Será problema de memória ou é normal que seja assim? Para as coisas do dia a dia, ela até que dá pro gasto, mas da infância e adolescência, lembro muito menos do que gostaria de lembrar. Tenho às vezes a sensação de que vivi esses períodos esperando chegar o futuro, querendo que fossem abreviados para viver logo a vida adulta – quem sabe já pensando que, gerenciada por mim, a vida fosse mais parecida com a que eu gostaria de levar? Família grande, muitos problemas, sabia que meu futuro não seria ali, queria trabalhar, e comecei mesmo cedo. Pode ser um traço pessoal, um amadurecimento precoce, porque minha filha, única, com a vida tão diferente da minha, desde pequena conferia no carro se já alcançava os pedais, para poder dirigir. Não era como brincar de aldulto, quando ela vestia as minhas roupas e usava minha maquiagem, como toda criança gosta de fazer. Era diferente, parecia uma atitude consciente e objetiva, quase uma determinação.
Não sei se isso tem um significado. Por via das dúvidas, deixo aqui por escrito que, se algum analista me ler, isso não pode ser usado contra mim!
Em minha defesa, no entanto, sei que brinquei muito, e brincava muito tempo sozinha, embora tivesse sempre vários irmãos em volta.
Lia sempre, e desse tempo, escapou das muitas mudanças de casa e de cidade, entre os poucos guardados de infância, um Almanaque de Cirandinha de 1958.
Acho que não pode existir hoje nada parecido. Eram tempos sem televisão e sem joguinhos eletrônicos, é claro, mas ali tinha de tudo, era uma espécie de caixinha de surpresas, um presente anual – histórias, joguinhos, poeminhas construtivos, o calendário do ano, conselhos úteis, coisas para recortar, desenhar. Porque foi que sobrou o de 1958, não sei explicar, mas nunca consegui jogar fora. A cada arrumação mal intencionada, quando ele me cai nas mãos, acaba escapando, embora pareça cada vez mais pobrezinho e singelo o almanaque. O mais curioso é que além do apego natural a um companheiro de infancia, ele ainda me guardava uma surpresa, uma coisa que nunca esqueci: um conto chamado “A Menina Que Venceu o Papão”. A simples palavra no título me aterrorizava, e eu não conseguia ler, virava a página. Não sei se não acreditava nas minhas forças, e por isso passava direto, ou se era porque as crianças adoram levar susto e sentir medo, e imaginar era melhor do que saber. Até hoje não sei o que era o Papão e como ele foi vencido, fui procurar e descobri que o Almanaque tinha algumas páginas arrancadas. Não vou saber nunca, mas agora não preciso.
E com ou sem papão, o Almanaque vai ficando. Atualmente penso muito antes de jogar lembranças fora. Um amigo me levou para visitar a redação do The New York Times numa época em que davam de brinde aos visitantes uma cópia da primeira página do jornal do dia em que você nasceu. Joguei fora, e até hoje me arrependo.
O impulso aventureiro é sempre um pouco infantil. É aconselhável alguma noção sobre o que é coragem e o que é irresponsabilidade, mas uma porção infantil não vejo nenhum mal em preservar. Sou rápida para muitas coisas, mas passei grande parte da vida intimidada, fui lenta nisso. A gente amadurece à medida que vence os medos. Era tímida, mas não vejo isso como um problema, porque vejo um lucro na timidez. Ser tímido é completamente diferente de ser medroso, a gente apenas se concede mais tempo para saber onde pisa, e tende a colher frutos maduros, e entender um pouco do que consegue experimentar. Pra que ter pressa, se a vida não tem calendário preciso? Quando o mundo nos pressiona, é para nos impor um ritmo que não é nosso, um movimento que pode não ser o que nos convém...
Quem sabe aonde quer chegar, deve se dirigir para lá, mas nem todo mundo, nem sempre. É bom pensar em qual é o nosso caso. E ir vivendo, enquanto isso. De repente até, por sorte ou instinto, a gente acerta no que não viu...
4 comentários:
Fiquei curiosa para ver este Almanaque......objeto de museu, a ser guardado com carinho, que faz pensar no tempo, aprecia-lo e sentir o trabalho que faz nas e com as nossas vidas. Nao è um inimigo, estou achando que é um parceiro.
Vanda, eu jogo tudo fora, menina. Você me fez refletir sobre a minha compulsão por jogar fora papéis velhos e afins, muitas vezes sem nem olhar direito do que se trata. Tudo bem, uma limpeza na carteira e no armário é muito bem-vinda. Mas, de vez em quando. Talvez eu já tenha deixado para trás muitas primeiras páginas do NYT...
Amiga anônima, o tempo é parceiro, sem dúvida - seja qual for o caso: permite perspectiva, consolo, maturação do que é bom. Mesmo que venha com tantos efeitos colaterais. E até porque não temos escolha melhor do que conviver com ele... a alternativa, sabemos, é péssima!
Isabella, acho que é questão de geração e temperamento, um pouco de cada coisa, que nos faz tanto guardar quanto nos livrar. Sem dúvida você não vai ficar na situação em que me encontro, cercada de coisas que viram peças de museu e aí você tem que guardar, ou que te trazem lembranças, que guardamos porque foram boas, mas nem sempre se conservam assim... você corre o risco de abrir uma gaveta e levar uma punhalada na alma! mas eu sempre gostei muito de história, por isso acabo guardando, e muito do que recortei e guardei hoje me serve aqui. Mas juro que invejo o seu desapego - no mínimo, muito mais prático. Bjs!
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