Já tive minha casa assaltada e acho que posso avaliar o que a vítima de violência mais dramática pode sentir. Entendo que a violência no Rio e em São Paulo, ou em qualquer outra cidade brasileira onde ela infelizmente se instalou, cause luto e profundo pesar. Já indignação e revolta, eu sinto em outra direção, e não com relação aos casos diariamente estampados com grande destaque nos jornais. Surpresa pela triste e crescente rotina que ela virou, não me sinto no direito de ficar. Essa escalada era líquida e certa. Reproduzo como triste ilustração do que falo, o trecho de um artigo achado em meus arquivos, que foi publicado no Jornal do Brasil em 14/05/1997:
Ressocialização e arte - Imagine uma sala pequena, suarenta e quase escura, com 46 meninos dentro. Vinte e cinco são negros, 12 mulatos e brancos, 16 estão com piolho, 4 com escabiose, 11 com conjuntivite, um tem o corpo coberto por furúnculos. Vinte e três têm cicatrizes de agressões violentas pelo corpo, 12 já foram baleados, 4 feridos à faca, 3 têm marcas de queimaduras. Vinte e seis são analfabetos totais, 12 só sabem escrever o próprio nome, 28 são órfãos de pai, 8 órfãos de mãe, 6 órfãos de pai e mãe. Nove foram violentados nas ruas, 39 já fumaram maconha, 36 declararma-se usuários de cola, 7 têm tiques nervosos ou gagueira. Um tem hipermetropia e catarata degenerativa, um está com pneumonia, um com suspeita de tuberculose, um tem a pele da perna direita tão fragilizada que se rompe a qualquer toque devido a graves lesões provocadas pro fogo, 23 estão com algum tipo de doença venérea, 6 estão jurados de morte pelo tráfico, 11 têm desavenças graves na comunidade ou no presídio (...) Esse bando de infelizes já quase não reclama da privação da liberdade, pois ali dentro parece um pouquinho mais com uma casa do que na rua, os riscos são menores do que as madrugadas num canto de calçada de uma cidade do Brasil. Esses órfãos absolutos do estado até que tentaram arranjar emprego, mas descobriram que como aviões do tráfico poderiam ganhar até 4 salários mínimos por dia, enquanto suas mães davam duro o mês inteiro para levar para casa a metade disso. Esse grupo, de trágico passado e sombrio futuro, está reunido nesta sala, numa tarde quente, para ouvir Mozart e pintar à óleo. E o trabalho que resulta desta oficina encanta a todos e revela, apesar de tudo, uma remanescente alma de criança neste meninos de caras feias. Mais de 50% deles, pelo simples exercício do ato de pintar, modifica tão radicalmente seu comportamento que justifica a diminuição, ou até a suspensão da pena a que foram condenados.(...)No entanto, só no Rio de Janeiro, são 700 menores assassinados a cada ano(...) São as cicatrizes da vergonhosa omissão do Estado brasileiro. Há um genocídio de crianças em curso no Brasil. Hoje à noite, milhares delas estarão se prostituindo ou sendo violentadas por esse país afora. E enquanto não encararmos essa questão prioritariamente, todo o resto é conversa fiada. Antonio Veronese, artista plástico."
John Updike, escritor, O Globo, 17/03/2007: " A violência vem da falta de futuro. São jovens que não têm nada a perder. Eles já vivem no inferno. A vida para eles parece terrível demais e, o que é pior, não há saída para esse inferno cotidiano. No caso do Brasil, isto vem da miséria misturada à falta total de perspectiva. Não sobra nada: não há qualquer noção do que seja dignidade, do que seja decência. Não há esperança na visão de mundo desses jovens. Para eles, não há recompensa nesta vida ou neste mundo. O sofrimento só termina com a morte. Esta é a nova face da juventude. Isto não acontece só no Brasil, mas no Brasil esta desesperança é agravada pela miséria".
Daí o meu desalento - e indignação - quando assisto a discussão sobre redução da maioridade penal. Pena de morte, não acho necessário discutir. Ela é oficializada no Brasil há séculos, e certamente por estar se tornando uma prática tão democrática - está nas casas, nas ruas, nas favelas - esteja causando tanta indignação.
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