava das nossas colheradas virava manteiga, que meu pai gostava de fazer, batendo e trocando várias águas. Seu Júlio trabalhava no castelo de Itaipava, que era da família Smith de Vasconcellos, família paulista que achou de construir um enorme castelo de pedra como se no vale do Loire estivesse, mas se encontra mesmo às margens do Rio Piabanha.
Passando de Itaipava para o mundo, quero ser a primeira a pedir bênçãos para essa rede, quando houver alguma santa protetora, o que não seria descabido, Santa Clara não é protetora da televisão? Santa Vanda não é protetora dos peregrinos? Teremos para quem rezar, por exemplo, a cada vez que a Virtua enguiça, rezar para que respondam às nossas mensagens, mesmo que algumas vezes o silêncio possa ser mais revelador do que as respostas.
Como nada é perfeito, assessores de imprensa caíram na rede pra valer - mesmo assim a enxurrada de mensagens ainda é melhor do que atender ao telefone alguém querendo saber se em nossas pautas atuais cabe a clientela que representam. O jornalismo também mudou demais nos últimos tempos, como mudou a medicina – daria para imaginar profissionais desses dois ramos sendo oferecidos por assessores de imprensa? Deve ser culpa da Lusitana, de tanto rodar trazendo mudanças.
A rede também não é perfeita para contatos muito pessoais. Ouvi um dia no programa do David Letterman uma pertinente observação sobre os percalços da comunicação pelo computador: a emoção e o tom se perdem ou nunca chegam a seu destino do jeito que saíram, viajam tão mal quanto alguns vinhos, e podem trazer confusões, decepções e contratempos. Mesmo com todas as mudanças, os sentidos humanos continuam, portanto, na crista da onda (ao contrário dessa expressão!).