terça-feira, 1 de abril de 2008

Alma mater


Quem teve aula de catecismo, ou mãe, sempre soube: alma é o nosso grande trunfo sobre os animais. E teremos direito ao reino dos céus se cuidarmos bem dela.
Se recebi da minha mãe uma educação bem rigorosa, caprichando na religiosa, com meu pai os filhos faziam o que queriam, com um leve incentivo à subversão da ordem. O resultado era bem confuso, os dois viveram uma vida batendo civilizadamente de frente, mas alguma coisa se salvou dali, porque minha mãe, dona de uma fé de fazer inveja a qualquer bispo, era dúbia, enganava. Era séria sem caretice. Honesta às raias da ingenuidade, por força dos tempos, considerava sagrado de verdade tudo o que gostava na vida, e isso era muita coisa mesmo. Como foi rica e depois pobre, ter ou não ter parecia natural e igual para ela, tinha a sabedoria de valorizar realmente o que não tem preço: alegria. Era comunista e não sabia: dividia o que tinha com todo mundo, mesmo que como mãe fosse acusada de ter uma filha preferida... mas tinha uma generosidade que levaria todos à falência se não fosse contida. Se as pessoas precisavam, precisavam (e isso incluía empregados, amigos, vizinhos). Se ela tivesse, dava.
Foi criada numa enorme propriedade que se desfez quando os avós morreram, onde havia uma capela e uma escola, construída e mantida pela família, para a família e mais toda a criançada da vizinhança, e que depois virou um bairro de Petrópolis. A fazenda do avô virou Itaipava, um município inteiro. Quase nada sobrou.
Saindo dali para um um colégio interno de freiras francesas, tinha uma formalidade natural, que foi se desfazendo com o tempo, e nunca nenhuma afetação. O que ela nunca perdeu, até o fim, aos oitenta e quatro anos, foi o gosto pela música, pelo cinema, pelas plantas e pela família que ela teimava em manter unida. Gostava muito de comer mas não sabia cozinhar. As refeições em casa, mesmo já muito simples, eram quase solenes para nós: pelo menos às refeições, não podíamos brigar. Acho que por isso me acostumei a comer em silêncio. Meu pai era muito inteligente, mesmo com equilíbrio zero, e era quem sustentava a casa, mas hoje eu não tenho a menor dúvida sobre quem era a figura mais forte ali.
A vida não foi fácil para eles, embora tivessem todas as chances. Talvez não consiga convencer uma pessoa sequer, mas cresci achando que dinheiro não fazia a menor diferença ter ou não ter, fui criada rigorosamente nesse espírito. Hoje vejo que a falta de dinheiro pode ser penosa, mas ter muito pode ser ainda mais danoso. A alma dos meus pais era livre do pecado da avareza, que muitas vezes percebi em volta.
Educação e formalidade foram sendo demolidas nos últimos tempos, e se servem para inibir e intimidar, já foram tarde.
Mas como tudo na vida, tem dois lados. Educação não é sempre repressão, pode ser justo o contrário, se nos ajudar a conviver melhor com as diferenças.
Para achar nosso lugar ao sol, precisamos conseguir equilibrar o que somos e o que queremos ser. E precisamos do sol que tomamos na nossa infância.

4 comentários:

Anônimo disse...

Que bela homenagem a uma figura tao bonita e romantica!! O trabalho e a dedicaçao de uma mae como essa explicam ( em parte porque tambem tem ingredientes teus, claro) personagens especiais como voce, Vandinha, que continua passando adiante a receita, com certeza.
beijos
Assimina

vanda viveiros de castro disse...

Acho romantismo um luxo, e você acertou em cheio, ela era essencialmente romântica, nunca mudou, foi assim quando podia e quando não podia ser. E como os frutos não caem longe da árvore, vivo tentando administrar o meu quinhão, salva pelo pragamatismo que, por força disso, também me coube - acho que mais para o bem do que para o mal...
Se consegui amizades assim tão valiosas e queridas, em alguma coisa ela acertou mesmo. Muitos beijos!
Vanda

Anônimo disse...

Vanda, saudades de ti. Estás certa, mansamente, como sempre, que de gritos o mundo já está por demais cheio.
bjs
Regina

vanda viveiros de castro disse...

Salve Regina, amiga sumida sempre generosa - bom ter notícias!
eu estou sempre por aqui...
beijos,
Vanda