quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
Icebergs, relevos e transparências
A humanidade, uma cidade, cada pessoa é um iceberg do qual só se conhece a pontinha. Ninguém, com diploma ou sem, pode dizer que domina os subúrbios, os subterrâneos, os subterfúgios do coração, as surpresas da alma, as coisas que não são ditas.
Sobre o que se diz e o que se escreve, no entanto, ter algum compromisso com os fatos do jeito que eles se deram me parece necessário, ou nossas expressões acabarão totalmente irrelevantes e descartáveis.
Vivi, por isso conheço de perto uma parte pequena da história do jornalismo brasileiro, e no entanto constato quase diariamente que essa pequena parte que conheço é muito pouco e muito mal conhecida. O Brasil não é um país acometido de falta de memória, é um país onde se trava uma luta de foice contra a memória, ou a favor da irrelevância dela. Acabo de ler que perdemos mais uma batalha: constataram a ineficácia do gingko biloba!
Nos tempos da ditadura militar, quase todas as pessoas com quem eu convivia eram contra a ditadura. A luta por mais liberdade igualava a todos. Finda a ditadura, acho que a única saudade possível daqueles tempos sombrios seria a da ilusão de que todos eram idealistas, generosos e humanitários e que continuariam sempre lutando por um país melhor. Pura ilusão de quem era muito jovem. Liberdade é uma excelente bandeira, mas sozinha não faz verão, em um país de forças tão desiguais.
Sempre que leio alguma coisa sobre alguém que viveu aqueles tempos, é raro encontrar alguém que não tenha sido da turma do Pasquim. Era uma turma até pequena, com quem convivi durante décadas, mas a julgar pelo que leio frequentemente, e é o que vai ficar arquivado na Biblioteca Nacional, só o guarda da minha esquina talvez não tenha feito parte daquela turma.
Nos meus breves tempos de jornalismo impresso, ouvia bastante que “papel aceita tudo”, uma advertência à temeridade de se acreditar no que se escrevia irresponsavelmente.
Hoje vejo que “avançamos”: não só aceita tudo como tudo – sendo verdadeiro ou falso - se justifica em prol de alguma causa, nobre ou não, isso é irrelevante, como pode ser irrelevante pensar, pesar, escolher, se esmerar, criticar. O importante é sobreviver, e bem, cada vez melhor, de preferência. Quem vai discordar? Nada mais subjetivo do que um julgamento. Mas falta de relevo não produz um horizonte de total monotonia?
Licença poética deveria ser reserva dos poetas. Falando em poetas, lembro Drummond, que já fez parte da equipe de um glorioso Caderno B, e sua advertência sobre novidades: quem quiser ter um Ano verdadeiramente Novo, tem que tratar de fazê-lo novo! Ele não vem embutido no calendário.
Feliz Ano Novo a quem quiser e souber fazê-lo!
sábado, 12 de dezembro de 2009
Surpresas do mundo digital
Depois de bater o ponto na tapioca da feira, fui entregar essa foto – quando vi as pimentas outro dia e pedi para tirar a foto, o rapaz me pediu uma cópia, e fui hoje pagar a promessa. Eu o conheço de vista, costuma ficar sentado ao lado de um sinal de trânsito perto da minha casa e aos sábados me parece que os feirantes deixam que ele fique lá. Sabe o que ele me disse quando recebeu a foto?
- “Ôba, vou botar no Orkut!”
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Vida aventureira, vida eterna
Fim de férias, solta na vida, e já que resolvi não me jogar em uma aventura maior, me aventurei pela cidade. Fui bater na Gávea, num salão que freqüentei por pouco tempo há décadas, antes da minha filha nascer, e onde ela agora, por acaso, corta o cabelo. Conversando com a manicure, ela contou que a filha, recepcionista num consultório médico, abriu uma exceção e deixou uma paciente usar seu computador de trabalho. A cliente tinha urgência de entrar no MSN e “falar” com uma amiga que está na Europa, e a diferença do fuso não permitiria esperar. A moça teve a sensibilidade de perceber que a urgência era dupla: a paciente tem 95 anos.
Esqueci o que provocou esse relato, só lembro que a manicure terminou dizendo que achava a velhice uma grande injustiça, como se coubesse julgamento sobre coisa já decidida mesmo contra a nossa vontade.
Mas como dizem que a vida recomeça a cada dia, mesmo envelhecendo ando bem a fim de pegar uma carona nesse recomeço. Também por isso abri mão de viajar nas férias, não carecia, estou embarcada numa viagem completamente individual e tanto faz o bairro, a cidade ou o país em que eu me encontro. Arrumar os armários está me fazendo revirar tudo, e olhando para a lata de lixo, acho que o saldo está sendo bom.
Entre as pilhas de matérias que guardo para ler quando tiver tempo, acho algumas de 2004, 2005, 2006, anos revirados e numa delas, o título é de uma escritora americana: “escrever não é fazer terapia”.
Em outro momento, talvez desligasse o computador, desanimada. Fiz melhor: joguei a matéria no lixo. Todo mundo sabe que qualquer um pode se intitular escritor, já fazer literatura, são outros quinhentos, mas sempre fui do time a favor do que quer que ajude a passar melhor a noite, incluindo cigarro e whisky, que eu felizmente posso dispensar, mas cada um que se organize como puder. E se além da minha eu ainda tiver chance de melhorar o dia e a noite de alguém? Escrevo para me comunicar, pode ser até comigo mesma, e se com isso evitar uma pipoca no cotovelo, meu ou de quem quer que seja, o mundo melhora.
A vida nos restringe, mas a gente se acotovela, empurra pra cá, empurra pra lá, e vai conseguindo mais espaço, mesmo tentando não quebrar os ovos nem o salto do sapato. Sendo cuidadosa, fica mais difícil, mas a gente sempre colhe alguma coisa quando planta. Acho que triste deve ser ficar velho sem ir amadurecendo.
A humanidade tem mania de ser feliz, e eu não sou melhor do que ninguém, mas fico satisfeita com o que conseguir, sendo de verdade.
Vivo o presente. Nesse momento ficaria feliz se pudesse ir ao show do Manu Chao na Fundição, que acabo de ver que vai ter hoje, e me dei conta de que nem uma só pessoa que eu conheço me acompanharia nesse programa. Talvez tenha nascido no lugar ou na geração errada, pensei, para em seguida pensar melhor: meia noite com chuva na Lapa, cá entre nós, nem mesmo eu me animaria. Peguei um filme japonês no vídeo. Talvez alguma coisa eu tenha mesmo que deixar para a outra encarnação.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Estrelas mudam de lugar
Esse foi um domingo de muitas alegrias para cariocas que gostam de futebol. Todos os times do Rio ganharam. A torcida do Flamengo é a maior mesmo e por isso a comemoração é sempre mais geral.
Não espero a compreensão de nenhum torcedor mais acalorado, sei que não deveria mexer nesse vespeiro, mas se ainda assim eu escrevo aqui deve ser porque preciso muito explicar para mim mesma.
Já nasci botafoguense, antes mesmo que pudesse decidir por mim, gosto de história e de saber que meu avô e meus tios foram fundadores do clube que escolheu ser conduzido por uma estrela. Gosto do hino do Botafogo, tão familiar, desde criança. Mas como tinha em casa o disco dos hinos, acho que sei todos de cor...
Tenho afeto pelos botafoguenses da minha família, fico contente com as vitórias do Botafogo porque sei que, em primeiro lugar, meus irmãos estão comemorando. Mas mesmo deles já ouvi críticas ao Botafogo, porque são torcedores mas não são cegos. A minha dificuldade é com o meu impulso meio incontrolável por liberdade, democracia e justiça. Aí o senso crítico fala mais alto.
Quando vejo torcedores de times diferentes comemorando juntos, como foi possível ver nesse domingo de vitórias por aqui, minha alegria com o verdadeiro espírito carioca transborda. Não tolero intolerância, e além de achar que vermelho e preto são cores que juntas ficam muito bonitas, não consigo explicar a especial rejeição de botafoguenses por flamenguistas. Se é porque o Flamengo ganha mais do que eles gostariam, estão perdoados. Mas se é porque o Botafogo é um time elitista e rejeita um time claramente popular, aí então eu fico muito à vontade para torcer para o Flamengo todas as vezes que eu quiser. E confessar que ontem eu torci mesmo.
Tem algum sentido ver o porteiro do meu prédio, vascaíno como quase todos por aqui, torcer por um time gaúcho só para ver uma derrota do Flamengo? Acho que o sentimento mais natural é o da proximidade, e ser um pouco bairrista é um pecado menor. E que tal a aceitação de que vença o melhor? Quebra-quebra por causa de futebol? Para mim, jogo é jogo, só isso, e rejeição visceral pelos concorrentes, para a maioria das mulheres, só vale para paixões do coração - talvez aí, então, não conte com a compreensão da torcida masculina... será essa a grande distância entre Marte e Vênus? Bom, nada de complicar, o que interessa aqui é que foi bonita a festa, pá!
domingo, 6 de dezembro de 2009
Olhos bem abertos
Gosto do Japão, por muito motivos. Fiz por lá uma viagem de descobertas, e quando é assim ela continua muito depois que a gente chega no aeroporto de volta. E é curioso mesmo como a gente às vezes precisa dar uma volta ao mundo para perceber melhor o nosso quintal.
Aprendi vagamente em criança a não gostar dos japoneses. “São um povo falso, que balança a cabeça parecendo concordar, mas faz o que quer”, era o que eu ouvia. No Japão, fui entender que era ignorância nossa pensar assim. O sinal de aquiescência japonesa, que nos parece afirmativo, é apenas um sinal de que estão ouvindo, e registrando. Concordar já é outra etapa. Além de balançar a cabeça, eles pontuam a fala com um “né”, herança portuguesa, que nos dá a idéia de aprovação também, né? No caso era ignorância trazida e reforçada por viajantes profissionais que apreendem, no curto período que passam pelo país estrangeiro, o que sua capacidade e seu interesse permitem. Para aprender, além de coração aberto, o nariz não pode estar empinado.
Já sobre concordar, percebi que orientais não costumam concordar fácil com o que propomos, não. Se antiguidade é posto, o Oriente tem sua autoridade, e a qualquer cochilo nosso faz uso dela, especialmente quando você é mulher.
Morando nos arredores de Nova York, pude aproveitar algumas facilidades na vizinhança, como aulas de canto - bela ajuda para a alma e para os ouvidos – além de aulas práticas de conversação em inglês. Nessas, eramos eu e sete japonesas. Aprendi muitas outras coisas lá, mas fluência em inglês vi logo que seria difícil conseguir ali, por motivos óbvios. A primeira coisa que a professora americana fez foi pedir que todas trocassem telefones e endereços pois se alguém ficasse sem carro poderia pedir uma carona. Pareceu grego para as japonesas. Louvável o espírito solidário e democrático da gentil professora, mas as nem sempre reveladas castas orientais não permitiam seguir ali a prática “em Roma, como os romanos”.
O mundo é vasto, não dá para achar que culturas podem ser empasteladas só porque o avião e a internet nos aproximaram e a comunicação ficou fácil. Temos nuances tão distintas entre Rio e São Paulo, um do ladinho do outro, só por terem tido colonizações e destinos diferentes, como não serão profundas as diferenças entre um extremo e outro do planeta?
Só que quando o coração ajuda, diferenças só atraem. Aí o Japão fica perto.
Perto e presente: lido atualmente com um projeto que a minha filha quer que eu abrace: economizar para ir com ela ao Japão - isso significa levá-la, né? Compreendo que um país tão voltado para a estética seja o sonho de consumo de uma estilista, e ela não é uma estilista qualquer, mas por enquanto, fecho os olhos, faço ouvidos de mercador e uso essa meta como boa desculpa para não gastar dinheiro a rodo.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Paraty
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Pois sim!
A língua portuguesa é engraçada, encantadora, ardilosa e dissimulada.
Gentil nas negativas e de mãos na cintura quando pronuncia sua palavra mais afirmativa. Diz mesmo muito do seu povo, e é com ela que a gente lida e tenta se acertar, apesar das reformas ortográficas, das palavras com ou sem h, dos esses e dos zes, dos acentos e dos hífens.
Anda meio irregular, mas até prova em contrário, esse blog vai continuar - tem me dado poucas, é verdade, mas muito boas alegrias.
Se diz ao sabor do vento, mas nem tanto, tem rumo sim, e entre uma abalroada e outra, da vida e da conjuntura, segue. Quem quiser que me siga, prometo diversão e divagação grátis, sempre estive muito mais para morrer lutando do que para chorar sobre leite derramado. Esperança sempre foi a minha bandeira, e digo que é um bom sentimento para se ter sempre ao lado. Além do dicionário da nova ortografia, da Academia Brasileira de Letras, que eu pretendo comprar.
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
O Rei do Apagão
domingo, 8 de novembro de 2009
Olhar
Ponto de Fuga
Bouquet
As duas fotos acima estão entre as 50 escolhidas para a Exposição do XI Concurso de Fotografia do Jardim Botânico. De lá saem as 12 fotos para o calendário de 2011. Eu tive uma escolhida no calendário de 2007 - já estou satisfeita, sem expectativas! - mas se alguém quiser conferir, estão lá, na sede da Associação de Amigos do Jardim Botânico, Auditório Geraldo Jordão - Rua Jardim Botânico, 1008, casa 06.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
sábado, 24 de outubro de 2009
Vanguarda
20/10/2009
Mulher do futuro será menor, mais gordinha e mais fértil, diz estudo
da New Scientist
As mulheres do futuro serão levemente mais baixas e rechonchudas, terão corações saudáveis e um tempo reprodutivo mais extenso. Estas mudanças são previstas a partir de extensas provas para documentar que o processo evolutivo ainda atua sobre os humanos.
Sempre achei que estava à frente do meu tempo. Pelo menos em parte, já sou uma mulher do Século 25.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
Também é cultura
Paredes do subway, em NY. Muitas foram restauradas, conservando o desenho tradicional que identifica as estações. Outras ganharam cara nova, retratando cenas da cidade, os habitantes que circulam por ali, profissionais, passantes, suas artes, seus tipos mais comuns e frequentes estão ali representados. Nova York está no primeiro mundo, não é ascendente nem candidata a nada. A cidade pode ser dura, mas a cultura - talvez mais na teoria que na prática, mas é um bom princípio, e mesmo que para consumo interno, o que eu gostaria de ver por aqui - não é a da simulação ou exclusão. Pelo menos nas paredes do metrô, não finge que é chique.
E fica assim muito mais chique.
domingo, 4 de outubro de 2009
Pegadas
Andei lidando nas últimas semanas com uma modesta herança mais concreta que a genética, e igualmente trabalhosa, um pequeno apartamento onde passei um curto - mas cheio de lembranças - período na infância, transição entre a casa da minha avó paterna, no Posto Seis, e a mudança para Itaipava.
A casa de Copacabana, onde morei até os cinco anos, que ficava a duas quadras da praia do Arpoador, tinha dois andares, quintal, cachorros, papagaio e ainda galinhas que meu pai, embora médico, insistia em tentar criar. Para horror da vizinhança e de toda a família, posso imaginar.
Esse apartamento da Rua dos Oitis, na Gávea, fica num predinho onde um dia foi a casa da avó materna. Avó abençoada, deixou ali sua boa energia.
Em Itaipava, ganhei o presente de poder explorar o mundo numa pequena bicicleta, sem medo ou vigilância, mas a primeira lembrança eram os canteiros das casas simples da vizinhança, como era a nossa, cheios de plantas mituradas sem muita ordem. Além do gosto pela liberdade, vem daí o gosto pelas pitangueiras, árvore bonitinha que só.
Volto à Rua dos Oitis, e ao apartamento que é quase um karma. Fazia quinze anos que não entrava lá, precisava ser novamente alugado, não é só meu, mas a incumbência de cuidar dele é, há décadas, já que sou a única a morar por aqui.
Consertar o que se estragou é sempre mais difícil do que começar do novo, mas é preciso, e em vez de chorar as pitangas, entre pedreiros e bombeiros, a surpresa de encontrar pelo caminho um pouco da infância pela janela: uma nesga da antiga vista dos sinos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Gávea, que eu lembrava de ver quando era pequena.
Sendo felicidade um luxo que nem sempre se pode ter, aprendi a sair atrás das sensações agradáveis. A caminhada pelo Jardim Botânico ali ao lado, a tapioca na feira de sexta-feira, bem em frente ao Braseiro da Gávea. A pracinha onde eu brinquei acabou sendo a mesma onde minha filha tomava os primeiros banhos de sol, depois de tantas mudanças, não por escolha mas por puro acaso.
A Rua das Acácias, na outra esquina, é cheia de oitis. Já a Rua dos Oitis, é cheia de acácias. E na rua ao lado... pitangueiras.
Um pote de mel comprado no mercado próximo trazia de brinde uma promessa: um vasinho de fibra de côco e duas sementes de... pitanga! Serão mais duas pitangueiras no jardim provisório da minha janela, à espera de uma varanda, ao lado de muitas pimenteiras zelando pelo sucesso dos sonhos. E pelas minhas contas, em seis anos já tenho um outro programa diferente para fazer: geléia de pitangas.
A casa de Copacabana, onde morei até os cinco anos, que ficava a duas quadras da praia do Arpoador, tinha dois andares, quintal, cachorros, papagaio e ainda galinhas que meu pai, embora médico, insistia em tentar criar. Para horror da vizinhança e de toda a família, posso imaginar.
Esse apartamento da Rua dos Oitis, na Gávea, fica num predinho onde um dia foi a casa da avó materna. Avó abençoada, deixou ali sua boa energia.
Em Itaipava, ganhei o presente de poder explorar o mundo numa pequena bicicleta, sem medo ou vigilância, mas a primeira lembrança eram os canteiros das casas simples da vizinhança, como era a nossa, cheios de plantas mituradas sem muita ordem. Além do gosto pela liberdade, vem daí o gosto pelas pitangueiras, árvore bonitinha que só.
Volto à Rua dos Oitis, e ao apartamento que é quase um karma. Fazia quinze anos que não entrava lá, precisava ser novamente alugado, não é só meu, mas a incumbência de cuidar dele é, há décadas, já que sou a única a morar por aqui.
Consertar o que se estragou é sempre mais difícil do que começar do novo, mas é preciso, e em vez de chorar as pitangas, entre pedreiros e bombeiros, a surpresa de encontrar pelo caminho um pouco da infância pela janela: uma nesga da antiga vista dos sinos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Gávea, que eu lembrava de ver quando era pequena.
Sendo felicidade um luxo que nem sempre se pode ter, aprendi a sair atrás das sensações agradáveis. A caminhada pelo Jardim Botânico ali ao lado, a tapioca na feira de sexta-feira, bem em frente ao Braseiro da Gávea. A pracinha onde eu brinquei acabou sendo a mesma onde minha filha tomava os primeiros banhos de sol, depois de tantas mudanças, não por escolha mas por puro acaso.
A Rua das Acácias, na outra esquina, é cheia de oitis. Já a Rua dos Oitis, é cheia de acácias. E na rua ao lado... pitangueiras.
Um pote de mel comprado no mercado próximo trazia de brinde uma promessa: um vasinho de fibra de côco e duas sementes de... pitanga! Serão mais duas pitangueiras no jardim provisório da minha janela, à espera de uma varanda, ao lado de muitas pimenteiras zelando pelo sucesso dos sonhos. E pelas minhas contas, em seis anos já tenho um outro programa diferente para fazer: geléia de pitangas.
sábado, 3 de outubro de 2009
Degenerar
Li Leite Derramado, do Chico Buarque, num susto só, de ver que não existe ali nada que não me seja familiar, de entreouvir ou conhecer de perto mesmo.
Se alguma coisa ali soar falso, alguma tinta parecer carregada, deve ser menos por licença poética e mais porque quanto mais nobres se acham as famílias, menor a disposição de revelar seus intestinos, e a verdade acaba meio dissimulada. Quem lida com o poder costuma ficar mais à vontade para escolher a sua verdade, ou para não dar a mínima para ela.
O sentimento com a minha herança genética foi sempre uma mistura estranha de orgulho (justificado, em alguns casos), de tristeza, e de conflito, em proporções que não sei precisar.
Família é sempre família, a palavra já vem com sua dose de carinho, existem piores, existem melhores, certamente pior é não tê-la, e existe também até hoje a determinação de me libertar do que não me pertence por escolha, nesse legado sempre acidental.
Graças ao desvio de rota que meus pais tomaram, não seguindo o curso que podia se esperar que traçassem, parece que fui salva. Não confesso que vivi, sinto mais é que sobrevivi, mas não reclamo nem um pouco da conta. Sucesso e fracasso tem sempre facetas que oscilam entre o bem e o mal.
O descompasso com boa parte da família, provocado pelas diferenças que meus pais criaram, mais por atabalhoamento do que por escolha, mais por não saber lidar com o que no fundo não gostavam, do que propriamente por rebeldia, acabaram por me aguçar os sentidos para reconhecer onde existia menos pose e mais afeto.
Aceito bem a teoria de que “sem trauma não se cria”. E lembrando de Luiz XV, acho que depois do dilúvio é que há vida.
Andou há tempos circulando na internet, atribuído a Clarice Lispector, um texto que afirmava que a salvação é pelo risco. O texto não é dela, e a salvação não é pelo risco, a salvação é pelo trabalho, eu penso. Trabalho, talento e arte, isso sim merece tratamento nobre, e é o que melhora a raça.
Da mesma forma que acho que a função do mundo virtual é nos conectar melhor com o real, é o trabalho que dá ao lucro dimensões mais humanas, e dá sentido ao proveito e ao lazer.
domingo, 20 de setembro de 2009
Em movimento
Vinte anos atrás, os filmes dele eram aguardados e imperdíveis. Era assim no ano de 1978, que eu passei em Nova York, e lembro do quanto eu ri quando descobri que Annie Hall tinha se chamado no Brasil Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. A moda muda, a vida muda, nem tudo resiste bem à repetição, mas eu não diria que seus filmes deixaram de me agradar, mesmo que não seja para mim um grande cineasta. Peguei no videoclube Vicky Cristina Barcelona, de Woody Allen, já que não tinham ainda Whatever Works, o que eu queria ver. Fazia tempo que não via um filme do diretor mais identificado com Nova York, pelo menos com o East Side da ilha de Manhattan... mas gostei desse Woody Allen versão Almodóvar - esse sim, certamente um dos meus diretores mais queridos, mais surpreendente, mais à flor da pele, mais colorido. Mais humano, menos burguês.
Passeando distraída pela Broadway com a Lulu, minha filha* e muito boa companheira de viagem, não apenas pela ligação afetiva mas pelos interesses comuns, sei que foi muito bom ver, atrás dos cones que protegiam a entrada de um prédio, o diretor que parece fazer parte da paisagem da cidade. Não dava para parar, a produção implorava para que as pessoas continuassem circulando normalmente, e eu sou sempre solidária com a produção, mas deu para tirar rápidas fotos.
Não vi o filme, mas pela data deviam estar filmando Igual a tudo na vida (Anything else). Tinha esquecido o fato, uma arrumação nas fotografias me lembrou, e checarei breve.
Ficou muito caro filmar em Nova York, por isso ele interrompeu com quatro filmes feitos fora da cidade o que na sua filmografia era uma tradição. Whatever Works marca sua volta a Nova York, embora seja uma novaiorque bem mais ao sul, situado em Chinatown.
Acho que foi numa entrevista na tv que ouvi uma crítica ao fato de não ter em seus filmes nenhum ator negro. Não sei se é verdade. Quando acontece, a pós-produção os transforma em uma caixa de correio, dizia a cáustica e irônica crítica.
Li uma declaração sua de que Obama será um grande presidente, que vai reverter o desastre Bush. As fotos estão aqui para provar o flagrante, mas essa é uma postagem sem muitas certezas, igual a quase tudo na vida.
* e estilista, da marca e do site
Luluca
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Alegria
Não cura tudo, eu sei, e sei que depressão é mais embaixo, mas quando não estou muito animada, saio à procura de um lugar bonito. Não preciso ir longe, no Rio é até covardia. Covardia também é o que os cariocas, meus conterrâneos, deixaram e deixam fazer com essa cidade, não lutando por ela e não encostando na parede cada prefeito ou governador que por aqui passam, dando sua contribuição para ela chegar ao ponto que chegou. Mesmo sabendo que foram eleitos, acho que o Rio não merece. Um dia melhora, com uma ajudinha mais de cima, está até melhorando. Passar uns dias numa cidade do primeiro mundo, como Nova York, onde as pessoas costumam se tratar com cortesia e educação, faz notar aos mais atentos como é antipática a gente da Zona Sul do Rio de Janeiro. Posso falar porque sou carioca, e de um modo geral não tenho muitas queixas, costumo receber alguma gentileza em troca de um gesto simpático, mas noto que somos uma gente muito defendida. Arrogante? Egoísta? Acuada? Não é para amenizar, mas já amenizando, digo que não é só no Rio, em cada grande cidade brasileira, em suas áreas mais ricas, acontece o mesmo.
Costumo, por gosto e necessidade, fazer uma visita familiar em Petrópolis regularmente. Outro dia resolvi tentar ir de metrô até perto da rodoviária e depois pegar um ônibus. Sou aventureira. Acho bom ir lendo na viagem, e pegar uma estrada mesmo sem o conforto do carro. Em dúvida sobre a estação mais próxima, me informei no metrô com a senhora sentada ao meu lado. Como ela me sugeriu uma alternativa melhor, por um caminho que eu não conhecia, insistiu em saltar comigo, fora do ponto dela, para melhor me orientar. Pura gentileza carioca, ainda dos velhos tempos. O Rio resiste. E a minha busca pela sintonia com o título ali no alto da página também.
domingo, 13 de setembro de 2009
Desmedidas
Marco Zero em NY oito anos depois dos ataques de 11 de setembro continua ferida aberta, dizem as notícias lembrando a data.
Eu estava em Tóquio em 2001, quando vi pela tv o que aconteceu. Estava em Nova York em 2002, quando a memória da tragédia estava ainda bem fresca.
Todo tipo de lembranças e homenagens penduradas expunham as dores pelo que se passou ali.
O equivalente ao nosso churrasquinho de gato é alimentado pela romaria diária.
Uma fila ordeira e sem trégua ao fundo, uma turista e o aviso para não atravessar.
Esse brusco e inesperado desequilíbrio de forças no mundo não foi a primeira tragédia registrada nessa data, quando surgiu até uma listas de acontecimentos sombrios envolvendo o número onze. O 11 de setembro no Chile de 1973 certamente não teve tanto espaço na mídia mundial, e muito menos na parte sul do continente americano, num período especialmente negro da América Latina. Mais de três décadas entre um fato e outro, e no entanto eles têm uma raiz comum.
Parece mentira, mas enquanto escrevo, uma festa corre solta no prédio ao lado, coisa comum nessa cidade, apesar de um cenográfico e pirotécnico “choque de ordem”, e a música que entra altíssima pela janela parece encomendada para esse texto – “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...” Não posso reclamar dessa vez, a música me lembrou o quanto caminhamos.
Os dramas, as dores e desacertos não podem ser medidos pelo espetáculo que produzem.
Pode ter um adolescente de coração partido na festa ao lado e o seu drama é mais punjente do que todas as desgraças do mundo, são medidas pessoais. Alargar as medidas, nem todo mundo que cresce consegue. Com mais idade, a gente não sofre menos, só acaba aprendendo alguma coisa sobre dimensionar, relativizar, anular, ajeitar, fingir, ignorar, sobreviver em vez de viver como um dia sonhou. Frustração e falta de sonhos tem a ver com muitos dos descompassos do mundo, mas a ambição e a insensibilidade que regem os caminhos tristes que a humanidade toma é o homem no seu estado mais tosco, primitivo no pior sentido. Mesmo transbordando de gente, e até por isso, as soluções são também pessoais e devem ser intransferíveis. Cada um que trate de cuidar da sua cota para fazer a humanidade caminhar de um jeito mais justo e alegre.
Eu estava em Tóquio em 2001, quando vi pela tv o que aconteceu. Estava em Nova York em 2002, quando a memória da tragédia estava ainda bem fresca.
Todo tipo de lembranças e homenagens penduradas expunham as dores pelo que se passou ali.
O equivalente ao nosso churrasquinho de gato é alimentado pela romaria diária.
Uma fila ordeira e sem trégua ao fundo, uma turista e o aviso para não atravessar.
Esse brusco e inesperado desequilíbrio de forças no mundo não foi a primeira tragédia registrada nessa data, quando surgiu até uma listas de acontecimentos sombrios envolvendo o número onze. O 11 de setembro no Chile de 1973 certamente não teve tanto espaço na mídia mundial, e muito menos na parte sul do continente americano, num período especialmente negro da América Latina. Mais de três décadas entre um fato e outro, e no entanto eles têm uma raiz comum.
Parece mentira, mas enquanto escrevo, uma festa corre solta no prédio ao lado, coisa comum nessa cidade, apesar de um cenográfico e pirotécnico “choque de ordem”, e a música que entra altíssima pela janela parece encomendada para esse texto – “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...” Não posso reclamar dessa vez, a música me lembrou o quanto caminhamos.
Os dramas, as dores e desacertos não podem ser medidos pelo espetáculo que produzem.
Pode ter um adolescente de coração partido na festa ao lado e o seu drama é mais punjente do que todas as desgraças do mundo, são medidas pessoais. Alargar as medidas, nem todo mundo que cresce consegue. Com mais idade, a gente não sofre menos, só acaba aprendendo alguma coisa sobre dimensionar, relativizar, anular, ajeitar, fingir, ignorar, sobreviver em vez de viver como um dia sonhou. Frustração e falta de sonhos tem a ver com muitos dos descompassos do mundo, mas a ambição e a insensibilidade que regem os caminhos tristes que a humanidade toma é o homem no seu estado mais tosco, primitivo no pior sentido. Mesmo transbordando de gente, e até por isso, as soluções são também pessoais e devem ser intransferíveis. Cada um que trate de cuidar da sua cota para fazer a humanidade caminhar de um jeito mais justo e alegre.
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