sábado, 22 de março de 2008

Secos e molhados


Qual o sentido de ver, ouvir e contar para os outros, que é o que um jornalista faz? Como uma notícia não é um quilo de batatas, ele precisa pensar, digerir, antes de traduzir da maneira mais clara e fiel – e atraente, por que não? - o que apreendeu, antes de passar adiante.
Se na esfera pessoal nosso desejo é ser singular e particular para quem nos interessa, no trabalho um jornalista precisa pensar em ser plural, interessar a mais gente possível (sem cair na vala comum, onde ninguém pode se sentir confortável). Para um fato virar notícia, e com muitas outras fazer um jornal, que precisa se manter, tem que interessar, cumprir uma função, às vezes até a não menos nobre função de simplesmente agradar e divertir.
Imagino que o primeiro jornal deve ter começado bem simplezinho, como a simplificação acima. Mas tudo na vida costuma começar bem simples, depois é que complica.
Tem muita gente que, quando faz comida para vender, e para lucrar mais, inventa logo um bromato no pão, um pouco a mais de fermento para o bolo render mais, um padeiro não tão bom mas que aceita um salário menor... porque é assim que age quem não tem nenhum outro compromisso a não ser com o lucro.
Se tivesse mais voz, teria sido cantora. Tenho ouvido.
Quando entrei na minha primeira redação, queria ser fotógrafa. Não era comum na época, só fui ter notícia de fotógrafas na imprensa muito tempo depois disso, e sendo assim o editor que me contratou me fez desistir - equipamento pesado, precisava de um treinamento, e eles precisavam de uma repórter.
Bem alfabetizada, com bom ouvido e um olhar interessado, virei repórter. Mas conseguir exercer este ofício com plenitude demanda mais do que isso. Se um ditado africano diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança, eu acrescento: para se ter um jornalismo sério é preciso um país com uma dose mínima de compostura e caráter. Sem isso, tudo se complica mesmo: a notícia fica mais sensacionalista para vender mais, o compromisso com a verdade pode ser muito pequeno ou mesmo nenhum, sagrado mesmo não é o leitor, mas a satisfação dos anunciantes... porque quando era simples, o jornal era sustentado por quem lia, agora são empresas administradas por empresários, nem sempre jornalistas e com compromissos diversos. Em comum, o lucro, que não precisa necessáriamente ser em espécie, pode chegar de muitas outras formas.
Não é simples viver em um país eternamente em construção, com o agravante de não querer reconhecer a própria precariedade. Não poderia ser simples para os jornalistas. Mesmo assim, alguns ficam até bem confortáveis, alguns tem mesmo sorte, outros souberam achar o seu caminho, mas para muitos o exercício da profissão atualmente é uma grande frustração, ou uma luta inglória, às vezes um martírio, e em casos extremos, até uma pena de morte.
Na minha já longa carreira jornalística, fui e sou testemunha das mais variadas nuances de comportamento, onde o que faz diferença não tem nada a ver com a origem, a procedência, a formação ou conta bancária das pessoas. Prefiro cada vez mais ter por perto quem se importa menos com uma mancha na camisa do que no caráter, e isso não é demagogia. Em tempos assim, nosso papel acaba sendo mais o que conseguimos do que o que escolhemos. Cada um conhece as próprias dificuldades, e para não julgar, acho que o mais importante é cada um ter a percepção exata do seu papel, e a honestidade de não mascará-lo. Há quem use os grandes pecados empresariais para justificar toda a sorte de pequenos delitos. Há quem levante bandeiras para lutar pelos próprios privilégios, ou protestar por descabidos privilégios pessoais perdidos, mas nunca pelos da coletividade, e mesmo assim se achar com isso um grande contestador. Vivi vários anos sob ditadura já como jornalista, quando a mídia vivia sob censura, mas nunca imaginei que veria, como vejo agora, tanta desconexão e descontentamento entre a mídia e o público a que se destina. Durante a ditadura militar, a censura era uma inimiga explícita. Já hoje vivemos uma crise de aguda de falta de lucidez, onde os primeiros desinformados são os próprios jornalistas, levantando bandeiras que não são nem suas e nem de seu público.
Não é só a ternura que não devemos perder na estrada. Em qualquer circunstância, se a consciência se mantém acesa, isso faz toda a diferença no caso de se ter a chance de usá-la.

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