
Pais adoram contar histórias dos filhos quando eram pequenos. Já os filhos, costumam achar que é mico, e ficam no mínimo desconfortáveis quando isso acontece. Mesmo assim, o que vale a pena é bom registrar. Mais tarde, especialmente quando eles tiverem seus próprios filhos, irão entender como sinal de interesse e carinho. Fiz isso num pequeno caderno, antes da banalização dos filmes domésticos, onde se pode ter guardado um bom momento do passado, mas os flagrantes nem sempre acontecem, como nas horas mais espontâneas e particulares, as horas das atividades corriqueiras, de vestir, de dormir, de comer.
Crianças mostram seus traços, anseios e aptidões muito cedo, e estar atento a eles vai além de dar prazer ou divertir os pais, pode ser útil para ajudar os filhos mais tarde.
Todos os dias temos notícias de pais chocados e surpreendidos com o rumo que os filhos escolhem. Não deveriam se surpreender. Criar e educar, além de exigir trabalho, não é uma tarefa solitária e desvinculada do que se tem em volta. "É preciso uma cidade para criar uma criança", diz um sábio ditado africano - ou seja, educar é tarefa para pais, professores, legisladores, governantes. Não precisa ser letrado, basta ser sensível para saber disso. Lembro da observação de uma costureira da favela da Rocinha, falando de crianças e de violência: “a gente sabe o que uma agulha rombuda pode fazer num tecido fino”.
Comecei a reparar que era mesmo única a minha filha única quando eu desejava bons sonhos na hora de dormir, e a Luiza me respondia que não gostava de sonho, gostava era de pesadelo, que quando a gente acorda, vê que acabou. Já sonho, acabava, e ela ficava uma fera. Choque de realidade aos quatro anos? Ficava preocupada e perguntava pelos pesadelos: eram “um cachorrinho do outro lado da rua latindo e me chamando”, ou “um algodão gigante bem ali na janela”.
Muito pequena mesmo, no banco de trás do carro, viu a estátua do Cristo Redentor de costas, um ângulo diferente do que via da janela de casa e ficou espantada: “mas viram ele?? Quem vira ele?!”
Com três anos e meio, observando uma violeta que ela viu nascer e morrer, perguntou meio preocupada, achando a vida muito curta: “mas as flores são diferentes que as moças, não é mesmo?”
Foi a idade do primeiro filme, A História Sem Fim: “Vamos logo, senão a gente vê essa história com fim...”. Como gostou muito, mas também passou muito medo, tentou negociar: “quero ver de novo, mas ficar na última fila, que lá a gente vê bem pouquinho”.
Aprendendo sobre “a atividade esporte” na creche, perguntou: “filha é trabalho, não é esporte não, né, mãe?”.
Reclamava da Lúcia, uma babá atrapalhada que eu arranjei, e que sempre perdia a hora: “vou comprar um galo de verdade numa fazenda e dar para ela.”.
E explicava para a Lúcia, depois da peça Simbá de Bagdá: “Bagdá é uma cidade, Simbá é uma espécie de índio”.
Brincadeira nessa época já era esperta: querendo brincar de pique e percebendo a desvantagem, ela combinava: “mamãe, você corre atrás de mim, e quem é pegada é que é a campeã, tudo bem?”
Indo de carro para Búzios, alertei que tínhamos que ajudar a prestar atenção nas placas da estrada. Ela respondeu lá de trás: “lamento, mas não sei ler”.
Também no carro, quando uma nuvem cobriu o sol e o tempo mudou bruscamente: “Ih! O filme ficou em preto e branco...”. Depois contou que “o chuvaral alagoou tudo”.
Aos seis anos, continuava a desconfiar que fantasia era melhor que realidade: “queria que a vida fosse igual desenho: cai do abismo, não se machuca, leva tiro, fica preto, toma banho, fica bom, passa o carro em cima, fica fininho, endireita e tudo bem”. Mas graças a esse discernimento, questionou a amiguinha que queria pular com ela da cobertura no quarto andar, com dois panos amarrados feito capas de Mulher Maravilha: “acho que não vai dar certo, Manuela”. Foram falar com a mãe, que jogou um tomate lá de cima e mostrou o que ia acontecer com as duas se pulassem...
Ela estudava na mesma creche que a filha do Gabeira, que cuidava do estilo e lançava moda desde os tempos da tanga de crochê, bem antes de ser deputado. Nós nos conhecíamos, mas eu não reparava muito quando ele chegava para deixar a filha na creche, lembro vagamente que tudo era muito colorido, do carro às roupas.
Vi no Leblon uma loja de sapatos infantis que eu achei lindos, de uma estilista famosa aqui, o couro parecia estampado com decalques, bichinhos, raminhos de flores, e eu achei que ela ia ficar louca na loja. Para minha surpresa, ela, que adorava presentes, não quis nenhum sapato, e sugeriu rindo: “Mãe, nessa loja, quem vai querer comprar é o Gabeira!”.
